sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Terra sem lei: prostituição, drogas e violência na maior obra do PAC


Jaci, em tupi, quer dizer “deusa-lua”, entidade protetora dos amantes e da reprodução. Paraná quer dizer grande rio. Jaci Paraná é o nome de um pequeno, pobre e empoeirado vilarejo de Porto Velho, onde a deusa indígena deve estar tendo bastante trabalho. Jaci é o maior bordel a céu aberto de Rondônia e talvez um dos maiores do país.

  
Tudo em Jaci gira em torno da prostituição.

São 44 pequenos cabarés construídos em casas feitas de tábuas de madeira e telhas de fibra. É mais do que a soma de todos os mercados, padarias e farmácias da região. A qualquer hora, do dia ou da noite, garotas de programa se exibem na porta dos bares, vestidas em pequenos shorts jeans e tops apertados, deixando as gordurinhas da barriga à vista.

Elas começaram a chegar de vários estados do país há três anos, pouco antes da construção das usinas hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio. Juntas, as obras empregam 35 mil trabalhadores, na grande maioria homens, e formam a maior obra do PAC, o principal projeto de desenvolvimento de infraestrutura do governo federal. A partir daí, Jaci virou a promessa do novo Eldorado brasileiro, a terra das oportunidades — para homens e mulheres.

"A prostituição infantil é sutil. Dar um presente é suficiente para dormir com uma menina" – Noelle Xavier, delegada

A sexta-feira seguinte ao dia 5 é a data mais aguardada do mês em Jaci Paraná — a 30 quilômetros de Jirau e 90 de Santo Antônio, a vila virou o polo dormitório dos trabalhadores. É quando os funcionários das obras vão para os bares festejar as folgas do fim de semana com o pagamento no bolso. Jogam sinuca e carteado, fumam, tomam cerveja e gastam boa parte do salário em fichas de jukebox, que toca forró, brega e sertanejo em um volume que torna impossível qualquer conversa.

Os hits são “Madri”, de Fernando e Sorocaba, e as músicas da banda Calcinha Preta. Durante o dia, é possível encontrar homens vestidos com o uniforme de trabalho, circulando nos bordéis. À noite, “os amigos” (como são chamados pelas prostitutas) chegam nos bares de sorriso no rosto, banho tomado, cabelo penteado, calça jeans, camiseta e, quase sempre, boné. Os cabarés e as ruas de terra ficam lotados de homens, na maioria das vezes jovens. As meninas chegam a fazer 15 programas na mesma noite e ganhar R$ 1 mil em algumas horas de trabalho.

Elas dividem os ganhos com as cafetinas, donas dos bares, que, em geral, são mulheres mais velhas com longa experiência na profissão.


 A maioria delas veio de uma mesma cidade, Sapezal, em Mato Grosso, onde há uma corrutela (como os locais costumam chamar a área onde ficam os bordéis) famosa. Muitas garotas acompanharam suas chefes na busca pelos salários das obras do PAC. Outras vieram do Acre, do Maranhão e do próprio estado de Rondônia. Quase sempre viajam de carona com pouco ou nenhum dinheiro e pagam a viagem aos caminhoneiros em serviços.

Os bares costumam ter de duas a quatro funcionárias fixas: a gerente e as outras ajudantes, que moram em cubículos de madeira nos fundos dos cabarés, na beira da estrada. Os quartos são precários, construídos, muitas vezes, sobre as fossas. O mau cheiro é permanente.

É parte do trabalho das prostitutas fazer com que os clientes consumam durante o máximo de tempo possível antes do programa. Elas conversam, sorriem, fumam, dançam, sentam no colo deles, antes de chegar ao objetivo final.

Os preços em Jaci, aliás, estão inflacionados: uma cerveja de garrafa custa R$ 5, uma sandália rasteirinha, R$ 80. Alguns clientes frequentam os cabarés apenas como bar.

