quarta-feira, 3 de junho de 2015

Religiosas Oblatas resgatam mulheres vítimas do tráfico de pessoas na Espanha

Integrantes dos projetos Oblatas na Europa
Um grupo de freiras percorre uma rota todas as semanas por clubes de encontros, estradas, sítios e apartamentos de Almeria (sul da Espanha) onde se exerce a prostituição. São freiras adoradoras e oblatas que há anos não usam hábito e viajam em uma caminhonete na qual às vezes se produzem milagres. Na parte traseira do veículo, habilitada como um pequeno salão em que as religiosas distribuem café e preservativos, vidas inteiras se transformaram --as de dezenas de mulheres obrigadas a vender seus corpos por redes mafiosas ou por puro desespero.

A rota termina em uma casa de acolhimento cujo endereço é confidencial, por segurança. Elas recebem a equipe do Jornal "El País" sob a condição de não revelar esse local nem a identidade de suas inquilinas.

"Um cigano romeno me enganou", relata Erika, vítima de tráfico. Ela tinha então 12 anos e ele, 27. "Disse que viríamos à Espanha e eu trabalharia como faxineira..." Aos 14 ficou grávida. "Então ele me vendeu para outro cigano." Erika não sabe por que valor, mas sabe que a enganou, porque quando seu novo dono descobriu que seria mãe lhe deu uma surra para provocar um aborto.

Não conseguiu. "No dia em que dei à luz, o cigano que havia me trazido para a Espanha apareceu no hospital e me disse: 'Você é minha'. E me pôs a trabalhar em seguida." Era obrigada a lhe dar 300 euros por dia. "Quando não os conseguia, me dava uma surra." Torturava-a.

Enfiava sua cabeça na geladeira; uma vez, cortou seu rosto com uma faca e, jorrando sangue, a obrigou a ter relações sexuais com ele. Erika, que agora tem 24 anos, denunciou à polícia. O julgamento está pendente e ela não vive mais na casa de acolhimento. A freira María José Palomino lembra que no dia em que a conheceu ficou doente; era a forma de seu corpo rejeitar aquela interminável história de "cachorradas".

Essa religiosa ouviu relatos terríveis e pisou nos aterrorizantes cenários onde ocorrem. "Impressionou-me muito. Eu nunca teria pensado que em um lugar assim se pudesse exercer a prostituição", lembra Palomino de sua primeira visita aos sítios de Roquetas (Almeria).

Telhados de amianto, uma cadeira na porta para chamar os clientes, mantas sobre a terra, bichos por toda parte. "Perguntei às garotas se alguma vez tinham ido ao povoado, ao cinema... Uma nigeriana me disse que fazia sete anos que estava ali e que o dono lhe levava sacolas de comida." O proprietário, um espanhol de 35 anos, cobrava 500 euros por mês pelo aluguel daquele chiqueiro, mas oportunamente cercado de estufas de plantas, isto é, de mão de obra barata em busca de sexo barato. O serviço ali custa 10 euros. E nem isso: Fatema, marroquina de 28 anos, tinha que dar 3 ao dono do sítio onde trabalhava.

"Ali iam muitos homens: imigrantes, espanhóis, jovens, velhos, bêbados, sujos...", conta Fatema. "Eu dizia a minha família que estava trabalhando como padeira." Havia chegado à Espanha com 21 anos para trabalhar na colheita de morangos em Huelva, mas isso só durou 15 dias. Seu pai tinha morrido e ela precisava enviar dinheiro para casa para manter sua mãe, seu irmão e seus dois filhos. Trabalhou nos sítios até que as freiras da estrada a ajudaram a sair do inferno. Agora tem contrato como interna em uma casa, conseguiu os papéis e pôde regressar ao Marrocos. Fazia seis anos que não via seus filhos.

Palomino acredita que começa a haver redes de tráfico de muçulmanas. "Sei de uma senhora que contratou um homem para que namorasse uma garota pela Internet e a levasse a Murcia. Ela escapou."

"Os exploradores as mantêm aterrorizadas", conta Elena Guerra, a assistente social que ajuda as freiras. Romenas, búlgaras, russas... eles ameaçam fazer mal a suas famílias. As nigerianas, com o vodu. As freiras quase nunca têm contato com exploradores ou clientes. "Em 13 anos não tivemos qualquer problema. O máximo foi uma vez que um me pegou pela cintura e me disse: 'Esta sim, é bonita!', lembra Palomino.

Perceberam que, com a crise, há mais espanholas. Mãe e filha em um clube de estrada; uma mulher galega de seus 30 anos que se separou e foi para Almeria para que ninguém a conhecesse...

