Virgínia Moura e o marido, Rafael Emcinas: a cada mudança que o casal fazia, era obrigado a vender coisas que não valiam a pena (Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)
Livrar-se de coisas materiais,
emoções negativas e até cargos no trabalho que o fazem sofrer é importante para
renovar as energias e agir com liberdade.
Se você pensa que é uma pessoa
muito apegada porque não consegue se livrar daquele velho vestido de noiva, da
antiga caixa de cartas dos amigos da adolescência ou daquele tênis velho, sujo
e furado que sua mãe há anos está tentando jogar fora, talvez seja hora de se
desapegar da culpa e de expandir sua forma de pensar. Em maior ou menor grau,
todos sentem ou já sentiram apego. Até os monges. Esse sentimento que
impulsiona o ser humano a se agarrar, porém, não diz respeito somente às coisas
materiais. Vale também para emoções, cargos no trabalho, posições na sociedade,
espiritualidade. Pode parecer estranho, mas existe apego até mesmo ao desapego.
“Apegos perturbam a mente e nos impedem de agir com liberdade”, explica a monja
Coen, que entrou para a vida monástica há 31 anos e está habilitada a dar aulas
do darma budista para monges e leigos.
“Também tenho apegos. Possuo uma
velha roupa de monja. Olho para ela e são tantas as memórias de um certo
mosteiro que não largo a roupa”, reconhece. Apesar disso, ela garante que o
desapego liberta. Para isso, é preciso ter medidas e se desapegar até mesmo do
sentimento obrigatório do desapego. “Conheço um monge que vive numa
simplicidade profunda, mas quando teve de viajar aos Estados Unidos não
conseguiu o visto porque nem sequer fazia declaração de Imposto de Renda. Se
você quiser ir ao Japão, o governo japonês vai querer saber como você pagará as
suas contas”, observa. De acordo com ela, até o apego aos ensinamentos
budistas, se começarem a causar muitos impedimentos para a vida, deixam de ser
uma coisa boa. Para a monja, porém, não é fácil se desapegar.
É preciso ter consciência se você
está se apegando demais à comida, a uma pessoa, a uma outra situação qualquer e
isso está atrapalhando os seus relacionamentos. É preciso distinguir os
benefícios. “Se é gostoso e saboroso, mas fiquei presa numa teia e vai me
causar mal, é hora de desapegar”, ensina. Para a administradora Virgínia Moura,
de 33 anos, que se casou há três anos e vai pôr seu vestido de noiva à venda no
brechó virtual De Cabide, desapego é exercício. “Foi ótimo, foi lindo, mas
guardo as lembranças do nosso casamento nas fotografias e no meu coração. O
vestido fica lá, ocupando espaço. Por isso resolvi vendê-lo e contei com o
apoio do meu marido”, explica. Virgínia diz que sempre teve o hábito de fazer
uma limpeza nos armários de vez em quando, mas passou a se desapegar mesmo há
cerca de seis anos, quando se mudou para fora do país pela primeira vez. O
destino foi a Austrália.
A professora de ioga Ana Virgínia
Azevedo aprendeu a exercitar o desapego com a filosofia hindu (Beto
Magalhães/EM/D.A Press)
“A partir daí me tornei
desapegada com tudo. É um processo que a gente internaliza. Não se trata de
apenas vender ou doar roupas e sapatos. A gente passa a ter outro estilo de
vida”, explica. Desde que voltou da Austrália, em três anos Virgínia e seu
marido, o executivo Rafael Encinas, de 30, moraram em três cidades diferentes.
“Acredito que é uma renovação, uma forma de se abrir para o novo, de não se
apegar a bens materiais. E também de partir para novas experiências,
conquistas, desafios e de encarar um novo ciclo de forma diferente, mais
focado”, diz Rafael.
