O significado histórico do
nascimento de Jesus Cristo, uma criança pobre sem-teto, cuja mãe estava muito
mal abrigada, como acontece com mendigas, contando apenas com o marido para
assisti-la, é cada vez menos lembrado.
Por Jacques Távora Alfonsin
O interesse econômico-comercial
em explorar o fato para ganhar dinheiro, desde quando percebeu a história ter
mudado até o calendário para celebrar o acontecido, fez com que a figura
patética do papai Noel, hoje, seja muito mais destacada e venerada do que a do
Menino Jesus.
Nem a prova de que o tal velho
testemunha uma antiga e arraigada tendência cultural nossa de só considerar
coisa ou comportamento importado como bons e respeitáveis, o natal prossegue
imitando aqui até o frio do hemisfério norte nesta época do ano. São Nicolau,
então, cuja generosidade para com os pobres inspirou esse velho, desse também
não se cogita.
Há quem dependure chumaços de
algodão na árvore natalina para imitar a neve, a decoração das casas se esmere
em lembrar gelo acumulado mesmo que a temperatura ambiente esteja perto dos
trinta graus. Para alimentos, doces e bebidas, a mesma coisa. Tudo bem pesado,
caro e quente como se o calor daqui precisasse de um suplemento alimentar que o
acentuasse.
Embora as circunstâncias daquele
nascimento permaneçam as mesmas, em favelas, vilas periféricas das cidades,
acampamentos improvisados de gente pobre e miserável, migrantes e refugiados
aqui mesmo no Brasil e em todo o mundo, o mercado conta com um poder sedutor de
consumo suficiente para esconder e até negar essa realidade. Para toda a
freguesia, a festa exige despreocupação e esquecimento disso.
Mesmo as coisas mais
desnecessárias e supérfluas, geralmente as mais caras, ele aproveita a época do
natal para impor compras e vendas “justificadas” como indispensáveis
fortalecendo uma cultura generalizada e paranóica de um consumismo avassalador,
capaz de, como a sua própria denominação induz, consumir tudo. Até a paz e a
tranquilidade do ano que vem para aquelas pessoas comprometidas com as dívidas
assumidas para isso.
O natal virou, por isso, uma
feira caótica destinada ao cumprimento de conveniências sociais, impostas como
necessárias, ora para inspirar gente bem intencionada, com a oferta de um mimo
que alegre um/a parente ou um/a amigo/a, ora para alimentar vaidades ou
garantir que a/o presenteada/o se lembre, no futuro, que a “boa educação”
obriga uma troca equivalente.
Tudo completamente alheio à celebração
de um aniversário que, paradoxalmente, é o de uma pessoa que ela própria se fez
doação, um presente, esse sim, a toda a humanidade. Para a pobreza do Menino
recém nascido, como para todas as crianças que ainda vêm ao mundo agora sem
assistência médica e um atendimento basicamente digno para a acolhida carinhosa
de uma nova vida, aquela forma de celebrar o natal é escandalosa e debochada.
Quem festeja o natal indiferente
às causas e aos efeitos de um sistema socioeconômico gerador de partos como o
da mãe do Menino Jesus, parece não ter entendido nada do quão revolucionário,
desde o nascimento, mostrou-se o testemunho de vida daquela Criança para toda a
humanidade. O direito de nascer e de viver com dignidade nem precisaria de
expressão legal se o amor testemunhado por Ela fosse assumido como um modelo
simples e prático de convivência fraterna e solidária entre todas/os.
As Constituições dos países ditos
civilizados, como o nosso, reconhecem a necessidade de se “erradicar a pobreza
e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (Artigo 3º, Inciso III, da nossa Constituição).
Então, mesmo para quem não tem fé na encarnação de Deus naquela Criança, o fato
de quanta gente ainda vai passar esse natal sem um teto que lhe abrigue,
quantas mães ainda terão de parir suas/e/seus filhas/os em acampamentos
improvisados, cortiços, subhabitações e favelas, não permite esconder a injusta
desigualdade que a celebração do natal revela entre a distância daquele
fundamento republicano e a sua efetividade concreta, refletida na grande
diferença existente entre os berços dos bons hospitais e a
manjedoura.
Embora as estatísticas, a
respeito, variem segundo os critérios que as inspiram ou manipulam, sabe-se não
ser pequeno, muito menos admissível como “normal” esse número. Nascer como nasceu o Menino Jesus, portanto,
constitui uma interpelação permanente das causas econômicas, políticas e
sociais responsáveis por nascimentos que denunciam, passados milênios, como do
respeito ao ser humano, de qualquer condição, etnia, renda, ou outra qualquer
diferença, ainda carece toda a sociedade.
Em vez de historiar o natal, por
tudo isso, como um acontecimento passado, conveniente apenas para a troca de
presentes, parece de todo conveniente “historicizar” esse nascimento, isto é,
revivê-lo como acontecendo hoje, aqui e agora, muito menos pela troca de
presentes e muito mais pelo seguimento do exemplo da Criança, pelo doar-se em
vez de doar, pela partilha do abraço, do beijo, do carinho, da alegria festiva,
mas também pela prestação de serviço a quem, por força da injustiça social
semelhante à que Ela sofria em sua época, nada disso recebe.
Fonte: Dom Total
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