“Enquanto os agressores não forem
punidos, a violência não vai diminuir. Eles devem ser punidos, sejam quer for.
Seja o marido da vítima, seja o promotor que está abusando de uma vítima em uma
audiência, seja um deputado que é réu numa ação já recebida pelo STF”, declarou
a vice-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil do Distrito Federal, Daniela
Teixeira, referindo-se ao deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ), réu no Supremo
Tribunal Federal por injúria e apologia ao estupro.
A entrevista é de Tory Oliveira,
publicada por CartaCapital, 23-09-2016.
A declaração da brasiliense de 44
anos causou alvoroço no plenário da Câmara dos Deputados. Em meio a uma
discussão sobre medidas de enfrentamento da violência contra a mulher no último
dia 14, Bolsonaro se indignou ao ser citado. Aos berros e de dedo em riste, foi
até a Mesa da Câmara e tentou interromper a sessão, presidida por Maria do
Rosário (PT-RS).
A reação do parlamentar provocou
a indignação da OAB. A entidade emitiu uma nota de desagravo em que estendeu a
agressão do parlamentar a todas as mulheres advogadas. Teixeira, que cursou
Ciências Políticas e Direito na Universidade de Brasília (UnB), saiu
acompanhada da Câmara por assessores e parlamentares.
Apesar dos avanços nas
legislações dos últimos anos, como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio,
o índice de violência de gênero ainda é epidêmico no Brasil. Dados da
Organização Mundial da Saúde colocam o Brasil como o quinto país do mundo em
assassinatos de mulheres, atrás apenas de El Salvador, Colômbia, Guatemala e
Rússia.
Levantamento realizado pelo Data
Senado revelou que uma em cada cinco mulheres já sofreu algum tipo de
violência.
“Precisamos educar os nossos
jovens: a mulher para não aceitar apanhar, o homem para não bater e as pessoas
para denunciar”, afirmou a vice-presidente da OAB-DF. Em entrevista, Teixeira
critica propostas de mudanças na Lei Maria da Penha, apontou entraves para o
exercício da advocacia pelas mulheres (“30% desistem nos primeiros cinco anos
de profissão”) e reafirmou a importância da atuação feminina no mundo do
Direito.
Eis a entrevista.
Qual é o principal desafio da
Justiça brasileira hoje no enfrentamento à violência contra a mulher?
A violência contra a mulher é
principalmente doméstica. Isso nos cria uma dificuldade muito grande de
enfrentamento, porque não adianta colocar a polícia na rua se a violência
ocorre na intimidade dessa mulher, em casa ou onde ela trabalha. Para enfrentar
a violência doméstica, não temos outro caminho, não tem fórmula mágica.
Precisamos educar os nossos jovens: a mulher para não aceitar apanhar, o homem
para não bater e as pessoas para denunciar. É muito importante fazer sempre
campanhas de esclarecimento.
A polícia não vai nos ajudar em
nada, infelizmente, com relação à violência contra a mulher. Das mortes de
mulheres, 7 em cada 10 são muito fáceis de serem solucionados, porque é o
ex-companheiro que comete esse homicídio. Veja que é um quadro totalmente
diferente do homem. O homem é morto na violência do asfalto, na briga de bar,
na violência urbana. Vamos conseguir mudar isso com a a educação e com a
punição exemplar desses homens agressores.
Por que a punição é importante?
É preciso ficar claro que eles
serão punidos, porque é isso que faz com o que o seu colega de trabalho, de
bar, de futebol, pense duas vezes antes de agredir uma mulher. Por isso
insistimos muito na punição do agressor. O agressor que não é denunciado ou
punido é um exemplo para os outros homens de que eles vão conseguir sair
impunes. É muito importante que seja feita a denúncia e que ele seja processado
e julgado. Essa foi a grande inovação da Lei Maria da Penha.
Que inovações a legislação
trouxe?
Antes, a gente tinha uma
legislação comum que tratava de violência. Era assim: João dá um tapa em José.
Um tapa é só um tapa, todo mundo vê, fala para deixar disso, não vai para a
delegacia.
Mas se João dá um tapa na mulher
dele, na namorada ou na ex-namorada, a chance de isso aumentar é muito grande.
Hoje é um tapa, amanhã é um murro, depois de amanhã é um soco e isso vai
evoluir provavelmente para uma tentativa de homicídio. A grande evolução da Lei
Maria da Penha foi tornar esse tapa não um tapa em Maria, mas um crime contra a
dignidade humana, é uma violência contra o gênero mulher.