BAGAGEM MAIS LEVE
As razões que levam um monge a
exercitar sua mente para o desapego podem ser bastante diferentes das que
levaram a administradora Virgínia Moura e seu marido, o executivo de vendas
Rafael Emcinas, a deixar o apego de lado. O efeito, porém, é muito parecido. Em
ambos os casos, os personagens dessa história estão de bem com o início e o fim
das coisas, aquilo que a monja Coen, com os seus 31 anos de experiência na vida
monástica, define como “estar sendo”. A cada mudança que o casal fazia, era obrigado
a vender coisas que não valiam a pena ser carregadas ou que não caberiam no
novo lar.
“Desde então, estamos em
movimento. Na última mudança, vendemos tudo. Havia muita coisa de valor
emocional, mas a gente não deposita tanta emoção nas coisas”, explica. Para os
dois, o que vale mesmo são os momentos de convivência com a família e os
amigos. “Não é doído. É um aprendizado que logo se torna natural. Fui
aprendendo com minhas próprias experiências. O bom é que vale para o casal”,
diz Virgínia.
O mesmo desapego que ela tem
pelos objetos, porém, não se aplica aos sentimentos. “Com sentimento não é tão
fácil, mas tenho feito um exercício e estou aprendendo bastante. Não são coisas
iguais, mas caminham em velocidades parecidas. Assim como nos desapegamos das
coisas, é preciso desapegar também dos sentimentos que não nos fazem bem”,
ensina. O mais difícil de deixar para trás, de acordo com ela, são os
relacionamentos, já que, em todas as mudanças o casal fez amigos, e quando uma
nova vida se inicia, é preciso começar tudo outra vez. O atenuante, nesse caso,
é a tecnologia, que aproxima as pessoas onde quer que elas estejam. Virgínia e
Rafael agora se preparam para mais uma mudança, desta vez não por causa do
trabalho, mas por opção de vida. “Até aqui,,,,,,,,,,, a gente foi para onde o
vento mandava. Agora é escolha. A gente gostou muito da Austrália e do estilo
de vida no país. Por isso, vamos voltar para lá”, comemora.
ACUMULADORES A psiquiatra e
psicanalista Gilda Paoliello explica que o apego ou desapego às coisas
caracterizam alguns tipos de personalidade. “Há pessoas que têm uma dificuldade
muito grande em se desfazer de objetos que não representam nada para os outros,
mas para elas têm uma importância enorme e chegam a ter um estatuto de
continuidade do próprio corpo. “Se aquilo for mexido, é como se o próprio corpo
ou o mundo interno dessa pessoa fosse tocado”, observa. São pessoas muito
detalhistas, tanto que muitas vezes não conseguem concluir o que se propõem a
fazer e tendem a organizar muito o escritório ou a casa, sem conseguir se
desfazer de determinados objetos. Há também os acumuladores, mas nesse caso a
situação chega a ser patológica. Incomum mesmo é um desapegado bater em sua
porta.
Ana Virgínia Azevedo, jornalista
de profissão que se dedica ao ensino da ioga, explica que aprendeu a exercitar
o desapego com a filosofia hindu. “Durante minha formação como professora de
ioga, tivemos que praticar um exercício de desapego. Diante do desafio, doei as
fraldinhas do meu filho, que haviam sido bordadas pela minha tia, para o
porteiro do prédio, cuja esposa morreu no parto”, lembra. A proposta era doar
algo que fizesse bastante sentido para as pessoas que participavam do curso de
formação. “Desapegar é quando uma coisa faz sentido, mas você consegue abrir
mão. Foi por isso que doei as fraldinhas. Fiquei com apenas uma como lembrança.
Isso me marcou muito porque eram coisas que fazia muito sentido guardar”,
afirma.
Depois disso, Ana Virgínia passou
a abrir mão das coisas que estavam “paradas” em sua vida. “Hoje não tenho
praticamente nada que eu não uso, mas não sou minimalista.” Houve uma época em
que Ana Virgínia comprava objetos de decoração em excesso. Depois da prática do
ioga, resolveu “passar tudo para a frente”. Segundo ela, em sua casa havia
muita coisa que era comprada e não era usada. “Eram coisas bonitinhas, que a
gente vê, acha lindo e compra, mas que não combinavam com nada que eu tinha”,
observa. De acordo com a psiquiatra e psicanalista Gilda Paollielo, pessoas
mais desapegadas aparecem muito menos no consultório. “Elas são privilegiadas e
estão em número muito menor”, explica. Ainda assim, há o extremo do desapego,
casos de pessoas pródigas, que tendem a dar tudo o que têm, o que também é
considerado uma patologia. “Tudo o que é demais é veneno”, resume.
