terça-feira, 18 de junho de 2013

A prostituição e os projetos de regulamentação

Os direitos buscados pelas pessoas que se prostituem quando pensam na ocupação que realizam não seriam muito mais direitos de seguridade social e de dignidade sexual do que propriamente direitos trabalhistas, os quais poderiam ser estabelecidos em regimentos ou códigos de ética construídos entre elas e os próprios clientes e entre elas e as parceiras de trabalho?


O NOSSO SOCIALISMO E A QUESTÃO DA PROSTITUIÇÃO
*Bernadete Aparecida Ferreira


Sou Mulher, sou libertação
Onde houver uma caída, eu levanto
Onde houver uma morta, doente, desesperada ou chorando!
Sou guerreira...
Sou pássaro, sou canto
Levanto meu povo, e o tiro da escravidão
Meu nome é libertação, sou paz, sou esperança
Sou arco-íris neste mundo de injustiça. Meu nome é fraternidade
Me chamo Mulher: Sou humanidade!
(Francisca Andrade, GMEL, 2009)


PROSTITUIÇÃO E OUTROS SUJEITOS NA DISPUTA

Esse poema: “Sou mulher, sou libertação”, é de autoria de uma educadora do Maranhão, Francisca Andrade, que faz parte do GMEL – Grupo Feminista Mulher, Ética e Libertação. O GMEL foi formado em 2006, por mulheres que estiveram ou estavam em situação de prostituição, quando faziam advocacies e lutas contra a aprovação do projeto de autoria de Fernando Gabeira, que visava à retirada do Código penal, daqueles artigos que criminalizam a exploração da prostituição.
Esta luta deu a elas ganas de continuar lutando e formaram este grupo que tem lideranças em quatro regiões do Brasil. Para o senso comum brasileiro que discrimina mulheres em situação de prostituição como a escória da humanidade e para sociólogos, antropólogos e politicólogos que só encontram um sujeito político no cenário de lutas referentes à prostituição, apresentamos as outras visões e outros possíveis sujeitos, inclusive aliados à nossa luta socialista e anticapitalista.
O GMEL, em 2009, lançou uma cartilha popular intitulada “Mulher, a vida é tua”, onde apresenta em linguagem simples, mas não chula, um pouco das três principais linhas no enfoque da prostituição. Vejamos o que diz a cartilha.

Regulamentarismo:
Vem de regulamentar, tornar regrado, legal. No regulamentarismo a prostituição é vista como um mal necessário, mas também como um perigo para a ordem pública e para a moral social. Precisa ser controlada pelo Estado e pelas Instituições. A prostituição, nesse modo de ver, é permitida e legalizada, de forma a ser feito um melhor controle, e pode acontecer apenas em determinados locais, horários e sob determinadas condições. Geralmente a regulamentação visa o controle de saúde, conceder lucros ao Estado, ou aos atravessadores, e àquelas pessoas e grupos que se beneficiam da prostituição alheia. É engano pensar que no regime regulamentarista as mulheres em situação de prostituição são prioridades e que regulamentação acaba com todos os problemas.


Sobre a linha abolicionista, diz o seguinte:

Abolicionismo:
No abolicionismo a prostituição não é exercida a partir de uma autonomia sexual da mulher, mas de uma necessidade financeira, que geralmente ocorre numa sociedade desigual que não proporciona aos seus cidadãos condições dignas de vida. Ele propõe que a prostituição seja abolida, pois entende que ela é em
Si uma violência contra as mulheres que a praticam, e que o Estado e sociedade possam favorecer alternativas de vida no lugar da prostituição. Assim, neste regime, as mulheres que exercem a prostituição não são criminalizadas porque estão no seu direito de exercê-la enquanto modo de subsistência. Mas, o cliente, cafetão, cafetina e proxeneta são criminalizados porque exploram a mulher em benefício próprio. Por isso, o art. 6º. Da Convenção Abolicionista Internacional reza que: Cada parte na presente Convenção convém em adotar todas as medidas necessárias para ab-rogar ou abolir toda lei, regulamento e prática administrativa que obriguem a inscrever-se em registros especiais, possuir documentos especiais ou conformar-se a condições excepcionais de vigilância ou de notificação às pessoas que se entregam ou que se supõem entregar-se à prostituição.


