segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

A crise chegou à prostituição em Portugal


Os clientes são menos, pagam menos, e elas são mais e cada vez mais desesperadas. “O sexo é um luxo? O que vai fazer se tiver de escolher entre isso e dar comida aos filhos?”

Ainda não é hoje que Daniela vai acordar e perceber o que acabou de acontecer. Retocou no retrovisor do carro o lápis preto na pálpebra do olho, vestiu uma camisa aos quadrados, pôs uns calções de ganga curtos e umas botas de salto alto para parecer mais alta, mais delineada. É, de todas, a menos aperaltada para a noite. A menos maquilhada. Uma das poucas que não soltou o cabelo. Mas é a primeira que um homem chama: num roteiro em que os carros que circulam, noite após noite, são quase sempre os mesmos, a novidade é sempre o mais apetecível. Quando volta, Daniela bate a porta do carro, corre para junto das amigas e ri-se como uma perdida. Na cara nenhum sofrimento, nenhuma dor. Ninguém diria que foi a primeira noite dela.

Meia hora, 40 euros, porque os homens agora regateiam e já lá vai o tempo em que a regra era 50 euros por uma ida ao quarto. Faz contas de cabeça na tentativa de perceber quantos carros e pensões terá de percorrer para salvar os pais das dívidas. Tenta convencer-se de que não foi assim tão mau. Que 40 euros por um “beijinho”, o eufemismo usado para o sexo oral no roteiro da prostituição, é um bom dinheiro. Quando se enfia dentro de um casaco de capuz para a fotografia, não há lápis preto nem salto alto que a encubra: Daniela tem 20 anos, maçãs do rosto de uma adolescente. Ainda não será hoje que vai acordar. “Há o dia em que lhe vai cair a ficha e não vai conseguir parar de chorar. Acontece a todas, mas não é imediato”, conta Eva, a amiga do Algarve que nesta mesma noite faz dois anos que está na rua. “Ela estava a dormir na minha casa, não queria que ela viesse para aqui, nem que me pagasse nada. Mas os pais, pelo que percebi, estavam cheios de dívidas e ela não quis esperar mais. Dizia que tinha de os ajudar.”

Quando começou, numa casa de prostituição gerida por uma russa, Eva, hoje com 22, tinha apenas 17. Fez 60 mil euros em poucos meses e deslumbrou-se. Não eram estes os seus planos: tinha arrendado uma casa pela internet e quando chegou à cidade não havia casa. À pressa, acabou por ter de gastar mais 300 euros nesse mês para arrendar um quarto sem janela. As coisas descambaram, mas não queria voltar para o Algarve com a independência falhada. Foi para a tal vivenda. De repente podia comprar tudo o que queria, todos os meses transferia dinheiro para a mãe, a quem dizia estar a trabalhar para uns estrangeiros bondosos. Um dia, chateou-se com a patroa, um amigo mostrou-lhe como poderia fazer dinheiro na zona do Marquês de Pombal, nas traseiras dos hotéis mais caros de Lisboa. Esteve um mês só a observar como as outras faziam, com medo de sair com um cliente. “É muito diferente. Numa casa sentimo-nos mais protegidas.” É Inverno e faz demasiado frio para vestidos e meias de seda. Os corpos gelam e agora acontece o nunca antes visto: há noites em que não se trabalha. Este pode bem ser o Inverno mais rigoroso das vidas delas – os clientes são menos, pagam menos, e elas são mais – mas ainda não está convencida a sair. “Somos pobres. É um deslumbramento. Mesmo com menos trabalho, se fizermos apenas um serviço por dia, que outro trabalho arranjaremos para ganhar este dinheiro? Compramos o que queremos, mandamos dinheiro para casa. Os nossos pais nem sonham, acham que somos bem sucedidas, falam de nós como as filhas mais responsáveis.”

A decadência No Cais do Sodré – zona onde por norma se prostituem mulheres mais velhas –, este é o primeiro Inverno que Marisa passa na rua. Há uns anos, ganhava 100 euros só por “alternar” – beber copos com um cliente. Foi stripper, fez espectáculos. Mas os bares de alterne onde trabalhava foram fechando. E os que resistem – diz ela que por pouco tempo – têm tão poucos clientes que quase já não precisam de empregadas. “Antes era uma mina. Fazia duas saídas e ia-me embora. Hoje até as melhores casas estão às moscas.” Marisa, que diz ter “40 e poucos” anos, mas todos sabem ter mais, sabe que o seu prazo está a esgotar-se. Estica o cabelo todos os dias com secador e chapa para parecer mais gira, fez uma franja e põe uma bandolete para parecer mais nova, e está convencida de que se a escolhemos para falar, entre as muitas mulheres que estavam naquele quarteirão, é porque “é a mais vistosa”. Mas não se ilude: os tempos áureos acabaram. “Isto é como em qualquer negócio. Se as pessoas não têm dinheiro não compram. Antigamente vinham homens com muito dinheiro. Agora é só pobres, canalhada. Só vejo é tesos.”