REVOLUÇÃO INTERNA
Aprender a dividir e a deixar de
lado aquilo que não interessa mais ajuda a vida a fluir melhor e a ver o mundo
da forma como ele é
Num mundo em que o mercado de
consumo, e, portanto, tudo o que é material, e encarado quase como uma
entidade, o desapego não é uma tarefa fácil e fica mais complicado ainda se
desapegar dos sentimentos e dos relacionamentos. Diante disso, o que se deve
levar em conta é que “grudar” numa coisa ou numa história do passado traz mais malefícios
do que benefícios. “Aquilo que me fez bem ontem não necessariamente continuará
a me beneficiar no presente”, ensina a monja Coen, com a experiência de três
décadas de monastério. É o caso de Isabela Junqueira Freire, analista de
sistemas e sócia do bazar virtual De Cabide, que comercializa roupas, sapatos e
bijuterias novas e usadas na internet. Ela, que teve uma educação desapegada,
há seis anos viu-se com dificuldades para dividir os filhos, Ana e João, com o
ex-marido.
Deu trabalho se desapegar do
apego às crianças e das desavenças com o ex. Mas ela se esforçou e hoje
acredita que valeu a pena. “Sempre me considerei uma pessoa desapegada. Nunca
me importei em dividir as coisas e nunca fui grudada demais com minha família.
Viajava sozinha desde pequena. Mas na separação, me surpreendi com a minha
dificuldade de dividir os meninos com o pai. Não sabia o que fazer do meu tempo
livre. Sofri muito”, lembra Isabela. Porém, a analista de sistemas foi
trabalhando a si mesma e ocupando o tempo livre que passou a ter quando as
crianças estavam com o pai com os amigos ou com o trabalho. “Hoje, encaro tudo
de uma forma mais positiva. Não adianta achar que os filhos da gente vão ficar
debaixo da asa. Filho a gente cria é para o mundo”, observa.
Isabela explica que, a partir do
momento em que aprendeu a dividir e abrir mão das desavenças com o ex-marido,
tudo começou a fluir melhor. “A gente ainda tem nossas diferenças, mas somos
superamigos. Isso só ocorreu porque não fiquei apegada aos problemas que tive com
ele. Ter uma boa relação com o pai dos meus filhos só beneficia a eles e a mim.
A vida vai fluindo de uma forma mais positiva e fica tudo a meu favor”, resume.
Junto do desapego sentimental, o desapego material também ajudou a empresária a
se libertar. “Montar um negócio me ajudou a ocupar o meu tempo livre e também a
fazer o que mais gostava: tirar tudo do armário e passar para a frente. Vendo
as coisas, faço doação, e isso renova minhas energias”, analisa.
SEM ILUSÕES O monge José Costa
Mokugen, 62 anos, que estudou zen budismo no Japão por 22 anos e acaba de abrir
um templo em Belo Horizonte, explica que, na visão budista, o desapego permite
que as pessoas vejam o mundo como ele é, livre de ilusões. “Isso se consegue
com muito estudo, treinamento da mente e com o esquecer de si próprio. É daí
que vem a nossa união com o universo”, diz. Ele reconhece que o caminho é
dolorido, porque desapegar do ego é como promover uma revolução interna.
“Considero-me uma pessoa desapegada, estou muito satisfeito com o meu estado,
mas não dá para desapegar de tudo vivendo num mundo como o nosso. É preciso ter
desejos equilibrados, ambição de realizar coisas possíveis, viver de uma forma
confortável neste mundo, mas de maneira desapegada”, recomenda.
