quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Educação para o machismo

Tenho ouvido várias histórias de garotas em idade escolar relatando o mesmo fato. Parece ter se tornado uma tendência generalizada a proibição do uso de certas peças de roupa nas escolas: shorts, minissaias, bermudas curtas e tudo o que possa “evidenciar” o corpo das meninas.

Por Marcia Tiburi

As jovens andam estarrecidas e se questionam sobre o absurdo dessas decisões. Várias vezes querem “manifestar”. Já perceberam o poder do ativismo. Pensam em “manifestar”, pois sua geração pegou o sentido da política enquanto coisa que se faz tomando as ruas. Essas jovens despertaram para o básico elemento da política já na infância. Vivem nos tempos de Malala Youzafzai e sabem muito bem quem ela é.
Sabem que o poder precisa da voz. E que é preciso dizer o que se pensa. Assim como é preciso expressar-se por meio da roupa que se usa.
Elas já sabem, e saberão cada vez mais que a roupa é política.
Além disso, as garotas proibidas de usar shorts – e peças do tipo – perceberam o machismo inerente à instituição escolar. Sabem que o machismo em nossa sociedade é estrutural. Perceberam que estão sendo tolhidas na sua expressão pessoal, e mais ainda, tem consciência da injustiça de gênero que sofrem.
Sabem que seus corpos estão sendo medidos pelos olhares dos meninos, que estão sendo marcados pelo critério da sexualidade. Elas sabem que a sexualidade dos meninos como “sujeitos” está sendo incentivada, enquanto elas estão sendo marcadas como “objetos”. Sabem que o olhar dos homens enquanto olhar de um “predador” sobre as mulheres está garantido. Mas sabem algo bem grave que até agora está mantido como uma espécie de segredo: é a instituição escolar que promove este olhar.
A instituição escolar, que teria o papel de esclarecer sobre questões conflituosas e ideológicas, proíbe que as meninas usem uma peça de roupa, ensinando que se escondam e sintam vergonha. Ensina também que sintam culpa, caso surja qualquer questão relativa aos gestos dos meninos em relação ao corpo feminino.
Ao mesmo tempo, as garotas sabem muito bem que os garotos estão sendo protegidos. E que elas estão sendo não só desprotegidas (sob a alegação de estarem sendo protegidas), mas desrespeitadas e aviltadas. Sabem que o direito de expressão e de conforto físico lhes é tirado, enquanto se dá aos garotos o direito do preconceito com todo o rol de atitudes simbólica e fisicamente violentas que dele surgem.
Ensina-se a um menino que ele tem o “direito” de olhar para o corpo de uma garota sem respeito, enquanto se ensina às meninas a terem vergonha de seu corpo e a se sentirem culpadas, mas também a aceitarem o preconceito sem questionar, coisa que elas não estão mais querendo. Ensina-se a elas que estariam sempre “provocando” o seu próprio algoz. Provocando o seu ofensor. Cinismo maior, impossível. E elas já perceberam isso.
É a este cinismo estrutural na cultura, levado a cabo pela instituição escolar que devemos chamar de Educação para o machismo.
Ela é ruim para as mulheres pela violência que provoca em todos os níveis (e por subestimar a inteligência e o lugar concreto das mulheres na vida pública da qual a escola é um laboratório). Mas é também ruim para os homens que são reduzidos a algo como “animais bestiais potencialmente violentos”, a “idiotas sem limites”, cuja violência e idiotice pode irromper a qualquer momento quando venham a deparar-se com um shorts pela frente.
Se levarmos a sério o que esta educação para o machismo nos pede, termos que tomar medidas drásticas. Se a escola fosse consequente com seus propósitos e atos, colocará os meninos em jaulas o mais cedo possível.
A coisa toda é tão autoritária que não é possível que continue vingando. A educação para o machismo é a educação para a violência que não quer se chamar de violência. Mas esta violência está cada vez mais visível. Essa educação para o machismo, que é educação para a violência, é também educação para a burrice, pois em vez de abrir os olhos, coloca tapumes na ideologia de gênero pensando que as meninas não vão perceber o que está acontecendo. Subestima a inteligência da população de meninas e de todos os que combatem o sexismo e o machismo.
Impressionante é que a instituição escolar que deveria promover a inteligência intelectual e moral, seja ela mesma tão burra. A burrice estrutural da instituição combina com a burrice machista. As duas se entrelaçam na estrutura de fundo das instituições que sempre descartam os indivíduos críticos. Na falta de argumentos respeitáveis a burrice é a vitória pela violência. O Estado achando que vai proibir professores de falar em gênero nas escolas desde a retirada da questão dos planos de educação é apenas a versão formal dessa violência toda…
Ninguém está livre dela. Mas tanto as vítimas quanto os que combatem a violência não estão nem um pouco acomodados.
As garotas não se deixam subalternizar e vitimar e, com a roupa que quiserem, vão à luta, sabendo que a luta política das mulheres é feminista, e que não tem fim.
Fonte: Revista Cult
Marcia Tiburi é filósofa
Marcia Tiburi é graduada em filosofia e artes e mestre e doutora em filosofia. Publicou diversos livros de filosofia, entre eles “As Mulheres e a Filosofia” (Ed. Unisinos, 2002), Filosofia Cinza – a melancolia e o corpo nas dobras da escrita (Escritos, 2004); “Mulheres, Filosofia ou Coisas do Gênero” (EDUNISC, 2008), “Filosofia em Comum” (Ed. Record, 2008), “Filosofia Brincante” (Record, 2010), “Olho de Vidro” (Record 2011), “Filosofia Pop” (Ed. Bregantini, 2011) e Sociedade Fissurada (Record, 2013). Publicou também romances: Magnólia (2005), A Mulher de Costas (2006) e O Manto (2009), Era meu esse Rosto (Record, 2012). É autora ainda dos livros Diálogo/desenho, Diálogo/dança, Diálogo/Fotografia e Diálogo/Cinema (ed. SENAC-SP).

É professora do programa de pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Mackenzie e colunista da revista Cult.

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