“Tem homem que quer só conversar. Eles vieram de longe e ficam muito sozinhos. Tenho até de pedir pra eles irem embora”, diz Cláudia*, uma morena de cabelos compridos, sorriso doce e olhos grandes. Ela tem 24 anos, está grávida de cinco meses e pede para não ser identificada — a família não sabe o que ela faz exatamente em Jaci. Ela diz que recebe R$ 3 mil mensais pelo trabalho como gerente do bar e como prostituta, e mora de graça em um quarto de dois metros quadrados nos fundos do boteco, onde nos recebeu. Assim que entramos no quartinho, um amigo que n?o notou nossa presença a puxou pelo braço para a cama. Ela rispidamente tirou a mão dele e ordenou que saísse. Ele obedeceu rapidamente e ela, sorrindo, mas sem coragem de nos olhar nos olhos, esticou uma pequena fronha limpa em cima do colchão sujo e florido, onde dorme e trabalha.

Mãe de três filhos, dois meninos de 8 e 6 anos e uma menina de 3, ela saiu pela primeira vez de Porto Velho há três meses em busca dos ganhos de Jaci, famosos na região. Diz que faz programas para sustentar “os meninos” e sonha com um emprego na usina.

O pai dos filhos mais velhos morreu assassinado há cinco anos. “Até hoje não sei o motivo. Ele trabalhava numa fazenda por aqui. Atiraram quando ele tava saindo pela porteira, de carro”, diz, com lágrimas nos olhos.

“É o amor da minha vida. Tu quer saber se sinto saudade dele? Ôxi, até hoje. Mas gosto de falar disso, não”.

Viúva, Cláudia se apaixonou pelo professor de biologia da escola, com quem foi morar. Ele largou a mulher para ficar com a aluna e tiveram uma filha.

“Digo que estudei, não digo que casei. Larguei a escola por causa da bebê, mas durante todo o tempo que fiquei com ele só fazia estudar. Fiz curso de digitação, de recepcionista.”

A paixão acabou, ele voltou para a ex-mulher e os cursos não ajudaram Cláudia a encontrar um emprego na cidade. Foi quando ela engravidou de um novo namorado. Ele contestou a paternidade e o namoro acabou.

Cláudia deixou os três filhos com a irmã e mudou-se para Jaci. No começo de maio, quando a visitamos pela última vez, ela nos contou que o pai do bebê renegado foi procurá-la no bordel. Deu um pequeno par de brincos e disse que sentia saudade.

“Eu acho que gosto dele, mas não vou voltar agora só porque ele quer. Mas, olhe, tem que gostar muito para vir me procurar nesse fim de mundo, tem não?”.

Dentro dos cabarés, as cafetinas não costumam aceitar prostitutas menores de idade. Nas ruas, no entanto, é possível encontrar adolescentes circulando em trajes justinhos durante toda a noite.

Elas se concentram na boate do “reggae”, que apesar do nome toca funk, e na “Esquina do Geladão”, onde há DJ e pista de dança. Nesses lugares, elas bebem e dançam sensualmente rodeadas por homens. “A prostituição infantil em Jaci é muito sutil. Não é ostensiva. Os homens presenteiam as meninas com um tênis, um celular e isso é suficiente para que consigam dormir com elas”, diz a delegada Noelle Xavier, da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente de Porto Velho. Muitas vezes os pais das garotas são coniventes, segundo Noelle, pois a miséria é o principal motivador da prostituição infantil no vilarejo. “Já teve pai que veio tirar a filha da escola dizendo que estudo não dá dinheiro e levou a menina para os bares”, diz Tarcísio Inácio Ramalho, vice-diretor da escola estadual Maria de Nazaré dos Santos, onde estudam os adolescentes de Jaci.

Mariane, 13, brincava de boneca até o ano passado, quando perdeu a virgindade, engravidou e largou a escola

  
Além da prostituição, o tráfico também acontece à luz do dia, principalmente nos bordéis, onde as próprias prostitutas vendem maconha, cocaína e crack. Traficantes também rondam a corrutela de moto. O vilarejo fica a 140 quilômetros da fronteira com a Bolívia. Essa proximidade colocou Jaci dentro da rota de entrada da pasta de coca no país. “O consumo de drogas, que já era alto, ficou ainda maior depois da chegada das usinas”, diz a conselheira tutelar Ângela Fortes. Joana*, 43 anos, mora em Jaci e é mãe de três jovens. Ela conta que tirou seu filho da cidade depois de ele ter se envolvido com drogas, no ano passado.

