Eu sou a primeira e a última. Sou a honrada e a menosprezada,
Sou a prostituta e a santa.
Sou a esposa e a virgem
Sou aquela cujas núpcias são
esplendidas, e não tive marido,
Sou a estéril cujos filhos são numerosos.
Sou a estéril cujos filhos são numerosos.
(Poema Gnóstico O trovão, a mente perfeita)
Falar da tradição de Maria Madalena no cristianismo primitivo significa trazer a nossos dias uma compreensão sobre a presença da mulher na igreja, não somente num papel secundário, mas assumindo protagonismo em igualdade com os homens.No inicio do cristianismo ela foi muito relevante para aqueles/as que seguiam Jesus.
Sua liderança era reconhecida, como demonstram os relatos da paixão e ressurreição de Jesus. A figura de Maria Madalena foi submetida, na tradição cristã, a uma violência simbólica que ocultou sua verdadeira identidade.
Reproduzimos a continuação uma entrevista com Frei Jacir, publicada na revista Galileu. Frei Jacir de Freitas Faria é padre franciscano, Mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Complementou seus estudos de Bíblia no México e em Jerusalém. Ele é professor no Instituo Santo Tomás de Aquino (ISTA), no Instituto Marista de Ciências Humanas (IMACH) e no Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus. Frei Jacir é um dos poucos estudiosos, no Brasil e no mundo, a se dedicar à literatura apócrifa. Os resultados de anos de estudos e pesquisas estão no livro "As origens apócrifas do Cristianismo".
Confira a entrevista
Apesar de considerados pelo Vaticano sem valor teológico, os apócrifos são fonte para vários elementos da tradição, da liturgia e até da doutrina católicos. É neles, e não nos canônicos, que estão relatados a infância de Maria o casamento com José, a presença de um boi e de um asno durante o nascimento de Jesus, a virgindade antes e depois do nascimento, o nome e o número de reis magos que o adoraram e os nomes dos ladrões que crucificados. Eles também explicam, por exemplo, o uso de palmas para cultuar Maria no mês de maio, ou o fato de um lírio ser o símbolo de São José. E pelo menos dois Dogmas constam de relatos apócrifos, bem como da tradição católica. Um é o da Perpétua Virgindade de Maria (“antes, durante e depois do parto”), proclamado em 1854. O outro é a Assunção de Maria, “em corpo e alma, à glória celeste”, proclamada em 1950.
Muitos estudiosos, porém, veem esses relatos com desconfiança. Hoje o consenso é que, em comparação com o total de textos apócrifos conhecidos, os que podem conter informações confiáveis sobre o Jesus histórico e o início do cristianismo são poucos. A imensa maioria foi escrita para atender à curiosidade popular por detalhes sobre Jesus e sua família. Começaram a ser escritos em grego, língua comum do Mediterrâneo Oriental, por volta do século 2. Com o tempo foram traduzidos para o latim e penetraram no imaginário da Idade Média. “As narrativas apócrifas inspiraram todo tipo de arte medieval: esculturas, pinturas e até sarcófagos”, explica o estudioso espanhol Antônio Piñero. No século 13, algumas histórias apócrifas foram reunidos no livro “Legenda Áurea”, de Tiago de Voragine, que alcançou enorme difusão na Europa Ocidental. De lá passaram para o Breviarium Romanum, coletânea de textos e orações cuja leitura diária era obrigatória aos padres católicos até pelo menos a metade do século 20.
Madalena era uma líder, e não uma prostituta
Estudioso da Bíblia com mestrado no Pontifício Instituto Bíblico de Roma, o frade franciscano Jacir de Freitas Faria é professor de exegese bíblica no Instituto Santo Tomás de Aquino e no Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, ambos em Belo Horizonte. Estudioso dos apócrifos, ministra cursos sobre o assunto a leigos e padres em vários Estados do Brasil. Só este ano já deu 15 cursos, que atraíram até 150 participantes. No final do ano lança pela Vozes o livro “As Origens Apócrifas do Cristianismo”.
Galileu: Por que o título “As Origens Apócrifas do Cristianismo”?
Jacir: Nele analiso textos apócrifos antigos, das origens do Cristianismo. Também levo em consideração o pensamento judaico que aparece nesses escritos. Pela análise podemos entender que no início tivemos vários cristianismos. Havia o das comunidades de Mateus, de Lucas, e também outros, como o das igrejas de Tiago e de Maria Madalena. Cada um procurava responder a questão 'quem é Jesus'. A corrente que obteve a primazia dentro da Igreja foi a da apostolicidade, dos grupos ligados aos apóstolos. As demais foram consideradas heréticas, principalmente as que tinham questões com seitas da época, como o Gnosticismo e o Docetismo. Mas havia cristãos nessas seitas, e elas tiveram influências até na Bíblia oficial. O Gnosticismo vai influenciar o Evangelho de João, por exemplo.