Tem uma filha de 16 anos, que não sabe o que faz todas as noites – “Para quê contar se a vai fazer sofrer?” –, não tem marido, faz mais de uma década que não vê a família. Teve várias paixões estrondosas, com fins igualmente estrondosos. Quando os clientes começaram a fugir, tratou de desfazer-se do ouro que comprara nos tempos em que perdeu a conta ao dinheiro que ganhava. “Acho que vendi por menos dois dígitos do que comprei.” Já tentou desfazer-se dos serviços de cristal caríssimos que também comprou às prestações, mas não sabe como, porque até essas lojas já fecharam. “Tenho coisas valiosas que podia vender. Quem me as vais comprar? Naquela altura tinha dinheiro e perdia a cabeça.” Não vai ter uma reforma, já quase não tem poupanças. A solução foi procurar a rua, na zona onde os seguranças dos bares a protegem. “Se não fossem eles, já estava morta. Agrediam-me todos os dias.” Foi obrigada a baixar os preços, mas impôs um limite. “Antes era 100. Agora não faço por menos de 40. Se querem, querem, se não querem procurem outra.”

A independência Noutra zona da cidade, há quem faça por menos. Quando Andreea chegou da Roménia, há cinco anos, ainda conseguia cobrar 40 euros. Agora, ou tem sorte e lhe aparece um cliente antigo, ou o mais provável é acabar a receber 20 ou 25 euros por estar com um cliente durante meia hora. “Mais 20 que 25”, diz, três horas depois de ter começado a trabalhar e ter tido apenas um serviço porque um amigo lhe ligou. “As pessoas andam tristes, têm problemas, vejo cada vez mais gente a falar sozinha pelas ruas. Para ter sexo é preciso ter dinheiro e também alguma alegria. Quem é que triste quer ter sexo?”

Andreea atende em hotéis e pensões, nunca gostou de carros. Mas o mais frequente é terminar os fins de tarde na pensão do 4º esquerdo, onde acabam quase todas as mulheres que se prostituem na zona da Praça da Figueira, na Baixa de Lisboa. No rés-do-chão e no primeiro andar, uma loja vende Vista Alegre e outras louças caras. À medida que se sobe uns andares, tudo fica mais decadente. Os degraus perdem a alcatifa, a madeira entorta, o cheiro piora. Do lado de lá da campainha da “Casa de Hóspedes”, aparece metade de uma mulher que não quer falar sobre o negócio. “O patrão não está e deixei o ferro ligado.” A porta fecha, sem estrondo. As fantasias dos clientes morrem ali.

Perto dos 50 anos, com duas filhas crescidas na Roménia, Andreea, pele moreníssima, vestido e leggins discretos, já se agarra ao corrimão quando desce as escadas, a pensar qual vai ser o dia em que vai voltar para o seu país. “Só Deus sabe quando vou sair desta vida. Queria que fosse já amanhã. Há pessoas que pensam que somos de uma classe inferior, mas estamos a fazer o nosso trabalho para ter o que comer. Não estamos a roubar nem estamos a obrigar ninguém: se vêm aqui é porque querem.”

Andreea era cabeleireira na Roménia. Um dia ficou desempregada. Num outro deixou de tentar arranjar trabalho e veio para Portugal. Acabou por entrar na rota da prostituição através de uma amiga que já o fazia em Lisboa. Não consegue explicar porque não tentou encontrar outro trabalho. Em todas as esquinas da praça, há mulheres que esperam, encostadas à parede ou à beira da estrada como quem espera uma boleia. Uma portuguesa tentará mesmo convencer-nos de que está só à espera do marido. “São cada vez mais e cada vez mais portuguesas”, contam as funcionárias de uma loja. Se chegar uma nova, Andreea não se chateia, não sente que está a perder território. “Se vem é porque precisa. Que ninguém se iluda: se vêm é porque precisam de pagar dívidas, pagar a renda da casa ou sustentar os filhos. As pessoas falam sem saber que não estão livres disso, ninguém está. Acha que há dez anos na Roménia alguma vez sonhei com o que ia estar aqui a fazer hoje?”

Garante que não tem um proxeneta, e que são cada vez menos as mulheres que os têm, como se se tivessem emancipado. “Isso não aceito, o corpo é meu, ganho pelo que faço com ele e não para pagar a um homem para me controlar.” A verdade é que durante uma hora de conversa, ninguém apareceu a supervisionar.