Independentemente de Maria querer
ou não denunciar seu marido, o Estado passou a prosseguir com a ação penal.
Estamos dizendo, com essa lei, que completou 10 anos no mês passado, que o
Estado brasileiro não permite mais que as mulheres apanhem. E as nossas
estatísticas são horríveis. O Brasil é o quinto país com o maior número de
violência doméstica contra a mulher.
Então, realmente, é um assunto
que precisa ser discutido, debatido e falado. Os maiores índice de violência
contra a mulher no Brasil são no Espírito Santo, Alagoas, Piauí e Paraná. Isso
mostra que as mulheres apanham muito, de norte a sul do Brasil.
Além das estatísticas, estamos
vivendo um momento em que inclusive políticos se sentem empoderados em falar ou
incitar a violência contra a mulher. Como é possível fazer essa discussão sobre
a violência dentro desse contexto?
É muito difícil assumir esse
papel de fazer a defesa das mulheres. Porque é exatamente isso que a gente
passa: uma autoridade pública se sente confortável para, numa sessão do
Parlamento que discutia o estupro e medidas de combate a violência contra a
mulher, para gritar, falar palavras de baixo calão, colocar a mão na cara de
uma mulher.
Aquilo é um retrato do que
acontece no Brasil: pessoas ainda vivendo no século passado e achando que podem
fazer esses atos de violência contra a mulher. É contra tudo isso que estamos
tentando uma outra alternativa. Eu costumo sempre falar que estamos vivendo o
que os historiadores já estão chamando de primavera feminina, que nós somos um
exército anônimo.
Quem é Daniela Teixeira?
Eu não sou ninguém e nem quero
ser ninguém, mas trago dentro de mim todos os sonhos do mundo. Sou eu e
milhares de mulheres. Temos hoje milhares de mulheres fazendo essa revolução
silenciosa do “basta”. Eu não vou apanhar e não vou permitir que a minha filha
apanhe, minha mãe apanhe ou minha colega apanhe.
As denúncias aumentam a cada dia
por isso. É essa conscientização da mulher que é sujeito de Direito. Ele não
pode bater nela porque o bife está mal passado, porque ela está de saia, porque
terminou o namoro – ela não pode apanhar. E nós estamos conseguindo mudar essa
percepção.
Eu tenho 44 anos. Se você pegar
uma geração anterior à minha, ainda viam com uma certa normalidade. Hoje, eu
não imagino dizendo isso para a minha filha. Se a minha estagiária, de 20 anos,
chegar aqui de olho roxo, vou tomar uma providência imediatamente. Jamais diria
para ela que isso é normal.
Como sociedade, estamos
discutindo a violência contra a mulher da maneira adequada ou com a ênfase que
seria necessária?
Acho que existe hoje espaço para
discutir e se opor a essa violência. As vozes do atraso sempre vão existir, em
qualquer assunto, mas eu tenho essa esperança de que está bem encaminhado. As
pessoas estão abertas a entender. Não é uma ideologia de gênero, essa pauta não
é da esquerda ou da direita, de rico ou de pobre, de branco ou de negro, as
mulheres brasileiras apanham em todas as classes sociais. Acho que existe esse
consenso de que é preciso mudar.
A Lei Maria da Penha contribuiu
para diminuir em cerca de 10% a taxa de homicídio contra mulheres dentro de
casa. Atualmente, a lei pode sofrer modificações. O ponto mais polêmico é a
introdução do artigo 12-B, que confere à autoridade policial o poder de
conceder ou não as medidas protetivas de urgência – competência que hoje é
exclusiva do Poder Judiciário. Como a senhora analisa essas possibilidades de
mudança?
Eu sou vice-presidente da OAB-DF
e nós somos radicalmente contra a mudança. Primeiro porque a Maria da Penha deu
certo, qualquer pessoa hoje no Brasil conhece e sabe que existe. Não há motivo
para mudá-la. Segundo, entendemos que a autoridade que pode restringir o
direito, qualquer direito, é sempre o juiz, não um delegado. Não é verdade que
o delegado está querendo isso para proteger a mulher. Ele quer poder. Ele vai
começar protegendo a mulher e vai terminar concedendo medidas restritivas para
o ladrão comum.
