sexta-feira, 16 de setembro de 2011

As mulheres na Bíblia como referenciais simbólicos

Por Gabriela Miranda García

Na primeira década da teologia e hermenêutica feministas latino-americanas, as teólogas e biblistas centraram seus estudos na análise das mulheres na Bíblia, seja as que foram marginalizadas ou as que foram líderes, as mulheres que ajudaram na libertação e aquelas que passaram desapercebidas nos estudos das personagens da história da salvação.

Entretanto, esta leitura da Bíblia não abordava o problema da invisibilização das mulheres na história, nem tão pouco questionava o sistema patriarcal a partir do qual estes textos tinham sido escritos. Assim, para a década de 1980, se trabalha “todo o texto a partir do ângulo da mulher”. Como disse Elsa Tamez, “se busca feminizar a teologia e o Deus Trino, reivindicando papéis que a sociedade prescreveu para as mulheres e que, ao mesmo tempo, menosprezou”. Na medida em que passa o tempo, os textos patriarcais são confrontados, reinterpretados, reconstruídos.
 
Este ensaio não é um balanço do devir histórico da hermenêutica feminista latino-americana, tão pouco pretende ser uma contribuição a ela. É mais um produto de minhas próprias indagações a respeito do papel que as mulheres desempenham como personagens bíblicas.



Não é novidade afirmar que muitas das personagens da Bíblia obedecem a uma construção particular de seus autores e, portanto, a um discurso retórico para além do gênero literário em que estão inscritas. Todo interlocutor tem um papel temático, ou seja, cada personagem bíblica é uma construção sócio-narrativa em função das necessidades particulares do contexto histórico do texto e da intenção de seus autores.



Esta construção sócio-narrativa permite o desenvolvimento da trama e com ela se consegue um tecido de relações, tensões e oposições no texto. Este último aspecto é o tema de nosso ensaio: as mulheres que aparecem na Bíblia são uma construção sócio-narrativa porque são, antes que sujeitos históricos, objetos simbólicos que favorecem o desenvolvimento do texto.



I. As mulheres como representações simbólicas



Não apenas no texto bíblico, em muitos outros textos, escritos ou não, as mulheres desempenham um papel simbólico. Me atreveria inclusive a dizer que elas, mesmo no cotidiano, são em si mesmas representações simbólicas. Quer dizer, não se necesita fazer referência à mulher como personagem nem como heroína ou deusa para que as figuras femininas estejam carregadas de simbolismo. As mulheres podem representar a capacidade de sofrer, a sedução, a ternura, a traição, o engano, a morte ou a vida, pelo mero fato de ser mulher.



A cultura patriarcal lhes conferiu uma forte carga simbólica. Mas estas representações simbólicas lhes reduzem à exclusão, já que os valores que elas representam e encarnam são valores simbólicos secundários e não privilegiados pelo sistema patriarcal que os fomenta e que, ao mesmo tempo, os desvaloriza (isto acontece, inclusive, com valores como a ternura ou a capacidade de sofrer). Estas representações simbólicas sustentam e legitimam o próprio sistema patriarcal que lhes alimenta. É o que Estela Serret chama “a simbólica da exclusão”. Do meu ponto de vista, não apenas o feminino tem uma carga simbólica; tem ainda mais as mulheres em sua corporalidade, já que o corpo é o receptáculo de toda significação.



Esta desvantagem simbólica é, ao mesmo tempo, uma forma de violência simbólica porque impõe, mantém e legitima um sistema, neste caso, o patriarcal. É violência, ainda que não tão clara: é uma violência moderada, é uma “lógica de dominação exercida em nome de um princípio simbólico conhecido e admitido, tanto pelo dominador como pelo dominado”.



Ao ser objetos simbólicos e não sujeitos históricos, as figuras femininas são facilmente manipuláveis, tal como afirmam Geoges Duby e Michelle Perrot: “Se representa as mulheres antes de descrevê-las ou de falar delas, e muito antes de que elas mesmas falem. É possível, inclusive, que a profusão de imagens seja proporcional ao seu afastamento efetivo”.



As mulheres, como construções sociais, formam parte do universo simbólico e dos imaginários. Por isso, do meu ponto de vista, sua participação nos textos bíblicos gira mais em torno de um papel simbólico que de um fato histórico. Não quero dizer que as mulheres sejam elementos passivos da história. Não, não é assim. Mas, sim, é verdade que sua participação foi invisibilizada ou tornada opaca e que o próprio sistema de simbolização e controle sócio-narrativo contribuiu para esta manipulação histórica.