“Não sei direito o que ele consumia, acho que era maconha porque ele fumava e tinha um cheiro bem forte. Meu filho disse que era a própria polícia quem vendia. Numa vingança, os policiais invadiram minha casa e disseram que encontraram uma quantidade enorme de droga no quarto dele. Meu mundo caiu. Criei meus filhos sozinha, o pai deles foi assassinado em uma briga com traficantes. Quando soube que meu filho estava envolvido, vi o filme se repetir na minha cabeça. Ele foi preso, mas depois inocentado na investigação. Não tive coragem de trazê-lo de volta. Mandei meu menino para casa de parentes em outro estado.”

Os filhos de Jirau

Enquanto o tráfico é a grande ameaça aos rapazes, a gravidez na adolescência é um dos principais problemas das meninas de Jaci. Nos primeiros três meses do ano, 33 meninas com menos de 18 anos começaram o pré-natal no posto de saúde de Jaci. Boa parte delas engravidou dos funcionários das usinas.

Em meio à pobreza, os trabalhadores das firmas representam uma possibilidade de ascensão social. Mariane* tem 13 anos e está grávida de 4 meses. Mudou-se para Jaci há um ano com a mãe, Lúcia*, e três irmãos. Lúcia buscava um emprego no comércio. Quando a família chegou, a mãe começou a trabalhar todos os dias da semana, das 5 h às 14 h, num restaurante e, das 15 h às 22 h, em outro, e Mariane ficava em casa com os irmãos. Foi quando conheceu o pai do seu filho, funcionário da usina, e morador da sua rua.

Perdeu a virgindade e engravidou aos 12 anos.

"Ele ficou assustado quando soube que eu estava grávida. Não falou nada”, diz Mariane, que abandonou a escola porque anda muito sonolenta em função da gravidez. “Eu também fiquei assustada, mas nunca pensei em tirar.” Mariane diz que menstruou pela primeira vez aos 10 anos e parou de brincar de boneca no ano passado.

Os médicos que a atenderam no hospital de Porto Velho instruíram Lúcia sobre as medidas que ela poderia tomar caso quisesse denunciar o pai do bebê por abuso de menor. “Eu não quis que ele fosse preso, não. Se ele fez o filho, vai ter de assumir”, afirma Lúcia. Desde que foi confirmada a gravidez, o sustento de Mariane, que ainda mora com a mãe, ficou por conta do pai do bebê.

“Jaci Paraná é um Velho Oeste” é uma frase que se ouve com frequência na região. Se lá a noite começa barulhenta e animada, à medida que a madrugada chega, um clima de tensão toma conta das ruas e dos bordéis.
Os cabarés fecham as portas à meia-noite — horário em que começam a sair as brigas entre a clientela exaltada. Os moradores, que quase não saem às ruas depois que escurece, não ficam sequer na janela de casa, como em qualquer cidade do interior.

A primeira delegacia do vilarejo foi inaugurada na última semana de abril, no distrito de Nova Mutum, a 15 quilômetros de Jaci. Ou seja: quem não tem carro tem de caminhar duas horas para chegar até lá. A delegacia não tinha telefone até o fechamento desta edição e só funcionava pela manhã. A delegada responsável também não tem celular, segundo informações da Direção Geral da Polícia Civil de Rondônia.

O aumento populacional (moradores falam em 20 mil novos habitantes na vila que antes comportava 4 mil) trouxe mais violência para Jaci. São histórias de assalto à mão armada à luz do dia, brigas com facadas durante a noite.

Além do tráfico, os conflitos de terra têm gerado mortes violentas no vilarejo. Com o anúncio da chegada das usinas, o valor dos terrenos subiu. Segundo moradores, um lote de 400 metros quadrados valia R$ 100 há dez anos. Hoje vale R$ 10.000. Como boa parte dos terrenos de Jaci não possui documentação, instaurou-se uma briga pelas terras sem dono — ou com mais de um dono. As disputas, em Jaci, costumam ser resolvidas na ponta da faca ou com balas de revólver.
Fonte: Revista Marie Claire

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