E a lei funciona. Se a mulher vai
na delegacia especializada e pede a medida protetiva, o juiz dá e que funciona
muito bem. Na nossa opinião, conceder um poder de restrição de direito a um
delegado é uma via de mão dupla. Porque quem disse que ele vai dar? Eu presumo
o contrário, que ele não vai dar. Que você vai pedir e o delegado vai fazer
corpo mole e dizer para deixar disso. Nós vamos voltar ao que era antes, porque
as mulheres sempre foram agredidas e o delegado sempre disse “deixa disso”.
A Lei Maria da Penha não trata só
da questão penal, apenas 12% de seus artigos tratam da questão penal. Os outros
todos são de prevenção à violência doméstica. Não é para tratar de quem já fez,
mas sim para prevenir. A volta a esse sistema policialesco, da delegacia e do
delegado, não traz nenhum benefício para nós. Pelo contrário, traz um risco de
a mulher comparecer à delegacia e o delegado não fazer nada e ela ficar
impossibilitada de pedir uma medida restritiva de direitos ao juiz, que é quem,
no nosso sistema, pode pedir essa restrição.
Enxergamos isso como uma briga
entre o delegado, o juiz e o promotor, na qual a última pessoa que está
importando é a mulher, tanto é que foi a última a ser ouvida. Nenhum movimento
de mulher foi ouvido, a OAB não foi ouvida. Ninguém que trabalha com isso foi
ouvido. Aí você vê a associação dos magistrados contra e a dos delegados a
favor e vai ganhar quem fizer mais força no Congresso.
Nós entendemos que isso não
resolve. Era assim antes e não funcionava. Só passou a funcionar com as
delegacias especializadas da mulher, as varas de enfrentamento à violência
doméstica, com a estrutura do Fórum.
Há hoje redes de advogadas e
juristas formadas apenas por mulheres. Qual é a importância de se discutir
questões feministas dentro do mundo do Direito, um espaço ainda muito machista?
É muito importante. Eu faço parte
de vários grupos, o que eu mais gosto é o Mais Mulheres no Direito. Nós temos
especialistas de todas as áreas, juízas, promotoras, advogadas, nesta tentativa
de trazer o olhar feminino para todas as áreas do Direito. Na advocacia já
somos maioria, até 25 anos somos 60% das OABs, aí a medida que vai envelhecendo
cai, mas no nacional já somos 52% de mulheres.
Somos maioria e eu não aceito ser
tratada como minoria. Eu respeito as minorias, trabalho por ela, mas
particularmente, nesse caso, as mulheres são maioria. Então é muito importante
que a gente esteja sempre divulgando esse trabalho de mais mulheres no Direito.
É importante que a gente dê visibilidade para isso.
Essa tomada de espaço de poder
dentro das esferas maiores do Direito, como a ministra Carmen Lúcia na
presidência do STF, o que isso representa para uma jovem advogada?
Muito, é exatamente olhar para
cima e ver hoje que as duas maiores autoridades do Judiciário são mulheres. É a
presidente da Suprema Corte, a Carmen Lucia, e a advogada-geral da União,
[Grace Maria Fernandes Mendonça] mulheres comprometidas com essa pauta
feminina. A ministra Carmen foi a primeira mulher a entrar de calça no STF.
É muito interessante, naquele dia
o fato de ela ter entrado de calça comprida foi notícia em todos os jornais e
revistas brasileiras. Parece que a gente mora na Arábia. Eu faço muitas
palestras e levo prints desse dia de notícias. É surreal ter uma notícia dessas
na capa dos principais jornais. Uma mulher entrar de calça no STF é notícia.
Você vê que ela fez aquilo para provocar e dizer “olhar, eu vou de calça, não
tem cabimento”.
A ministra Carmen é uma
libertária, é uma amante das ideias feministas. Acho que vai ser muito bom tê-la
como presidente do STF porque ela vai enfrentar essa pauta. No seu primeiro dia
como presidente ela já disse que as mulheres sofrem preconceito sim. Eu imagino
exatamente isso: uma jovem bacharel em Direito que está começando agora, tem em
quem se inspirar, o céu é o limite agora.
Deixou de ser um universo
totalmente masculino. Acho que é inspirador. É um caminho mais fácil do que
para mim. Quando eu estava me formando eram 11 ministros homens. Então veja,
está melhorando, em passos de formiga, mas está.
Com relação à OAB-DF, que medidas
vocês estão tomando para trazer visibilidade para a pauta da mulher quanto
ocupar esses lugares de poder?