Galileu: Essa visão é nova?
Jacir: Esse aprofundamento é bem recente. Alguns insistiram e insistem em afirmar que os apócrifos são textos falsos ou de conteúdo falsificado. Queremos rechaçar essa idéia e afirmar que os apócrifos não podem ser simplesmente considerados como textos falsos ou não inspirados. São preciosidades que foram mantidas em segredo. Temos uma outra Bíblia, uma Bíblia apócrifa. Essas preciosidades mantidas em segredo pelas igrejas ajudam muito a aprofundar questões como a mística e o papel da mulher no cristianismo de ontem e de hoje. Mas não quero com isso proclamar a inspiração dos apócrifos e dizer que eles têm que substituir a Bíblia. Temos que analisá-los de forma crítica, separando o joio do trigo.
Galileu: Que novidades traz o estudo dos apócrifos?
Jacir: Várias. O perfil das mulheres, por exemplo. Maria, a mãe de Jesus, não é simplesmente a intercessora. E Maria Madalena não era prostituta, mas apóstola e mulher amada por Jesus, além de forte liderança no início do cristianismo. No apócrifo Pistis Sofia, ela aparece o tempo todo conversando com Jesus e dando explicações sábias dos ensinamentos do Mestre. O Evangelho de Filipe diz que Jesus amava Maria Madalena mais que todos os discípulos e a beijava na boca freqüentemente. Os discípulos tinham ciúmes desse amor. É claro que devemos compreender que o beijo no sentido semita tem a conotação de “comunicar” o espírito, o saber. O grande pecado de Maria Madalena foi o de saber demais. E se o beijo foi beijo mesmo, o que estaria de errado nisso? A Igreja fez de Maria Madalena uma prostituta para contrapô-la à Maria, mãe de Jesus. A primeira passou para a História com modelo de pecadora que se arrepende e a segunda, como virgem toda pura. Ambas se transformaram em arquétipos de fé.
Galileu: Por que?
Jacir: Fazer de Maria Madalena uma prostituta minimizou seu papel de liderança. No inicio do Cristianismo, havia ciúme e disputas entre os seguidores de Jesus. Se nos Evangelhos canônicos, Pedro é o líder máximo, nos apócrifos ele é descrito como ciumento e misógino. Em Pistis Sofia, Pedro pede a Jesus que expulse Maria Madalena do grupo, porque ela fala o tempo todo e não deixa os outros falarem. Mais adiante, é ela que reclama com Jesus que Pedro está sempre à frente e que ele detesta o sexo feminino. No Evangelho de Tomé, Jesus chega a dizer ironicamente a Pedro que transformaria Madalena em homem para que ela pudesse entrar no reino.
Galileu: A comunidade de Madalena, aliás, tinha idéias sobre o pecado bem diferentes das tradicionais...
Jacir: No Evangelho de Maria Madalena ela diz a Pedro que o Mestre lhe revelou que “não há pecado”. Somos nós que fazemos existir o pecado, quando agimos conforme a nossa natureza idolátrica. Entre os cristãos havia muitas discussões sobre pecado, e mais tarde ganhou força de dogma a idéia do Pecado Original: quando eu nasço, sou concebido em pecado. Infelizmente, a Igreja acentuou muito a questão moral e se esqueceu do pecado social. O Evangelho de Maria Madalena nos ajuda a relativizar essa visão e a buscar a harmonia interior comigo mesmo, com o outro e com Deus, que está dentro de nós. Conhecer e viver isso é a salvação.
Galileu: No livro “Os Evangelhos Gnósticos”, a americana Elaine Pagels diz que a perseguição romana levou as comunidades cristãs a procurarem unificar sua doutrina. Daí viria a divisão entre canônico e apócrifo e a exclusão das influências gnósticas. O sr. concorda com essa análise?
Jacir: Sim, é um processo natural: todo grupo quando quer se firmar cria normas e regras, mas também expurga idéias contrárias. No inicio do cristianismo houve uma violenta perseguição. Mas a continuação da história foi outra, pois logo o Império Romano compreendeu que precisava se aliar aos cristãos. Se não podemos vencê-los, juntemo-nos a eles. Foi por obra do Império que ocorreu a expansão do Cristianismo, que ganhou a marca e o rosto romanos. Acredito que Jesus era um revolucionário, um anti-romano. Isso é claro no evangelho de Tomé e muitos textos canônicos também deixam entrever. Depois os canônicos receberam arranjos posteriores e se tornaram pró-Roma. Paulo faz questão de afirmar que é cidadão romano, e termina sua pregação quando o Evangelho chega a Roma. Já a comunidade de Tiago, fixada em Jerusalém, era mais próxima ao Jesus revolucionário. Mas os textos dessa comunidade não vingaram. Somos fruto da Igreja paulina, que chegou até nós. Não sei se seríamos os mesmos se a igreja de Tiago tivesse vingado.
Fonte: Revista Galileu
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