Quando, no dia 30 de outubro de 2007, o Brasil foi anunciado oficialmente como país sede da Copa do Mundo 2014, jamais empresários, governadores e a própria Federação Internacional de Futebol (Fifa, por sua sigla em inglês) imaginaram que haveria tanto barulho pelas bandas de cá. É que a torcida verde-amarelo também soube dizer a que veio quando numa onda desenfreada de obras, infraestrutura e até mudanças em leis que ferem a Constituição brasileira se colocou em risco a cidadania, o direito de morar, de ir e vir das pessoas.
E o que começou com algumas inquietações pontuais, dispersas nas 12 cidades que, então, vão sediar os jogos da Copa do Mundo, tomou forma e organização nacional, articulada em causas comuns, preparadas para outras mais específicas. Surgiram assim os Comitês Populares da Copa 2014, que congregam centenas de movimentos e organizações que passaram a questionar o preço que se pagará por um projeto desenvolvimentista e quem pagará por isso.
Antes de tudo, os/as representantes dos Comitês e dos movimentos (que não necessariamente integram os Comitês) que estão à frente dessa luta deixam claro: ninguém é contra a realização do evento. Mas o evento precisa respeitar os direitos das populações.
Em Fortaleza
Na capital do Ceará, a comunidade da Trilha do Senhor é um dos 22 locais que está sob ameaça de ser afetado por uma das obras estruturantes da Copa, o Veículo Leve Sobre Trilhos (VLT), que facilitará o trajeto dos milhares de turistas que circularão pela cidade durante o período até o Estádio Governador Plácido Castelo, o Castelão.
Lá, Kássia Sales é moradora há 39 anos. Chegou com dois meses de nascida, junto com os pais. Militante do Movimento de Luta em Defesa da Moradia (MLDM), ela vê na resistência uma forma de afirmar a identidade do lugar e de afirmar o espaço como um ambiente social que deve ser respeitado em todos os seus níveis.
A Trilha do Senhor existe há mais de 70 anos. Próximo a ela, existem outras 14 comunidades, todas serão diretamente afetadas pelo VLT que, pelos planos do Governo, terá 13 quilômetros de extensão e – com isso – deve atingir a 5 mil famílias que moram em torno do trilho e que estão sujeitas à remoção.
A proposta dada pelo Governo para ressarcir as famílias que eventualmente serão despejadas seria de "um aluguel social” de R$ 200,00, quantia irrisória numa capital que tem um dos custos de vida mais altos do Brasil. Outra proposta é que alguns imóveis sejam comprados. "Mas os preços são absurdamente mais baixos do que valem as casas. Tem casas que estão estimadas em 80 ou 100 mil reais e o governo que dar 10 mil, 8 mil. Ninguém sabe qual a base que estão fazendo para terem esses cálculos”, relata.
Para Kássia, mais do que passar por cima das casas, o projeto da Copa passa por cima da história e da cultura de milhares de famílias. "É como se para eles aqui não houvesse vida. Nós temos escolas, igreja, associações, trabalhos sociais, curso de balé, inglês, vamos ter teatro. Estamos encontrando nossa qualidade de vida da forma que nos é possível. Mas toda essa luta, todo esse histórico não é levado em consideração. Nós não somos contra o VLT, mas somos resistentes no sentido de dizer que para ter VLT não precisa ter remoção. O que se está fazendo é uma higienização, afastando os pobres para as margens”, denuncia.
Em Natal
A questão das remoções foi um ponto forte de mobilização dos Comitês e dos movimentos organizados neste ano de 2011. Em Natal, capital do Rio Grande do Norte, segundo estimativas do Comitê local, cerca de 600 moradias podem ser afetadas diretamente por conta da construção de um viaduto.
Rosa Pinheiro, arquiteta e integrante do Comitê Popular da Copa de Natal, afirma que além das possíveis remoções, a questão do impacto ambiental não está sendo levada em consideração nas obras para o mundial. As obras, acrescenta, poderão atingir áreas de mangue.
Ela também fala sobre os valores destinados tanto ao estádio e às reformas do aeroporto. Com uma cidade cujo déficit habitacional chega a 24 mil casas, de acordo com programa habitacional da própria Prefeitura de Natal, os gastos com a construção de um novo estádio são considerados exorbitantes. O "Machadão” – como é conhecido o estádio João Cláudio de Vasconcelos Machado – foi totalmente demolido para dar lugar ao Arena das Dunas, que engloba ainda um outro ginásio, o Machadinho. Teriam sido liberados, pelo BNDES, quase 400 milhões de reais.