Por fim, sobre a terceira linha a cartilha versa o seguinte:
Proibicionismo:
Nesse regime, a prostituição é proibida e criminalizada; é vista como uma vergonha e um perigo para a moral e para a ordem pública. A prostituição é interditada e a organização das mulheres é impedida porque ela é totalmente ilegal e criminalizada, assim como clientes, atravessadores, aliciadores, proxenetas, gigolôs etc. Esse regime vigora em alguns países. Os principais meios de repressão são a Polícia e o Estado. As mulheres são revistadas, são exigidos os seus documentos e são tratadas como delinqüentes. Embora no Brasil tenha outra legislação, é comum acontecer a prática do proibicionismo. A polícia, o Estado, a sociedade e alguns setores das Igrejas tratam as mulheres em situação de prostituição com uma visão moralista e preconceituosa. E a cultura jurídica é de impunidade.

Há estudiosas da questão da prostituição no Brasil que chegam a propor a existência de uma quarta linha, que seria uma corrente híbrida entre estas três visões, chamada de linha da autodeterminação das próprias mulheres em situação de prostituição.
Porém, esta linha não é ainda reconhecida pelas mulheres envolvidas no mundo prostitucional, mesmo que seja crescente a participação delas em ações e propostas para diminuir sua desproteção social, isto ainda se dá de forma tutelada ou impregnada de elementos teóricos advindos das visões anteriormente apresentadas.
Como a luta é dialética, podemos supor que a luta por autodeterminação continuará trazendo elementos sintéticos da visão regulamentarista, abolicionista ou proibicionista, ou tenderá para uma única destas visões, se as mulheres, a sociedade ou o Estado não estiverem devidamente conscientes dessa dinâmica histórica.
É o que tem acontecido nesses últimos 20 anos de luta social em que o sujeito político “prostituta” tem apresentado suas demandas sociais, e a principal delas: Regulamentação do lenocínio e de uma suposta profissão. A parte tem sido tomada pelo todo, tanto em termos de proposta macro a ser levada em consideração por políticas sociais quanto em termos do enfoque teórico utilizado para justificar a necessidade das mudanças sociais e jurídicas.
Há uma desconsideração ou desvalorização dos demais sujeitos políticos e sociais: as mulheres e homens em situação de prostituição, as que estiveram nessa condição e que não mais desejam viver e trabalhar no mundo prostitucional, assim como há um desconhecimento generalizado da história pregressa destes movimentos, inclusive, do movimento que lutou e luta por regulamentação da prostituição em nosso país, e com que condicionantes este país já vivenciou o regime regulamentarista da prostituição em etapas históricas anteriores.
Há um desconhecimento de que foi o movimento abolicionista internacional que legitimou e continua legitimando a normativa internacional que ajudou a construir as leis no que tange a prostituição em muitos países, inclusive no Brasil, que é a Convenção Abolicionista Internacional e que foi o movimento abolicionista, com cunho feminista inclusive, que deu origem a trabalhos sociais e religiosos com as mulheres em situação de prostituição no nordeste e em São Paulo.
Nos últimos oito anos o Brasil viu surgir pelo menos dois novos sujeitos diverso da Rede Brasileira de Profissionais do Sexo: a Federação Brasileira das Prostitutas e o GMEL – Grupo Mulher, Ética e Libertação, com posicionamentos e propostas muito diversas da regulamentação da prostituição.
Além dessa novidade, surgida à custa de muito trabalho e de muita dialética histórica, há uma imensa massa de pessoas que vivem na e da prostituição, que manifestam em pesquisas científicas e levantamento de dados que não desejam continuar na prostituição, que se trata de uma atividade provisória em suas vidas e, portanto, não desejam e não recomendam, por “N” motivos, a regulamentação da prostituição.


O QUE E COMO É MESMO A PROSTITUIÇÃO NO BRASIL?
Pela dimensão e a história do fenômeno da prostituição há muito pouca coisa escrita e pensada sobre ele. A prostituição é, ao mesmo tempo, uma mazela social, uma mazela econômica, um requinte do patriarcado e uma das formas de expressão da violência de gênero.
Há também pouca literatura feminista sobre o tema e os movimentos têm dificuldade de expressar uma opinião consolidada sobre isto. Há dubiedades e não há posicionamento único, posto que também haja vários feminismos. Estes feminismos reconhecem que é preciso se debruçar mais em entender o estado da arte de diagnosticar, teorizar e interferir social e culturalmente sobre a prostituição, que, definitivamente, afeta e sempre afetou majoritariamente as mulheres em todo o mundo.
Há mulheres e homens na prostituição advindos de todas as classes sociais, é verdade. Mas, a prostituição não é tão democrática assim. Nem mesmo com o maior dos esforços liberais, conseguiremos provar que há muitas pessoas que em seu livre arbítrio e liberalidade, advindas de classes médias ou altas, optam pela ocupação de se prostituir, em sã consciência e com condições de permanecerem nesta ocupação na maior delonga possível.
A esmagadora maioria das pessoas que se prostituem no Brasil é composta por mulheres, prostituídas por homens, advindas das classes subalternas. Podemos dizer que a maioria é mesmo proletária e se ocupa na prostituição não somente para sobreviver, mas para sustentar sua prole e sua ascendência, muitas vezes também a agregados e para sustentar as condições de reprodução de sua ocupação, enquanto ela dura. Ou seja, elas mesmas compram suas roupas, sapatos, alimentos, maquiagens, enfeites, objetos de fetiche ou outros equipamentos que precisem para o exercício da ocupação.
Há muitas variáveis que condicionam a prostituição em nosso país. Como fenômeno social ela adquire diferentes contornos, dependendo da região, do meio-ambiente, do turismo e até mesmo do modelo de desenvolvimento, da política e da cultura local.
A prostituição brasileira demarca um território muito contrastante composto por mulheres prostituídas em sua maioria por homens (90%). Gays, lésbicas, travestis e transexuais também são prostituídos em sua maioria por homens, em atividades exploradas, facilitadas ou intermediadas por pessoas de ambos os sexos que almejam lucro ou resultados que se expressem em bônus de diversas formas.
São atividades intrincadas entre elas, que nos permitem dizer que até a prostituição mais recôndita e contratada bilateralmente somente pela pessoa que se prostitui e por seu cliente sofre a interferência das várias redes que conformam a indústria do sexo neste país.
Primeiro passo para que se faça uma análise o mais coerente e real possível da prostituição do Brasil é reconhecer que:
As pessoas que estão em situação de prostituição são trabalhadoras.
Elas sofrem violência de gênero, que são imensamente discriminadas pela sociedade e que têm sua dignidade de pessoa humana aviltada todos os dias, mesmo sem mencionar que são “prostitutas”;
Estão submetidas às regras do mercantilismo, do capitalismo, da herança colonial-patriarcal e de uma rentável e muito organizada indústria do sexo;
Buscam saídas e dificilmente as encontram, por isso se rendem a dizer que prostituição é uma “opção” e que há a necessidade deste trabalho assalariado, com direitos trabalhistas; posto que não têm outra profissão.
A prostituição ainda é, mormente, uma problemática mais econômica que psicossocial.
O QUE DIZ A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
O Brasil é signatário da Convenção Abolicionista Internacional de 1949, que já naquela época propunha que os países deveriam envidar esforços para elaborar políticas de proteção social às mulheres que se encontrassem em situação de prostituição. O Brasil assumiu parte das normativas convencionadas, não criminaliza formalmente as mulheres que se ocupam na prostituição, porém não oferece seguridade social a elas, assim como não oferece a outros segmentos de mulheres como o das donas de casa, das trabalhadoras rurais, das artesãs, das cabeleireiras, das domésticas (embora a legislação esteja avançando) etc.
Prostituir-se é mais uma das ocupações desvalorizadas das mulheres, mas longe de ser uma ocupação como outra qualquer, pois ela traz mais estigmas, discriminações e vulnerabilidades do que todas as outras juntas.
Do ponto de vista criminal, o Código Penal Brasileiro criminaliza a maioria das pessoas que se empenha na organização, facilitação ou exploração da prostituição alheia e apenas flexibiliza (com a nova lei 12015/2009) o lenocínio propriamente dito, que é manter “casa para fins de exploração sexual” por conta própria ou de terceiros. Mas, não criminaliza quem se prostitui e nem o “cliente” daquela (e) que se prostitui.
O escopo da lei penal no que tange a prostituição se encontra no Capitulo que trata do lenocínio e do trafico de pessoas, entre os artigos 227 e 231-A do Código Penal.
Durante décadas que ultrapassaram séculos a prostituição explorada pelo lenocínio, por proxenetas e rufiões deveria ser criminalizada como crimes contra os costumes. Muitos criminalistas não entendiam o porquê de se manter no Código penal artigos como o 227 e o 229 sobre induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem ou manter casa para encontros libidinosos ou onde ocorram prostituição, por não considerarem que os bens jurídicos e materiais ameaçados e atingidos por estes tipos penais fossem merecedores de uma tutela, pela dificuldade em se provar estes ilícitos ou mesmo porque, embora constem no Código penal obedecendo ao principio da reserva legal e da anterioridade da lei, estas práticas ilícitas assim como as outras deste bloco de artigos do Código são largamente realizadas na sociedade, anunciadas em jornais, em casas que possuem placas e cartões promocionais e que denotam o que e feito em seu interior. Mesmo assim nada e feito no sentido de dar eficácia a estes artigos, denotando que a sociedade, nem a policia e nem o Estado lhes dão valor.
Muitos julgados com estes argumentos que inocentaram proxenetas e até mesmo rufiões, semelhantes aos anteriormente expostos, têm servido como jurisprudência até hoje, principalmente, por juízes que pouco levam em consideração a violação do principio da dignidade da pessoa humana para consubstanciar suas sentenças, por não o considerarem um principio que rege o direito penal, mas que rege o direito como um todo. Estas mentalidades ainda estão famuladas em que a dignidade a que se deveria auferir e recompensar (se e que alguma deveria ser auferida e recompensada) era a da falsa moral social e os costumes.
Mas, foi exatamente a dignidade humana, que deve ser vivenciada também na sua dimensão do exercício do amor sexual, o principal matiz para que o Código penal brasileiro fosse alterado pela Lei 12015 de 2009, que entre outras coisas, colocou os crimes de lenocínio e tráfico de pessoas como crimes contra a Dignidade e contra a Liberdade sexual e não mais como crimes contra os costumes.
A exegese quanto aos bens jurídicos e até mesmo aos objetos materiais ofendidos para merecerem uma tutela penal nestes temas mudou. As dimensões de qualificação e finalidade nos tipos penais ganharam muito mais relevância. Para aqueles e aquelas que o desvalorizavam esse capitulo do Código Penal agora adquire ainda mais valor, porque o centra em relação a um principio que diz respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana: a dignidade.
A dignidade de pessoas, em especial de mulheres, é o que concretamente vem sendo violado com a forma como a exploração da prostituição se dá no país, a despeito da tolerância ou não dos mecanismos capitalistas do Estado e da sociedade brasileira e a despeito de ser um costume esta exploração. Trata-se de um costume aceito porque é um requinte patriarcal, herança da colônia, parte do estupro colonial, batizado pela filosofa Sueli Carneiro, que negras escravas e brancas vindas da Europa sofriam para conformar o miscigenado e machista povo brasileiro.
É muito importante também distanciar a noção de liberdade sexual respeitada para que a exploração da prostituição possa ser legalizada daquela verdadeira liberdade sexual almejada por toda pessoa humana, como expressão da sua possibilidade de ser feliz em sua intimidade e de maneira não tutelada ou intrometida por ninguém.
Não é bem a liberdade de se prostituir que as pessoas que se prostituem buscam, mas o direito humano de não se prostituir ou de não serem vistas como prostituídas e marginais pela sociedade como um todo. Estes direitos devem lhes ser garantidos no hoje e na atualidade da história e não postergados para um incerto momento ideal em que todos e todas respeitarão os direitos humanos e atingiremos a tão almejada dignidade humana.
Na realidade concreta do dia-a-dia o que vemos é uma dura situação em que mulheres de todas as idades, de todas as regiões, mas, principalmente, negras advindas de regiões paupérrimas e das fronteiras intermediadas por grandes projetos de desenvolvimento e por grandes vias, por terra, ar, rio e mar são discriminadas, xingadas, excluídas e marginalizadas pelo sistema informal de punição e criminalização que existe neste país, em que seu principal agente ao invés de proteger seres humanos da ignomínia da violência e da insegurança os introduz ainda mais em situações vexatórias de indignidade, violência e desumanização.
Falamos do Estado e de seu aparato policial-militar. Falamos também do poder da justiça que ainda não se imbuiu de institutos e de meios de fazer valer as normativas legais assumidas no ordenamento jurídico brasileiro para conter esta criminalização informal que somente aprofunda sexismos e desigualdades de classe, gênero, raça, orientação sexual e etnias.
Falta à justiça e aos defensores/as de direitos humanos entenderem sobre quem se prostitui e como se dá, de fato, a prostituição no Brasil e tratar isto de forma crítica e de acordo a paradigmas que questionem as desigualdades anteriormente mencionadas.
