"É uma boa nova para a nossa
Igreja contemporânea reconhecer o equilíbrio de gênero bem no centro de nossa
tradição católica. O Espírito Santo de Deus, a trabalho ao longo da história,
seja nas mulheres ou nos homens, traz libertação, compaixão e justiça a um
mundo à espera", escreve Christine Schenk, irmã da Congregação de São
José.
Ela trabalhou como parteira antes de cofundar o projeto Future Church, em
artigo publicado pelo National Catholic Reporter, 04-12-2014. A tradução é de
Isaque Gomes Correa. Eis o artigo.
Eu gosto do Advento. Ele é um
momento tão esperançoso e consolador para os que anseiam ver os valores de Deus
plenamente realizados “aqui na Terra como no céu”, como Jesus ensinou.
Este tempo é o do profeta Isaías,
cujas proclamações permeiam as nossas liturgias e cujos escritos inspiraram
tanto a Jesus quanto São Paulo. É aí que renovamos a nossa crença num Deus que
traz “boas novas aos pobres, liberdade aos presos e que faz brotar justiça e
louvor na presença de todas as nações” (Isaías 61).
Acima de tudo, encontramo-nos num
momento muito especial de esperança profética que remonta a mais de 2500 anos.
Recentemente, fiquei feliz em
descobrir que profetisas e escribas mulheres ajudaram a modelar a tradição de
Isaías de forma importantíssima nos primórdios do cristianismo. O livro da
pastora episcopal Wilda Gafney – intitulado “Daughters of Miriam” [Filhas de
Miriam] – descobre o fato de que, no antigo Israel, as escolas proféticas e
guildas [ou associações] de escribas eram compostas tanto por homens quanto por
mulheres. Estes grupos formados por ambos os gêneros produziram os escritos
proféticos atribuídos a Isaías e a muitas outras figuras proféticas. O estudo
doutoral de Gafney sobre a profecia antiga e o seu vocabulário técnico tem sido
considerado como o início de um novo capítulo dos estudos de gênero e bíblicos.
Dado que o Novo Testamento cita
ou alude ao Livro de Isaías mais de 300 vezes, não é exagero dizer que os
motivos fundantes do cristianismo surgem a partir dos ministérios proféticos
tanto de homens quanto de mulheres. Por exemplo, São Paulo cita Isaías mais do
que qualquer outra fonte do Antigo Testamento, e Jesus lê Isaías 61 na
inauguração de sua própria missão: “O espírito do Senhor está sobre mim, porque
ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa Notícia aos pobres; enviou-me
para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista; para
libertar os oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor” (Lucas 4, 18-22).
Então, como é que não sabíamos a
respeito das profetisas em nossa tradição judaico-cristã até este momento?
Infelizmente, os nomes de quase todas as profetas mulheres, seja na tradição
hebraica ou na cristã, se perderam. Os estudiosos acreditam que as mulheres
estavam muito mais presentes em todas as sociedades antigas do que os escritos
que temos, hoje, indicam. Só quatro mulheres nomeadas são identificadas como
profetas nas escrituras hebraicas: Miriam, Débora, Hulda e Noadia. No entanto,
as profetisas inominadas somavam, provavelmente, dezenas de milhares.
Como em inglês, o plural
masculino em hebraico bíblico pode significar somente homens ou tanto homens
quanto mulheres, tornando difícil discernir a presença das mulheres nos
registros bíblicos. Esta situação agrava-se com os preconceitos androcêntricos
que assolam todos os escritos históricos e suas interpretações, até mesmo nos
dias de hoje. Um bom exemplo pode ser encontrado em Ezra 2,55 e em Neemias
7,57, que descrevem uma guilda escribal retornando a Israel depois do exílio
babilônico. Os textos nomeiam os membros da guila como descendentes/discípulos
de um Hassophereth (literalmente, a escriba mulher) que viveu na época de
Salomão. Apenas os sacerdotes estavam acima dos escribas na hierarquia salomônica.
Esta escriba era a segunda pessoa
mais importante no tribunal do rei Salomão. A guilda dela, que provavelmente
era composta de homens e mulheres, continuaria existindo por, pelo menos, 500
anos. No entanto, a escriba iria cair no esquecimento porque os intérpretes
transliteraram, inexplicavelmente, Hassophereth de forma fonética, como um nome
próprio, em vez de traduzir a partícula hebraica feminina singular “ha”
(desinência de gênero) precisamente como “a escriba”. Gafney atribui este fato
a um preconceito de gênero.
Então, o que é um profeta? Na sua
forma mais simples, os profetas bíblicos são os homens e mulheres que proclamam
mensagens vindas de Deus para o bem do seu povo. Todos têm em comum a
capacidade de pregar com poder em tempos de crise religiosa. As proclamações
deles e delas frequentemente eram precedidas pela fórmula profética: “Assim diz
YHWH” [Assim diz Javé]. Frases deste tipo ressoam ainda hoje na missa católica,
quando na conclusão das leituras o leitor ou o padre proclama: “Palavra do
Senhor”.