Rosa ressalta que este ano de 2011 foi mesmo de muita articulação e o resultado disso foi a criação da Associação dos Moradores Atingidos pelas Obras da Copa que reúne atualmente não só as famílias que estão em comunidades, mas também um núcleo classe média da cidade que resolveu se juntar.
"O que está em questão é que vários direitos básicos estão sendo violados. Existe ainda a questão da legalidade, da transparência e da legitimidade por qual está passando todo esse processo. Como cidadãos e cidadãs temos direitos, inclusive o direito de conhecer o que está sendo preparado”, disse.
Em Brasília
"A gente não é contra a Copa. Mas a Copa tem que acontecer de uma forma que seja boa para o Brasil”. A fala é de Vitor Guimarães, integrante do Movimento dos/as Trabalhadores/as Sem Teto e membro do Comitê Popular da Copa Brasília e Distrito Federal.
Brasília é um caso atípico. Sem tradição de futebol como Rio de Janeiro e São Paulo, além de outras, está incluída dentro das opções que abrigarão os jogos. Vitor questiona a necessidade de construir um estádio que, mais tarde, servirá como Centro de Convenções ou espaço para grandes shows. "Se fosse para construir um espaço assim sairia muito mais barato do que está orçado para a Copa do Mundo”, diz.
Orçado como um dos mais caros no país, o novo Estádio Nacional Mané Garrinha, terá um custo de mais de 900 milhões de reais. "Depois que terminar, o lugar vai ser usado para ser um centro, para abrigar grandes eventos, shows, as salas servirão de escritórios, de salas comerciais. Ou seja, é um custo absurdo que vai se ter para construir algo que no final não teria tanta necessidade. O dinheiro deveria ser destinado para a construção de casas para as pessoas que necessitam”, afirma.
2012 e a Lei Geral da Copa
Previsto para ter acontecido na última semana de dezembro, o projeto da Lei Geral da Copa (LGC) teve sua votação adiada para 2012. Polêmico, o mecanismo promete ser o grande ponto de mobilização para o próximo ano por parte das entidades, movimentos e organizações, que consideram o adiamento uma vitória. Mas sabem que ainda há muito por se lutar. Da forma como está proposto, o projeto de Lei 2330/11 é considerado inconstitucional, pois fere direitos históricos e básicos conquistados pela cidadania brasileira e bastante claros em nossa Constituição.
Descumprimento da meia entrada para estudantes; permissão para venda de bebidas alcoólicas; desrespeito ao Estatuto do Idoso; controle sobre qualquer produto que for vendido nos arredores dos estádios pela Fifa, que também lavará as mãos caso aconteça alguma acidente grave durante o evento mundial... Ou seja: durante o período da Copa 2014, quem governará o Brasil será a Federação.
"Em Brasília, começaremos 2012 tentando dialogar com os governos distrital e federal. Nossa maior mobilização vai se centrar para que a Lei Geral da Copa não passe do jeito que está, atropelando direitos históricos já conquistados pelo povo brasileiro. Uma Lei que foi feita para garantir o lucro da Fifa e dos empresários”, afirma Vitor Guimarães.
Cláudia Fávaro, do Comitê Popular de Porto Alegre, informa que nos dias 21 e 22 de janeiro a Articulação Nacional dos Comitês Populares se reunirá na capital justamente para definir as ações de uma Frente que acompanhará todo este processo, propondo ações efetivas para que o projeto de Lei não seja aprovado com tantos desrespeitos aos direitos do povo brasileiro.
"A ideia é que possamos apresentar emendas que mudem esse projeto. Ele [o projeto] é totalmente inconstitucional, viola nossos direitos e confere à Fifa poderes de governança que não podem ser aceitados”, enfatizou.
A Copa 2014
Belo Horizonte, Brasília, Cuiabá, Curitiba, Fortaleza, Manaus, Natal, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo serão as cidades sedes da Copa do Mundo em 2014.
Fonte: adital
Um comentário:
Parece haver uma correlação entre a cor da pele e locais de ocupação humana na nossa história contemporânea. É uma 1ª impressão minha que espero esteja equivocada. Os australianos ocupam soberanos seus desertos interiores naquelas vastidões ermas que eles chamam de outback. Rasgam-nas com os legendários road-trains. Dominam-as. Noutras regiões a exemplo do norte da África, um povo negro parece que para ali foi expulso. Não domina, é dominado pela inclemência e severidade do deserto, associada a uma história de consequências negativas: urbanização urbana e rodoviária fracas, escolaridade baixa, etc, etc. Imagino que a coisa historicamente é muito complexa. Mediante estas dúvidas atrozes da moral humana, eu agradeço a Deus que me fala forte sobre um desfecho escatológico e humilde da história humana montada neste local do universo, de um desfecho humilde, porém extraordinariamente justo!...:)
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