Muitas. O ano de 2016 foi
declarado o ano nacional da mulher advogada. Nós criamos o Plano Nacional da
Mulher Advogada e comissões da mulher em todos os 27 estados, queremos criar
essas comissões até o final do ano em todas as sub-sessões do Brasil. Então nos
deu uma capilaridade imensa, eu sou membro da Comissão Nacional da Mulher
Advogada, então hoje conseguimos resolver de forma muito rápida. E estamos
realizando várias medidas de apoio à jovem advogada.
Quais?
A estatística pior para mim é que
30% das mulheres desistem da advocacia com cinco anos de formada. Pesquisamos e
o motivo é a gravidez. Não é o filho, porque ela tem uma rede de apoio de pai,
mãe, creche, marido. Filho tem quem ajude. Como ela faz com a gravidez? Ela não
tem salvação. E desiste da advocacia. Aqui em Brasília, se você pesquisar, tem
uma advogada, a Alessandra. Seu parto estava marcado para segunda e a audiência
marcada para quarta em um processo que tem 11 anos e estava parado há três. Ela
pediu adiamento e o juiz indeferiu. Ele falou que não, que se ela não tinha
condições de fazer, que passasse para outro.
Nós fizemos o maior desagravo da
história, colocamos 400 advogados na porta do juiz para dizer que aquilo era um
absurdo e feria a dignidade humana daquela advogada. A nossa Constituição é a
única do mundo que fala que a criança é prioridade absoluta e o que ela leva
ali é uma criança, não uma barriga. E tivemos muita repercussão. O CNJ
concordou conosco, disse que o juiz estava errado, mas o tribunal de justiça do
DF nunca fez nada para dar um primeiro passo. De lá para cá, desde fevereiro,
nunca mais tivemos casos de juiz que não tenha adiado a audiência de uma
advogada grávida.
Nós fizemos um projeto de lei que
acabou de ser aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e foi
para o Senado e está aguardando relatoria. Foi na sexta-feira para o Senado. Na
Câmara aprovamos na CCJ esse projeto de lei que dá 30 dias de suspensão do
prazo para a advogada gestante. Temos muita esperança de aprovar esse projeto
no Senado e já vai resolver muito a situação das grávidas. E há pequenos
detalhes: o PL proíbe a advogada de passar pelo raio-x, dá vagas preferenciais
no estacionamento, dá atendimento preferencial caso ela vá fazer uma
sustentação oral.
Na sua atuação profissional, que
tipo de entrave você sofreu e que tipo de mudanças você vê do dia que você
começou até agora?
Eu sempre trabalhei em
escritórios grandes de São Paulo e sempre ganhei menos do que os homens sócios.
E é silencioso isso. Toda mulher ganha menos e ninguém te explica porque: você
produz igual e é sócia igual, mas ganha menos. Mas a maior dificuldade que eu
tive foi na gravidez.
Eu era da OAB, fui fazer uma
sustentação oral no Conselho Nacional de Justiça com o ministro Joaquim
Barbosa. Pedi para que o meu processo fosse chamado antes e ele indeferiu,
dizendo que não havia precedente legal. Um advogado chegou a ir para a tribuna
dizendo que daria a vez para mim e o ministro, sempre de forma muito grosseira,
chegou a dizer que quem mandava era ele e disse que não, que o meu direito
individual não se sobrepunha ao direito público da pauta. Que a pauta seria
cumprida e que se eu não podia esperar, que eu fosse embora.
Eu fique lá das oito da manhã às
cinco da tarde, sem comer, sem beber, nervosa e saí de lá direto para o
hospital. Fiquei 15 dias internada e não consegui segurar o bebê. Minha
bebezinha nasceu com 29 semanas e ficou 61 dias na UTI. Quando foi divulgado o
caso, eu passei a receber denúncias do Brasil inteiro e isso acontecia todos os
dias com as advogadas.
Foi quando eu mandei pesquisar a
relação entre a gravidez e o abandono da advocacia e vi que era real, de cada
10, três vão embora. Por esse desrespeito. E é tão simples de corrigir, mas que
não podemos esperar pelo bom senso. O bom senso não existe, se existisse não
precisava de Código Penal, do Código Civil. Por isso que a gente leva esse
projeto de lei adiante – ele para mim é um filho. Para mim é uma meta de vida
aprovar esse projeto.
Fonte: Carta Capital
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