Nas mulheres que aparecem nos diferentes textos bíblicos se centra a morte, a libertação ou a traição da história do povo de Israel e, depois, da comunidade pós-pascal. Podemos dizer que, narrativamente, as mulheres são referenciais simbólicos que concentram na sua imagem, no seu papel e em sua corporalidade, seja a morte ou o amor de Deus pelo seu povo, seja a fidelidade ou a traição do povo de Deus.



No uso patriarcal do simbólico, as mulheres são símbolos em si mesmas, estão carregadas de um conjunto de atribuições e significações; assim, são transformadas em imagens polissêmicas e polivalentes, pois os homens se atribuíram o poder da construção de símbolos.



E, agrego, a força simbólica colocada sobre as mulheres é explorada a partir de sua submissão: se explora sua condição de sedutora, de trapaceira, de débil, distraída ou bonita, na medida em que estes atributos servem para fortalecer sua condição de sujeição, sua funcionalidade e a justificação da superioridade masculina. As mulheres na história bíblica costumam ser objeto de interpretação dos acontecimentos.



II. As mulheres nos relatos bíblicos



Muitos dos relatos bíblicos refletem a histórica tensão que recai sobre as mulheres: uma história de medo e de desejo. Nesta tensão de medo e desejo, o papel simbólico que as mulheres têm tantas vezes na história bíblica é um papel de desunião, de reafirmação, de ruptura ou de desvio dentro dos relatos bíblicos. Estas conjunturas históricas acontecem a partir dos imaginários sobre as mulheres: a história muda. Entra em crise, continua, se restaura ou se afirma graças a mulheres fiéis, trapaceiras, sedutoras ou frívolas.



As mulheres são as eternas ausentes da história escrita. Creio que as histórias das mulheres na Bíblia acontece em três categorias de análise: a ausência, a emergência e a presença.



A ausência



Nos estudos de mulheres ou a partir das mulheres, o resgate de nossas histórias foi feito e entendido a partir dos vazios e silêncios. Como mulheres, temos aprendido a nos ler e a nos encontrar nos espaços nos quais se buscou nossa eliminação e distanciamento paulatino.



Na maior parte dos textos bíblicos, as mulheres funcionam como imagens, não como sujeitos. Isto em si mesmo já é uma advertência: a representação em símbolos está ligada à ausência.



Neste abuso de imagens femininas condicionadas a cumprir papéis patriarcais, descobrimos as ausências, os vazios e os silêncios. Suspeitamos, desde já, que sua presença foi ocultada, dispersada e suplantada. A ausência das mulheres na história escrita nos textos é tão evidente como seu silêncio nas tomadas de decisão, nos espaços de direção, nos espaços públicos e, claro, nas igrejas.



A presença das mulheres na história foi pontual e ocultada e isto se evidencia ao largo de quase toda a história eclesial. Revela que uma comunidade, para ser verdadeiramente libertadora, terá que questionar as relações assimétricas que estabelece e promove.



Devemos nos dar conta de que este reconhecimento é uma oportunidade para modificar os atos violentos contra as mulheres, as decisões que se tomaram à sua revelia, sua retirada progressiva dos espaços de poder e a impossibilidade de ter acesso a eles.



A emergência



Muitas das imagens femininas que encontramos nos textos bíblicos se referem a mulheres estrangeiras, sedutoras, frívolas, impertinentes e com pouco juízo. Ou, ao contrário, a mulheres cheia de atributos positivos. Quase sempre atributos e vícios que entram em tensão e conflito. Assim, encontramos heroínas como Judith que usa seus atrativos físicos e sua astúcia como poder de controle, mas eles mesmos são tidos como maus no caso de Dalila. As mulheres entram em cena quando se requer uma explicação das condutas masculinas. São colocadas em momentos no qual a história não parece se sustentar mais, ou quando chega a um clímax; se incluem elas em momentos de crise significando mudança, desvio ou avanço da história.



No desvio do povo ou de seus líderes, as mulheres têm um papel importante. Sua presença explica apostasias e também serve como confirmadora de fidelidades. Olha-se para elas a partir de estereótipos de permanência ou de ruptura. As figuras femininas na Bíblia são figuras emergentes porque não contam a história: são objeto de interpretação. Vão para a cena porque, como figuras construídas simbolicamente ou como construções sócio-narrativas, são figuras que desencadeiam a história: a história é compreendida a partir do símbolo que elas encarnam.



A substituição das mulheres reais por imagens é a criação do que Gilles Lipovetsky chama “a mulher fictícia”, ou seja, a que não existe: “Nas estampas alegóricas se representa mulheres diáfanas cujas expressões idealizadas e não individualizadas se assemelham mais ao segundo sexo, a um anjo ou a uma criatura mágica que a um ser real”. Nesta lógica de recorrência a uma imagem feminina social e politicamente construída (e no caso da Bíblia também narrativamente construída), de modo a conseguir uma reação, a construção sócio-narrativa suplanta as mulheres reais.



Dessa maneira, dentro da narração bíblica, as mulheres como figuras emergentes da história são na realidade mulheres inexistentes. Mais, a emergência revela o papel secundário ou nulo que têm as mulheres na história construída e relatada na Bíblia.



Nem a ausência nem a emergência são um topos efetivo para reconhecer a função das mulheres na história bíblica. Não é a ausência porque há nela uma eliminação efetiva da mulher; e não é a emergência porque há nesta uma suplantação. Na ausência e na emergência, o resultado é o silenciamento e ocultamento das mulheres.



Atualmente, a função das mulheres nas nossas igrejas e teologias é praticamente a mesma. Muitas vezes, se reconhecem as mulheres quando têm um papel resolutivo, justificador ou até inovador.



A teologia da libertação, por exemplo, segue entendendo em muitos casos a teologia feminista da libertação, as teológas e biblistas e seu fazer teológico como uma simples derivação de si mesma e não como uma reflexão própria. Esquece que esta surge a partir da exclusão das mulheres como sujeitos concretos no discurso, fazer e elaboração da teologia como tal, e também da teologia da libertação.



As igrejas, de sua parte, resgatam a participação da mulher quando está vinculada a dos homens. Seu papel de ajudadora idônea é aceito sempre e quando seja secundário ao papel masculino. As mulheres somos incluídas em momentos de crise, como compensação ou apoio, mas poucas vezes como protagonistas da história, ou seja, como sujeitos plenos.



A presença, à guisa de conclusão



A presença das mulheres, então, é o imperativo atual da igreja, do fazer teológico e da sociedade em geral. Sua inclusão deve ser plena e categórica. Não é suficiente uma inclusão pela metade ou a médio prazo. Foi e é um erro a eliminação, a suplantação e a marginalização das mulheres em inumeráveis âmbitos da vida. A luta por esta inclusão é totalmente legítima porque significa a prática da justiça.



Por isto devemos questionar permanentemente tanto nosso fazer teológico como as práticas individuais, comunitárias e eclesiais. A presença das mulheres terá que se ver refletida em uma inclusão permanente que as considere em sua totalidade, despojadas de preconceitos e de lógicas patriarcais.



Numa igreja justa e equitativa, ou seja, que se move da instituição patriarcal para a comunidade Povo de Deus, devemos ser, em nossa condição de mulheres, o que María Pilar Aquino chama “protagonistas eclesiológicas”. O que implica desde a livre decisão sobre nossos corpos até o direito ao exercício da vocação sacerdotal. Num modelo inclusivo, que significará a construção de um modelo de Deus que possibilite relações não assimétricas de gênero, e tão pouco de raça, de classe ou de geração.



Em novas formas do exercício de poder, a inclusão das mulheres como protagonistas eclesiológicas terá que passar necessariamente por novas formas de exercer e conceber o poder, e numa releitura do texto bíblico de uma perspectiva feminista com categoria de gênero. O texto bíblico é um texto patriarcal e os textos de libertação estão escritos a partir desta mesma lógica. Portanto, não é suficiente fazer uma leitura libertadora; tem que ser uma leitura libertadora a partir das chamadas lutas específicas: a partir das mulheres, a partir da negritude ou a partir dos jovens.



A Igreja como tal, e as igrejas em particular, deverão se compreender como um espaço propício que garanta esta presença e não que mantenha relações de assimetria de poder, relações subordinadas e funcionais. Continuar com integrações parciais, numéricas ou secundárias, não é suficiente. Isto é manter ainda o mesmo sistema patriarcal de dominação. Desde cedo, as teólogas e biblistas latino-americanas souberam que esse não era o caminho, que colocar o foco nas heroínas era continuar com a mesma lógica do patriarcado. É necessário criar caminhos que revertam esta situação, indagar as complexidades profundas e, sobretudo, permitir que o Espírito Santo nos guie para imprimir e realizar os valores do Reino de Deus.
Fonte: Novos Diálogos

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