Para conseguir movimentar as
energias e livrar as pessoas daquilo que está pesando, em seu livro Casa
Natural, o arquiteto Carlos Solano, especialista em feng shui, técnica chinesa
de harmonização de ambientes, recomenda o “destralhamento”. Solano acredita que
não há vida próspera se a casa estiver pesada e intoxicada. De acordo com ele,
são considerados “toxinas da casa” objetos e roupas quebrados ou rasgados,
velhas cartas, plantas mortas ou doentes, recibos, jornais e revistas antigos,
remédios vencidos, meias e sapatos estragados. Por isso mesmo ele defende que
as pessoas precisam “destralhar” a sua casa. Segundo ele, o processo é uma das
formas mais rápidas de transformar a vida. “A saúde melhora, a criatividade
cresce e os relacionamentos se aprimoram, ensina o feng shui, com a delicadeza
própria das artes orientais”, escreve.
O arquiteto explica que, de
acordo com o feng shui, é comum se sentir cansado, deprimido ou desanimado em
um ambiente cheio de entulho, pois existem fios invisíveis ligando as pessoas
àquilo que elas têm. Outros possíveis efeitos do acúmulo e da bagunça são os
sentimentos de desorganização, fracasso e limitação, que aumentam o peso e o
apego ao passado. “No porão e no sótão, as tralhas viram sobrecarga. Na
entrada, restringem o fluxo da vida. Empilhadas no chão, nos puxam para baixo.
Acima, são dores de cabeça. Sob a cama, poluem o sono”, garante. De acordo com
ele, sua faxineira e rezadeira, Dona Francisca, ensina que, nas 24 horas do
dia, oito são para trabalhar, oito para descansar e oito para se cuidar. “E
nada de limpar só por onde o padre passa”, recomenda.
Para a personal organizer
Cristina Dumont, as pessoas andam muito apegadas. Ela percebe isso em seu dia a
dia como organizadora dos espaços alheios. Seu trabalho começa avaliando os
armários dos clientes e separando aquilo que é usado do que não é usado.
“Alguns têm uma quantidade razoável de coisas nos armários, mas outros têm
coisas demais, o que torna a organização muito mais difícil”, diz. De acordo
com ela, convencer alguns clientes a desapegar não é uma tarefa fácil. “É mais
complicado com as mulheres, que são muito apegadas a roupas em geral”,
sustenta. Em sua própria vida, porém, Cristina pratica o desapego. “Melhorei
muito depois da organização dos armários. Uma coisa bacana de fazer isso é
pensar na sustentabilidade. Isso de não ter muita coisa é uma tendência, mas
ainda é um processo na nossa sociedade”, afirma.
APEGO NÃO É AMOR
Para o presidente da Brahma
Kumaris no Brasil e diretor da entidade para a América do Sul, Ken O’Donnell,
desapegar não significa abandonar tudo ou doar todas as suas coisas, mas
observar o mundo de forma a não ser influenciado por aquilo que se vê ou
escuta. “Se uma pessoa tem uma visão muito estreita das coisas, impulsionada por
experiências subjetivas, como seu papel na família, sua profissão, ou outra
coisa qualquer, naturalmente não terá perspectiva suficiente para se posicionar
além das influências. “O desapegado vai ver os acontecimentos da sua própria
perspectiva, e também à luz da perspectiva dos outros, porém mantendo-se
estável diante dos fatos”, explica.
Num relacionamento, por exemplo,
ele explica que o apego é muito diferente do amor. “O amor é apreciar uma flor.
O apego é cortar essa flor e colocá-la num vaso”, compara. “No apego, as
pessoas exercem a posse, no desapego elas abdicam desse sentimento de posse
para permitir que os outros cresçam”, define. Segundo ele, porém, o desapego é
um trabalho interno. “Não existe um medicamento que nos faça desapegar. É
preciso criar uma sequência interna de pensamentos, sentar-se e observar o
momento, deixando-se envolver pelos 360 graus dos acontecimentos à sua volta.
Mentalmente, você se coloca numa cadeira e visualiza sua mente ali, sentadinha,
observando tudo”, ensina.
Fonte: Estado de Minas
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