Natal é a
"despapainoelização" do espírito. É quando o coração torna-se
manjedoura e, aberto ao outro, acolhe, abraça e acarinha. Violenta-se quem faz
da festa do Menino Jesus uma troca insana de mercadorias. Quantas ausências
nesses presentes!
Em pleno verão, nos trópicos, o corpo
empanturra-se de nozes e castanhas, vinhos e carnes gordas, sem que se faça
presente junto àqueles que, caídos à beira do caminho, aguardam um gesto
samaritano.
Ainda criança, em Minas, aprendi com meus
pais a depositar junto ao presépio a lista de meus sonhos. Nada de pedidos a
Papai Noel. No decorrer do advento, eu engordava a lista: a cura de um parente
enfermo; um emprego para o filho da lavadeira; e a paz no mundo.
Meu pai insistia para que eu registrasse
meus sonhos mais íntimos. Aos 8 anos, escrevi: "Quero ver Deus".
Minha mãe ponderou: "Não basta Nossa Senhora, como as crianças de
Fátima?". Não, eu queria ver Deus Pai. Nem imagens dele eu encontrava nas
igrejas, que exibem, de sobejo, ícones de Jesus e pombas que evocam o Espírito
Santo.
Na tarde de 25 de dezembro, meus pais
levaram-me a um hospital pediátrico. Distribuímos alegria e chocolate às
crianças, vítimas de traumas ou tomadas pelo câncer e por outras enfermidades.
Fiquei muito impressionado com um menino de 6 anos, careca.
Na saída, mamãe indagou-me: "Gostou de
ver Deus?". Fiquei confuso: "Só vi crianças doentes", respondi.
Então ela me ensinou que a fé cristã reconhece que todos os seres humanos são
imagem e semelhança de Deus. Por isso é tão difícil ver Deus. Pois não é fácil
encarar a radical sacralidade de todo homem e de toda mulher.
Aos poucos entendi que o modo de comemorar
o Natal forma filhos consumistas ou altruístas. E descobri que Deus é tanto
mais invisível quanto mais esperamos que Ele entre pela porta da frente.
Sorrateiro, Ele chega pelos fundos, via um sem-terra chamado Abraão; um
revolucionário, de nome Moisés; um músico com fama de agitador, Davi; uma
prostituta, Raab; um subversivo conhecido por Jeremias; um alucinado, Daniel;
um casal de artesãos que, recusado em Belém, ocupa um pasto para trazer o Filho
à vida: Maria e José.
No Evangelho de Mateus (25, 31-46) Jesus
identifica-se com quem tem fome e sede, é doente ou prisioneiro, oprimido ou
excluído. Aqueles que para os "sábios" são a escória da sociedade,
para Deus são os convidados ao banquete do reino.
Desde então aprendi que Natal é todo dia,
basta abrir-se ao outro e à estrela que, acima das mazelas deste mundo, acende
a esperança de um futuro melhor. Sonhar com um mundo em que o Pai Nosso
transpareça na grande festa do pão nosso. Pois quem reparte o pão partilha
Deus.
Frei Betto, 56, frade dominicano
e escritor, é assessor de movimentos sociais e pastorais e autor do romance
sobre Jesus "Entre Todos os Homens" (Ática), entre outros livros.
Fonte: Folha de S. Paulo
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