Com relação às desigualdades de gênero, falta também enfrentar as terríveis desigualdades estabelecidas histórica e culturamente entre as mulheres, mas que se expressam principalmente no binômio santas x putas. Enquanto as mulheres não superarem todas as formas de discriminação existentes entre elas mesmas nenhum dos grupos alcunhados por estes rótulos sociais poderão se encontrar com a dignidade humana que pode vir de um real sentimento de liberdade e de autonomia, que a nenhum será dado, mas conquistado com a aproximação virtuosa entre ambos e a superação deste par contraposto, que tanto mal faz às mulheres e aos homens de forma geral.
Com relação à forma como estas mulheres são exploradas no mundo do lenocínio ou do tráfico de pessoas, falta compreenderem as intrincadas redes mercadológicas e de objetação do corpo da mulher como algo a ser colocado no mercado seja como ferramenta ou como máquina sexual para produzir o principal produto objeto de necessidades e desejos: o paupérrimo prazer/alívio cultivado pelas fantasiásticas fabricações de necessidades do capitalismo, prazer muito distante daquele sonhado pelo sonho da liberdade sexual e da autonomia do movimento feminista.
A PROSTITUIÇÃO E NOSSA VISÃO ANTICAPITALISTA FRENTE AO ESTADO E À SOCIEDADE
Apartadas e apartados de tudo o que já foi dito, para chegarmos a propor alternativas além da prostituição ou como vivê-la com mais dignidade enquanto for meio de subsistência das pessoas dentro desta ordem capitalista é preciso fazer uma acurada análise sobre até que ponto mesmo a prostituição produz relações passiveis de ser computadas como relações capitalistas que, portanto, mereceriam e precisariam ser regulamentadas em níveis de produção, de mercado e de financeirização.
A primeira pergunta que nos devemos fazer é se é mesmo uma forma de trabalho. Quem vende, quem compra, quem atravessa, o que compra? Gera riqueza? Há lucro? Quem tem esse lucro? Em que medida, o/a explorador/a capitalista tem mais-valia? Em cima de quê? Em caso de regulamentação da ocupação de prostituição quem seria patrão, quem seria empregada/o assalariada/o? Seria mesmo necessária uma regulamentação para uma ocupação autônoma e que deveria contemplar apenas as pessoas envolvidas na atividade do amor sexual, seus corpos e suas decisões sobre eles?
Outras perguntas importantes: Qual é a rota virtuosa nas atividades relacionadas com a prostituição, do ponto de vista de quem ganha e do ponto de vista de quem trabalha, para que se considere a prostituição como mera relação entre trabalhador/a e capitalista? Quem detém os meios de produção, quem detém a força de trabalho?
Qual é a mercadoria que vale mais do que vale na prostituição? É o trabalho da “pessoa que se prostitui”? Se for, então, por que o/a capitalista seria o patrão/patroa se o corpo/meio de produção principal é da própria trabalhadora ou do próprio trabalhador? A quem caberia a decisão e escolha do que e como fazer? Não se trataria de trabalho pessoal e autônomo a cada novo contrato que deveria ser combinado apenas entre os envolvidos na atividade sexual? Proxenetas e rufiões não seriam exploradores mesmo, usufruidores mesmo da atividade e da dignidade alheia?
Os direitos buscados pelas pessoas que se prostituem quando pensam na ocupação que realizam não seriam muito mais direitos de seguridade social e de dignidade sexual do que propriamente direitos trabalhistas, os quais poderiam ser estabelecidos em regimentos ou códigos de ética construídos entre elas e os próprios clientes e entre elas e as parceiras de trabalho?
Não parece claro que o que se visa regulamentar quando se fala em regulamentação da prostituição nesta etapa histórica é muito mais o lenocínio e o rufianismo do que propriamente a ocupação de prostituta? Que o que se busca mesmo é a descriminalização destes ilícitos penais que hoje se configuram como crimes contra a dignidade e a liberdade sexual das pessoas, ou seja, contra direitos fundamentais da pessoa humana?
Cabe ainda perguntar, levando em consideração os círculos virtuosos de cada parte na relação capitalista, com relação à regulamentação da prostituição: O que a mulher ou pessoa que se prostitui ganhará? O que ela passará a fazer? Como ela se formará para isto? O que o/a atravessador/a, facilitador/a ou agenciador/a ganhará? O que a polícia ganhará? O que o Estado ganhará? Que tipos de impostos serão criados? O que o Grande Capital ganhará com a regulamentação da prostituição no nosso país? Que sorte de grandes negócios seria favorecida com a regulamentação? Que sorte de negócios seria dificultada? O que a sociedade ganhará? O que a cultura ganhará?
É preciso responder estas perguntas, dentro da lógica capitalista, para que entendamos o que está em jogo na disputa das três correntes que enfocam a prostituição porque elas têm intenções diversas, já vimos isto. Importante também para chegarmos a pensar o que proporíamos como socialistas feministas de um Partido como o PSOL – Partido Socialismo e Liberdade, para muito além do capitalismo, como diria Mészarós.
OS PROJETOS SOBRE PROSTITUIÇÃO APRESENTADOS NO LEGISLATIVO FEDERAL

