terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Exploração sexual no futebol de base do Amazonas é denunciada por jovens jogadores

Garotos iniciantes no futebol amazonense revelam rotina de assédio nas categorias de base em Manaus, cidade que receberá a Copa do Mundo. Casos de estupros de vulneráveis e exploração sexual crescem em Manaus, mas registro de ocorrências relacionadas ao futebol não passa de cinco em três anos; comprovação é mais difícil.


Um campo de várzea e um sonho tão distante que, por vezes, parece inatingível: brilhar no milionário mundo do futebol. Dez em cada dez meninos que frequentam as categorias de base do futebol de Manaus projetam um futuro assim.

No dia-a-dia da base, porém, não existe o glamour típico das estrelas do rico mundo da bola. Também não existem arquibancadas ou torcida organizada.  O tapete verde dá lugar ao chão de terra batida. Os pés dos futuros astros não calçam chuteiras de ponta. Isso é luxo para pés acostumados a jogar na terra ou no asfalto.

A única coisa que não falta a esses jovens atletas é disposição para tentar mudar de vida. A meta é conseguir  um “chute certeiro” que abra as portas de um clube de ponta.

Só que antes de realizar esse verdadeiro “conto de fadas” tipicamente brasileiro, crianças e adolescentes que frequentam as divisões de base da capital amazonense precisam driblar um adversário covarde, implacável e desleal: a exploração sexual.

Desabafo

O alerta sobre o assunto foi dado pela primeira vez, no ano passado, em tom de desabafo, pelo ex-lateral direito Antonio Piola, no lançamento do documentário “Rio-Nal: 100 anos de paixão”. Na ocasião, o eterno ídolo do Fast Clube culpou o aliciamento que acontece nas categorias de base pelo fracasso do futebol profissional do Estado.

Seguindo a trilha aberta por Piola a reportagem do CRAQUE deu início a uma investigação própria que revela um cenário aterrador na cidade que vai receber este ano o mais importante torneio de futebol do planeta: a Copa do Mundo.

Percorrendo as categorias de base foi possível colher depoimentos, diálogos em redes sociais como Facebook e aplicativos como Whatsapp, que mostram como técnicos de times de base oferecem dinheiro e a titularidade nas equipes em troca de sexo.

O resultado desta investigação é a reportagem especial “Jogo sujo - Um retrato da exploração sexual no futebol de base em Manaus”, que você lê agora com exclusividade.

Abuso

Miguel*, 14 anos, é lateral direito de ofício, mas também atua como volante. Dentro de um esquema tático de um time sua função primordial é defender. Mas não teve quem o defendesse de um treinador do futebol de base de uma equipe que frequenta a primeira divisão do futebol amazonense.

Tudo começou quando ele foi convidado para fazer um teste. Aprovado, poderia finalmente realizar o sonho de jogar o Campeonato Amazonense. “Ele (o treinador) falou que era para eu ir a todos os treinos porque eu iria jogar o Amazonense. Ele falou que todos os jogadores iriam ganhar chuteira, aparelho dentário e um monte de coisas conforme a gente fosse passando de nível no campeonato”, lembra.

Só que antes de vestir a camisa do time, Miguel* foi convidado a “visitar” a sede do clube à noite. “Lá (na sede do clube) ele começou a falar um monte de besteira pra mim. Ficou dizendo que eu era bonito”, lembra.

Noite de terror

Miguel* conta que tentou ir embora do clube, mas o técnico não deixou. “Ele disse que era para eu dormir lá com ele. Eu disse que não gostava dessas putarias”, revela.

Além da vaga no time, o treinador em questão ainda ofereceu R$ 50 ao garoto. “Eu falei que não queria, que eu conhecia um monte de amigo que tinha passado por isso e ele insistia dizendo que ninguém ia ficar sabendo”.

As horas se passaram, sem dinheiro para pegar um táxi – já que não havia mais linhas de ônibus disponíveis depois das 0h –, o lateral foi obrigado a ficar na sede do clube. “Eu tentava dormir e ele ficava pegando no meu p... (pênis). Eu tentando dormir e ele pegando. Falei que nunca mais ia treinar lá”, decidiu.

Miguel* segue sem vestir a camisa de um clube local e ainda longe do sonho de disputar o Campeonato Amazonense, mas não desistiu do futebol. Ele treina em um projeto social e espera, quem sabe, ter uma nova chance.

Três clubes

Ser assediado por treinadores não chega a ser uma novidade para o também lateral Carlos*, de 14 anos. Frequentando o futebol de base de Manaus desde 12 anos ele revela que sofreu com o mesmo problema nos três clubes onde tentou vaga.  “Nos três clubes que passei sempre teve isso (assédio sexual). A gente que é atleta no Amazonas até já se acostumou um pouco com isso.  Acho que é uma grande injustiça”, desabafa.

Sem ceder aos desejos sexuais dos treinadores, o máximo que o lateral conseguiu foi disputar o Campeonato Amazonense de base por uma única partida.

“Minha mãe ficou constrangida quando eu contei isso, eu não tenho mais pai, mas eu nunca vou me envolver com isso. Prefiro sair do clube a me envolver com isso. Sei que tenho futebol, não preciso disse”, atesta o jogador que também está sem clube.

Como aconteceu a situação em que você foi assediado pela primeira vez?

Carlos* 14 anos: primeiro eu fui pra lá (para o clube) por indicação. Aí chegando lá pediram meu número (celular). Achei normal, mas ele (treinador) me ligou e começou a falar: ‘tu vai ter dormir aqui (na casa do treinador) porque se tu não dormir aqui tu não vai ser titular.

Se tu não dormir aqui tu não vai estar relacionado para o próximo jogo’. Eu sou evangélico, eu nunca que vou me envolver com isso, eu preferi nem jogar no (Campeonato) Amazonense. Eu saí fora. Não vou me sujar por causa disso. O outro clube era amador, até nos amadores tem isso.

E como foi nas outras vezes?

Foi quase a mesma coisa, mas também rola abordagem pelas redes sociais, pedindo para o cara ir lá falando: se tu não vieres na minha casa tu não vai jogar. Vem na minha casa que tu vai jogar. Tu vai ser o dez (camisa dez) e o faixa (capitão do time). Tentavam me iludir e mudar até minha posição em campo.

Mas eu tenho muito conselho de pai e mãe e nunca deixei me iludir,  tentavam me iludir. Mesmo assim eles diziam: tu não merece essa posição (lateral direito). Tu tens estatura.

Chegaram a oferecer dinheiro para você?

Sim, claro! Sempre tem. Me ofereceram 200 reais.

Você já pensou em desistir do futebol?

Sinceramente, já estava desistindo. Fui atrás de trabalho para não ficar em casa, ajudava meu tio numa lan house, até já tinha parado, até achar um projeto social.

Qual é o teu maior sonho hoje?

Ser um jogador profissional. Todo garoto sonha com isso, mas a gente tem que levar na humildade e fé em Deus que a gente chega lá e não se envolver com isso.

*Nomes fictícios, em cumprimento ao Estatuto da Criança e do Adolescente

Exploração sexual nas categorias de base quase 

não é denunciado

De acordo com a Delegacia Especializada em Proteção à Criança e ao Adolescente (Depca), de 2010 a 2013 foram registrados em Manaus cinco casos de abuso sexual a menores envolvendo professores de escolinhas de futebol. E os dados da Secretaria de Estado da Segurança Pública apontam que de janeiro a outubro do ano passado, 876 crianças foram estupradas ou sofreram exploração sexual.

No Código Penal Brasileiro, é considerado estupro de vulnerável a conjunção carnal ou a prática de outro ato libidinoso com menor de 14 anos. A pena é de 8 a 15 anos de reclusão. Já para quem explora sexualmente crianças e adolescentes a pena é de 4 a 10 anos, segundo informações da Depca.

“Uma pessoa que abusa de uma criança ou de um adolescente menor de 14 anos e oferece algo em troca do ato será acusada de estupro de vulnerável e também de exploração sexual, podendo cumprir até 25 anos de reclusão”, explicou a delegada Linda Glaucia.

A delegada revelou que dos cinco casos citados pela Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente, um aconteceu em 2010, no bairro Santo Antonio, Zona Oeste de Manaus, quando um técnico de futebol violentou uma criança de apenas nove anos.

“Eles (criança e o técnico) moravam no mesmo condomínio, os pais do menino conheciam o treinador, que depois de estabelecer uma relação de amizade com a família começou a convidar a criança para jogar videogame na casa dele. Um dia a mãe foi chamar o filho e achou estranho porque o então professor de futebol demorou muito para abrir a porta e por isso ela resolveu procurar a delegacia”, contou Linda Glaucia.

“E nós descobrimos que o treinador aliciava a criança, fazia carinho no órgão genital, no ânus e também beijava a boca da criança. Depois da comprovação do ato nós conseguimos prender o técnico”, completou a delegada.

Linda Glaucia também explicou que quando o abuso acontece com meninos, se não houver flagrante, fica mais difícil de conseguir provas para prender o acusado, principalmente se o ato tiver ocorrido há algum tempo.

“Na verdade, quando uma menina sofre um abuso nós conseguimos provar isso através de um exame de corpo de delito, caso o ato tenha sido consumado. Mas em casos com meninos é mais complicado: o ânus volta ao normal facilmente e por isso nem sempre conseguimos descobrir o que aconteceu através de um exame. Aí temos que fazer um trabalho delicado com o menor, para que ele se sinta protegido e à vontade para revelar o que de fato aconteceu. É a palavra da criança contra a do acusado”, pontuou.

Aliciadores são gentis e inspiram confiança

A delegada Linda Glaucia faz um alerta aos pais quanto ao perfil do abusador. Segundo ela, eles são muito gentis, dizem que adoram crianças e sempre arrumam um jeito de ficarem sozinhos com elas.

“É claro que nem todo mundo que gosta de criança tem segundas intenções. Mas os pais devem sempre ficar com um pé atrás e não confiarem em qualquer um”, disse.

Ainda segundo a delegada, é considerado pedófilo qualquer pessoa que manifeste interesse sexual por crianças.

“Não há justificativa, a pessoa que abusa sexualmente de uma criança, para mim, é um pedófilo sim e deve pagar pelo crime judicialmente”, pontuou.

Linda também revelou que agora a polícia não precisa mais da autorização dos responsáveis para iniciar uma investigação sobre assédio a menores.

“Antigamente a polícia só podia começar uma investigação com uma autorização dos pais. Mas hoje as coisas são diferentes e nós podemos investigar um caso de imediato”, afirmou.

Para abrir inquérito

O inquérito só pode ser aberto quando o Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) entrega o laudo que identifica que a criança ou o adolescente sofreu o abuso sexual.

12,5% foi o aumento de casos de crianças estupradas e exploradas sexualmente, no comparativo de 2012 a 2013 (até outubro). Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Amazonas (SSP-AM), em 2012, 754 menores foram abusados e 24 explorados. De janeiro a outubro de 2013, o número saltou e foram registrados 833 casos de estupros e 43 de corrupção de menores em Manaus.

Fonte: www.acritica.uol.com.br

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