Palomino afirma que ninguém na igreja jamais as recriminou por distribuírem preservativos. "Quando você está nisso, só pensa no bem das garotas. Nem pensamos em não dá-los. O que não fazemos é acompanhá-las para abortar. Informamos a elas que temos uma casa de gestantes, mas se quiserem interromper a gravidez são livres para isso." Graças a um convênio com a Junta da Andaluzia, oferecem a essas garotas - a maioria não tem passaporte - uma carteira de saúde.




"Por uma só já valeria a pena", repete Palomino, que já ajudou dezenas de mulheres. Em 2014 receberam 30 na casa. A congregação comemora com frequência grandes vitórias: o primeiro aniversário em liberdade de uma garota; documentos para uma, trabalho para outra ou o prêmio de Direitos Humanos do Rei da Espanha, concedido pela Defensoria Pública, que lhes foi entregue por Felipe VI em abril. Mas também têm grandes decepções: antigas escravas que no dia do julgamento se desmentem e abandonam o tribunal com seu explorador; vítimas que terminam com um namorado que as maltrata, ao qual justificam. "Psicologicamente as desmontam", explica Guerra. "Algumas chegam acreditar que não merecem outra vida."

Lucia, a ex-prostituta: "Eu queria arrancar minha pele"

Na última quarta-feira ela completou 31 anos, mas é em 1º de agosto que Lucia comemora seu aniversário. "Nesse dia entrei aqui e voltei à vida", relata na casa de acolhimento das adoradoras em Almeria, onde está há quase dois anos. Nos cinco anteriores, essa portuguesa que hoje estuda farmácia se prostituiu em apartamentos e clubes.

"Meu namorado me animou a virmos para a Espanha. Ganhava um bom salário (era caminhoneiro) e disse que eu não precisaria trabalhar. Chegamos em maio de 2007. Eu estava grávida. Depois descobri que ele gastava todo o dinheiro porque era viciado em jogo, e o prenderam porque matou uma pessoa com o caminhão. Então eu me vi sem trabalho, com minha filha, um aluguel e minha mãe, que tinha vindo para a Espanha. Um dia antes do Natal de 2008, abri a geladeira e não tinha nada para dar a minha filha. Todo mundo para quem eu tinha pedido ajuda me disse que não podia mais me ajudar, então me lembrei de um apartamento que tinha pequenas luzes na porta. Era evidente a que se dedicavam... então toquei."

As quatro encarregadas --francesa, alemã, brasileira e colombiana-- a despiram para tirar suas medidas e comprovar se era "adequada". "Explicaram-me que eles ficavam com a metade. Que o serviço custava 50 euros por 20 minutos, 60 meia hora e 100 uma hora inteira...", lembra.

"Havia garotas de todas as cores. Organizavam um desfile e o cliente escolhia. Nesse mesmo dia eu fiquei. Lembro como se fosse ontem a primeira vez, a pior. Chorei. Então percebi em que havia me transformado. Dinheiro fácil? Não há dinheiro mais difícil de ganhar", conta Lucia, entre lágrimas. "Ao terminar, pedi um adiantamento e comprei fraldas e leite."

Depois veio a crise. "Vinham menos clientes, e os que vinham pediam desconto. Expulsaram-me da casa em que estava por não pagar o aluguel, e fomos para uma pensão, mas custava quase tanto quanto o que eu ganhava por semana. Fui falar com uma assistente social da prefeitura e tomamos a decisão de deixar a menina em um centro, onde eu podia visitá-la. É o melhor que podia fazer, mas quando me vi sem ela o trabalho se tornou insuportável. Eu estava no clube e a ouvia chorar, como se estivesse ali. Uma companheira me disse: 'Isso passa com uma linha'. Sentia-me fracassada como mãe, como mulher... não podia me perdoar. E me viciei."

Sua filha foi dada em adoção. "No mês que vem completa 7 anos. Às vezes vejo meninas que se parecem com ela, ou que fazem um gesto ou um som como os que ela fazia. Quando for maior, gostaria que soubesse o que aconteceu."

Lembra perfeitamente o dia em que as freiras da estrada a encontraram. "Na primeira vez, fingi estar dormindo. Na segunda, uma me perguntou: 'O que você faz aqui?' Ela pegou minha mão e isso me impressionou muito. Fazia anos que ninguém tocava Lucia assim: para demonstrar carinho. "Então eu queria arrancar minha pele depois de cada cliente. Pensei: se perder esse trem, pode ser que não passe outro..." A irmã María José me disse outro dia: 'Estive no apartamento, vi sua antiga cama, e não sabe como fiquei contente porque você não está mais lá'."


Fonte: El Pais

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