A principal preocupação dos
profetas não era com o futuro, mas com a situação histórica presente e o
desafio que ela trazia à fé do povo de Deus.
Isaías histórico de Jerusalém
enxergou claramente a iminente destruição de Israel e ficou preocupado em
ajudar o seu povo a, simultaneamente, se preparar e se preservar – apesar da
aniquilação virtual. O Primeiro Isaías (1-39) nos diz que concebeu dois filhos
com uma profetisa (Isaías 8,1). Às crianças foram dados nomes proféticos:
“Pronto-saque-rápida-pilhagem” e “O resto voltará”, como presságios do que se
abateria sobre Israel. A profetisa e seus filhos se tornam parte de uma
comunidade restante junto de Isaías e seus discípulos. A partir daqui, uma
“escola de Isaías” iria surgir, iria ministrar a pessoas que haviam se exilado
e que, finalmente, voltaram ao povo de Israel por, pelo menos, os próximos dois
séculos.
Segundo Isaías (40-55) foi criado
durante a última parte do exílio babilônico (cerca de 539), mais provavelmente
por um grupo de profetas e profetisas, escribas e editores da escola de Isaías.
O Terceiro Isaías foi criado depois que Ciro, o rei da Pérsia, derrotou os
babilônios e permitiu que os hebreus exilados retornassem à sua terra natal.
Tanto o Segundo quanto o Terceiro
Isaías são famosos pelo uso que fazem do imaginário maternal relativo a Deus e
a Jerusalém. O Segundo Isaías compara Deus a uma mulher em trabalho de parto,
uma mãe que amamenta e que dá conforto a seus filhos (Isaías 42,14; Isaías
45,10, 49,15; Isaías 66,13). Em Isaías 51, Sara é chamada, junto de Abraão,
como a progenitora de Israel. O Terceiro Isaías enfatiza um Deus bondoso com
cuidados maternais. Em Isaías 66, lemos: “Alegrem-se com Jerusalém, façam festa
com ela, e todos os que a amam. Assim poderão amamentar-se nela até ficarem
satisfeitos com a consolação que ela tem (...) Como a mãe consola o seu filho,
assim eu vou consolar vocês”.
A mensagem de conforto que os
profetas de Isaías trouxeram ao seu povo sofredor era a de que Deus jamais iria
abandoná-lo. Pelo contrário, como uma mãe, ele o acompanharia e consolaria até
mesmo em meio à perseguição e ao exílio.
Não é de se admirar que a
comunidade judaica de Jesus gostava tanto de ler Isaías no momento de oração na
sinagoga. Jesus mesmo iria seguir as pegadas de uma longa linhagem dos profetas
hebraicos, tanto homens quanto mulheres, encarnando uma nova “Palavra do
Senhor”, apontando para a santidade e compaixão de Deus em seu desafio às
estruturas religiosas e civis injustas.
Dada a importância dos escritos
proféticos para Jesus e Israel, é fácil ver por que a profecia era extremamente
importante no movimento inicial de Jesus. As líderes profetisas desempenharam
um importante papel junto de seus irmãos na orientação e construção das
comunidades primeiras. Eusébio, historiador da Igreja, associa as quatro filhas
proféticas de Filipe (Atos 21,9-10) às origens apostólicas das igrejas
provinciais da Ásia Menor. Segundo São Paulo, os profetas ficam atrás somente
dos apóstolos no exercício da liderança espiritual. Ele cuidadosamente instrui
as profetisas em Corinto a cobrir suas cabeças enquanto profetizam,
provavelmente para diferenciarem o seu ministério de seitas não cristãs (1
Coríntios 11-12). Ele não lhes falou para parar de pregar e de profetizar a
palavra de Deus no culto.
É uma boa nova para a nossa
Igreja contemporânea reconhecer o equilíbrio de gênero bem no centro de nossa
tradição católica. O Espírito Santo de Deus, a trabalho ao longo da história,
seja nas mulheres ou nos homens, traz libertação, compaixão e justiça a um
mundo à espera.
Na qualidade de discípulos e
discípulas de Jesus, somos chamados a testemunhar com nossas vidas o que a sua
mãe, Maria, na esteira de Miriam, primeiro proclamou: “E sua misericórdia chega
aos que o temem, de geração em geração (...) Ele realiza proezas com seu braço;
dispensa os soberbos de coração (...) e eleva os humildes (...) conforme [Deus]
prometera aos nossos pais a Abração [e Sara], e de sua descendência, para
sempre” (Lucas 1,46-55).
Que neste Advento, sigamos Isaías
e Maria na elevação dos humildes e no fazer “brotar justiça e louvor na
presença de todas as nações”.
Nota da autora: Este artigo
contém excertos de um ensaio especial intitulado “Your Daughters and Sons Shall
Prophesy” que escrevi para o site futurechurch.org, na seção intitulada
Restoring the Women of Advent. O material que se contra na seção citada foi
pensado para fortalecer a observância do Advento e da época de Natal em sua
comunidade de fé.
Fonte: Ihu
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