Nos últimos 20 anos foram os seguintes os principais projetos de leis propostos na Câmara Federal e no Senado sobre o tema da regulamentação/ legalização da prostituição:
Projeto para legalizar casas e estabelecimentos de prostituição (Tartuce).
Projeto Para retirar do Código Penal a parte sobre o lenocínio, deixando apenas o artigo referente à criminalização do rufianismo (Gabeira).
Projeto de legalização de trabalhos relacionados com as atividades prostitucionais e regulamentação dos “trabalhadores da sexualidade” (Valverde)
Projeto de Lei “Gabriela Leite” que dispõe sobre a descriminalização do lenocínio e propõe limites para a exploração da prostituição, mas a admite parcialmente chegando a propor a porcentagem máxima admissível sobre o valor do programa de quem se prostitui (Jean Wyllys).
Todos são projetos voltados primeiro a descriminalizar o lenocínio para depois propor a regulamentação da ocupação de se prostituir. Nenhum destes projetos foi construído, discutido e aprovado pelo conjunto de pessoas envolvidas na prostituição, nem por movimentos que expressam pensamentos e práticas relacionadas com as outras linhas além da regulamentarista. As mulheres em situação de prostituição que não desejam a regulamentação e que são a grande maioria, as “ex” ou as que estiveram em situação de prostituição, os homens que trabalham como garotos de programa foram sujeitos excluídos deste processo e o único sujeito político interlocutor admitido foi a Rede de Profissionais do Sexo, principalmente na pessoa da sua liderança, Gabriela Leite, porque desejam a profissionalização, apóiam a legalização do lenocínio e até chegam a propor a margem de lucro de 50% para os proxenetas sobre a atividade das “profissionais do sexo”. Mas, elas são minoria neste país. São a minoria que passa uma vontade como se fosse a da maioria, que, calada e invisível, não poderá se queixar depois dos malefícios causados por uma mal digerida descriminalização e/ou regulamentação e nem poderá se beneficiar porque muitas delas não têm interesse nisso e outras serão excluídas dos novos formatos e contornos que a atividade prostitucional tomará no país.
Nenhum destes projetos teve a iniciativa popular e todos foram escritos por homens. São detalhes muito importantes a serem levados em conta, pois os deslegitimam do ponto de vista do protagonismo e da destinação das leis e os deslegitimam também, pois o olhar, a visão sobre o corpo das mulheres e até mesmo as formas de prostituição de homens e mulheres são muito diferentes em nosso mundo. Detalhes que passam do entendimento, do sentimento, até mesmo do inconsciente para canetas e computadores na hora de elaborar a lei.
Foi exatamente esta deslegitimação, principalmente, quanto ao protagonismo dos sujeitos que derrotou os mencionados projetos de lei até agora. Muito mais do que o argumento da violação da dignidade humana, do aviltamento à moralidade pública ou a atuação fundamentalista das igrejas. O desejo dos sujeitos, a apropriação e validação de uma lei pela maioria são pontos a mais para garantir sua eficácia e para a aprovação de uma atividade parlamentar.