As fantasias Na Conde Redondo, são três da manhã e Cláudia, transexual que há uns anos chegou a ganhar seis mil euros por mês, ainda não recebeu nenhum cliente. Na zona, contam as amigas que esperam sentadas no mesmo rodapé, o negócio começou a piorar no Verão do ano passado. Há alturas em que melhora, como na época do Natal, mas a tendência é para que episódios de “uma noite a render por um mês” sejam cada vez mais raros. Marisa, que entretanto arranjou um marido e não quer ser fotografada porque a sogra pode reconhecê-la, chegou do Brasil em 2005 e só na primeira noite fez mil euros. “Não me pergunte o que fiz com o dinheiro todo que ganhei.”

Na paragem de autocarro mais acima, outro transexual diz: “Nossa, já viu os carros que estão a passar? Não passa ninguém!” No espaço de um ano, o cenário mudou “drasticamente.” “O sexo é um luxo. Qual é o homem que vem à procura de sexo se tiver de escolher entre isso e dar comida aos filhos?”

Weina, pernas intermináveis, cabelo cheio de tranças, olhos de um azul incrível, insinua-se para um indiano que passa. “Do you like it?”, pergunta, enquanto espreme um peito contra o outro, dando a ilusão de que é ainda maior. “Do you want it?” Apesar do espectáculo, não consegue conquistá-lo e volta a sentar-se.

Para os transexuais, a lei é a da rua. Todos têm histórias de tortura ou de humilhação. “Já fui obrigada a masturbar um homem. Grande, musculado, giro. Um homem daqueles tinha a mulher que queria, mas a pancada dele era obrigar-me”, conta Weina. Afinal, o que é que os homens procuram na prostituição? “Tudo o que imaginar de nojento eles pedem. Imagine um filme pornográfico, é tudo o que eles têm na cabeça.”

Há fantasias quase inenarráveis: homens que querem pepinos ou saltos altos no ânus, homens que querem obrigar as mulheres a ter sexo a três, homens que gostam de vestir roupas de mulher e até homens que gostam de urinar na boca das mulheres. “Qual era a mulher lá em casa que autorizava isso?”, pergunta Weina.

“Já tive um cliente que vinha aqui só para me ver nua porque dizia que eu fazia lembrar a enteada dele”, conta Eva, enquanto as três amigas com quem partilha casa e a mesma zona do Marquês de Pombal se riem ao recordar outros fetiches.

Em cada zona de prostituição, há grupos que funcionam em cartel: combinam um preço e não baixam. Neste caso, no mínimo dos mínimos, 40. O mesmo do lado dos transexuais. Mas há sempre alguém que fora do grupo acaba por baixar esse preço. “Há muitas pessoas novas que vão aparecendo e estão desesperadas. Acabam por baixar o preço porque querem fazer dinheiro o mais rapidamente possível”, explica Eva.

É claro que há dias de sorte. “Há homens que vêm aqui só para desabafar e dão cem euros. Não são assim tão poucos os que só querem falar e por norma são os que pagam mais”, diz uma. “Tive um cliente que por altura do Natal me pagou 240 euros por meia hora num dia e 300 euros no seguinte”, acrescenta outra. E depois há todos os outros: os amorosos, os que as querem levar para jantar, os que se apaixonam.


Quando Cátia chega, vistosa e perfumada, dentro de uma mini-saia vermelha, o namorado dela está à espera. Aos 22 anos, Cátia é uma mulata com cara de artista de cinema. O namorado não pergunta nada. Beija-a, como quem a espera de um dia normal de trabalho. Não se importa por ela ter vindo dos braços de outro homem. Em casa, esperam-na dois filhos. “É claro que penso em largar esta vida quando eles forem mais crescidos. Mas se ganhar 500 euros como é que vou sustentá-los?”. Rita é a mais roliça do grupo e também veio do Algarve. Tem dois filhos e apesar de estar grávida de gémeos, não deixou a rua. “Ainda estou com pouco tempo, mais para a frente deixo.” O actual namorado começou por ser seu cliente. Quando começaram a namorar, ela largou a rua por uns tempos. “Depois não conseguia pagar as contas e tive de voltar.”

Vanessa tem 20 anos e começou a trabalhar em bares de alterne. Chega um “amigo” e desaparece numa carrinha, cambaleando, desengonçada, magra de mais. Passado um tempo, Rita agarra o telemóvel e pergunta-lhe onde está. É da praxe: sempre que uma demora mais tempo que o previsto, outra liga. Porque na rua os sustos moram à esquina. Vanessa já foi abandonada numa mata, Eva já foi atirada para fora de um carro e bateu com a cabeça num poste.

Às duas da manhã, desistem de esperar por mais clientes e combinam uma ida às Docas, como qualquer grupo de jovens adolescentes. Quando trocarem os saltos altos pelos ténis ou sabrinas que trazem dentro de um saco e descerem rua abaixo, ninguém imaginará de onde vêm. Nos bares das Docas, quando ela dançar, todos estarão longe de saber que esta foi a primeira noite da Daniela.

Fonte: www.ionline.pt

Nenhum comentário: