sexta-feira, 27 de setembro de 2013

A violência contra as mulheres e o Estado indiano

“Estamos em um Estado patriarcal que não só saqueia os recursos naturais do país, mas também a dignidade e os direitos das suas mulheres. A vulnerabilidade das mulheres e das crianças nas ‘zonas de conflito’ é um tema popular, mas quando é o Estado quem perpetra a violência perde todo o interesse. Há um abismo entre os direitos, a justiça e a liberdade". 

A análise é de Mrinalini Paul, em artigo publicado no sítio espanhol do Centro de Estudios Políticos para las Relaciones Internacionales y el Desarrollo – CEPRID, 06-09-2013. A tradução é de André Langer. 
Mrinalini Paul é trabalhadora na saúde de Bengala Ocidental.

Eis o artigo.

Com o objetivo de exemplificar o papel do Estado, este trabalho procura abordar amplamente dois conceitos que fazem parte da própria natureza do Estado: a justiça e a violência. O primeiro, supõe-se, serve para ser protegido pelo Estado; o segundo, utiliza-se para exercê-la contra os inimigos desse Estado. É claro que esta é uma visão simplista e unidimensional, mas serve como ponto central deste trabalho, que trata sobre a perigosa manipulação de ambos os conceitos. A justiça, quando existe, demora tanto que tem pouca serventia para os milhares de habitantes das populações marginalizadas que se veem deslocadas, despossuídas e atacadas por esse monstro chamado “progresso”. A violência é a negação da justiça e se apresenta como uma entidade em si mesma.

Durante um mês percorri Chhattisgarh [estado da Índia onde a guerrilha maoísta é mais forte], me reuni com pessoas, organizações estatais e populares, para investigar sobre a violência do Estado contra as mulheres. Cheguei à conclusão de que é uma parte do vasto arquipélago da exploração, da negação dos direitos à propriedade da terra, da não aplicação das leis que supostamente beneficiam as pessoas. E tudo isso adquire uma maior dimensão quando me deparei com a prisão arbitrária de qualquer pessoa que é suspeita para o Estado. O emprego judicial da violência é um papel que o Estado assumiu. Vejamos alguns casos.

Ledha é uma mulher adivasi do distrito de Sarguja. Ela estava casada com Ramesh Nageshila, um conhecido membro do partido maoísta. Dado que, segundo a lei, a identidade da mulher está intimamente ligada à do seu marido, Ledha também foi acusada de naxalita [termo genérico usado para se referir a grupos de militantes comunistas que operam em diferentes partes da Índia] e presa sob a acusação de ter participado de um ataque no qual morreram três membros dos CRPF [Corpos de Reserva da Polícia Federal, paramilitares]. Estava grávida. Graças ao esforço de seu advogado, recebeu permissão para dar à luz fora da prisão, mas após o parto foi presa novamente. Um ano e meio depois Ledha foi absolvida e posta em liberdade. A polícia lhe ofereceu dinheiro e trabalho em troca da rendição de seu marido. Ledha convenceu o seu marido para que se entregasse, o que efetivamente aconteceu. No entanto, no mesmo momento da entrega a polícia matou Ramesh na sua frente. Ameaçou Ledha, caso revelasse o que tinha acontecido. Os jornalistas “informaram” sobre o fato, fazendo referências à morte de um maoísta em combate em Shankergarh. Ledha não se atreveu a falar, voltou ao seu povoado e ali descobriu que a polícia a estava procurando. Entregou-se e foi violada por SP Kalluri diante de seus pais e de seu filho. No dia seguinte, Ledha foi violada por Dheeraj Jaiswal e outros quatro policiais. O caso chegou ao Tribunal Superior de Chhattisgarh, mas Ledha retirou a denúncia quando seus pais foram torturados pela polícia.

Meena Xalxo era uma jovem menor de idade que também foi acusada de ser naxalita. Foi detida, violada e assassinada pela polícia do distrito de Balrampur. Embora a autópsia tenha confirmado a violação da menor, os meios de comunicação não informaram sobre isso. Nem uma linha. A família levou o caso à justiça, mas retirou a denúncia quando o Estado ofereceu ao seu irmão um posto de trabalho em uma escola pública.

Na aldeia de Koyabekur, os policiais especiais antiguerrilha entraram, na madrugada de 14 de setembro de 2012, e levaram três homens. Quando as mulheres tentaram bloquear a saída dos policiais, estes se voltaram contra elas atacando-as com chutes nos rostos. Um dos policiais introduziu um objeto pontiagudo no ouvido de uma das mulheres, com cerca de 60 anos. Assim como no caso de Meena, nenhum meio de comunicação divulgou o fato. Muito menos, ouvir falar de uma investigação judicial.

Esta atitude complacente do Estado para com a violência é exatamente o contrário da democracia.

A violência de gênero e de casta manifestou-se através das desigualdades na sociedade e suas estruturas desde tempos remotos. Estamos em um Estado patriarcal que não só saqueia os recursos naturais do país, mas também a dignidade e os direitos das suas mulheres. A vulnerabilidade das mulheres e das crianças nas “zonas de conflito” é um tema popular, mas quando é o Estado quem perpetra a violência perde todo o interesse. Há um abismo entre os direitos, a justiça e a liberdade. Não se pode considerar o Estado como uma entidade política abstrata e não se pode falar de separação de poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, nem tampouco de meios de comunicação “livres”.

O caso de Ledha indica de forma clara o que significa, para um maoísta, entregar-se à polícia: uma mulher ser presa pela polícia e a manipulação da mídia. O mesmo acontece no caso de Meena. Ambas são dalits, uma manifestação estrutural da injustiça histórica contra os dalits que se vê reforçada quando se impede a investigação judicial. A justiça está a serviço do Estado e do uso, pelo Estado, da violência através de suas diferentes armas e máquinas.

O perigo não está apenas no uso generalizado da violência, mas na impunidade que oferece aos autores devido à sua estreita relação com o Estado. Os crimes cometidos pelos milhares de soldados e policiais que trabalham em Chhattisgarh são apenas uma gota no imenso oceano de crimes cometidos contra as mulheres pelos homens de uniforme, especialmente nos lugares “conflitivos”.

Fonte: Ihu

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