A PROSTITUIÇÃO E O SOCIALISMO QUE QUEREMOS CONSTRUIR
Preocupado em entender o fenômeno da prostituição no Brasil, em discutir sobre o tema, principalmente quando um de seus mais importantes parlamentares em nível federal propõe um projeto de Lei que visa à regulamentação da prostituição, O PSOL – Partido Socialismo e Liberdade inicia uma série de debates, com as mulheres do seu setorial feminista, com as mulheres das diversas tendências políticas que compõem o partido e até mesmo com o conjunto de filiados e filiadas em núcleos regionais. Três olhares deveriam sobreguiar estas discussões sobre o tema: que resposta o feminismo junto com o socialismo daria? Que respostas dariam os diferentes socialismos considerados hoje pelo Partido? Que respostas daríamos para muito além do capitalismo e seu reformismo neoliberal?
Faz-se necessário que todas as tendências e setoriais do Partido discutam a prostituição e construam suas teses sobre ela, e que o PSOL busque respostas consensuadas pela maioria, a fim de que sejamos compreendidos e validados pelo conjunto daquelas e daqueles que têm interesse nessa reposta. Se as mulheres e homens em situação de prostituição participarem da construção destas respostas, tanto e muito melhor.
Para qualquer modelo de socialismo que pensemos é preciso levar em conta que na prostituição que queremos enfrentar tem um sujeito com sexo, geração e gênero majoritário, de uma classe social despossuída e na base piramidal da sociedade, remanescente de etnias colonizadas, sem acesso às políticas sociais e/ou proteção social e imerso em um sistema de desenvolvimento econômico e político que defende e promove o grande capital com meios neoliberais, sendo, na maioria das vezes o promotor da prostituição feminina e não o seu coibidor.
Reconhecemos nisto a possibilidade da emersão da luta de classes? Reconhecemos nas mulheres em situação de prostituição a possibilidade de se constituírem como um sujeito político? Um sujeito revolucionário em potencial?
Temos o desafio de ajudar a construir grupos e movimentos sociais fortes, de politizar as mulheres e homens que estão em situação de prostituição e mostrar o real cenário da prostituição, quem explora e quem é explorado. Quais são as redes que atuam nesta questão? Como contribuir para a organização das mulheres e homens que se encontram em situação de prostituição sem violar seus direitos fundamentais rumo a propostas para além do capitalismo oportunista?
É possível fazer movimento de massas no enfrentamento à prostituição com sujeitas invisíveis? Como fazer? Com que forças e com que oportunidades?
“O desafio maior do mundo do trabalho e dos movimentos sociais de esquerda é criar e inventar formas de atuação autônomas, capazes de articular e dar centralidade às ações de classe contra o capital e sua lógica destrutiva. Isso numa fase em que nunca o capital foi tão destrutivo em relação ao trabalho, à natureza e ao meio-ambiente, em suma, à humanidade” (Ricardo Antunes).
“A ação contra o domínio do capital em busca do socialismo deve articular luta social e luta política num complexo indissociável.” (Mészarós, 1995).
*Bernadete Aparecida Ferreira é presidenta do PSOL – Tocantins, educadora popular que atua a 22 anos junto às mulheres em situação de prostituição, tendo sido a I assessora nacional do GMEL – Grupo Feminista Mulher, Ética e Libertação. É também acadêmica de direito, feminista da AMB e coordenadora político-pedagógica da Casa Oito de Março – Organização Feminista do Tocantins.

Fonte: www. casaoitodemarco-to.blogspot.com.br

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