quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Brasil: As novas faces do tráfico de pessoas

Além de exploração sexual e trabalho escravo, o tráfico humano no país tem novos fins, como mendicância, servidão doméstica, exploração em clubes de futebol e ‘mulas’.

Por Nelza Oliveira

Fugindo da extrema pobreza, a paraense Safira, 27 anos, tomou uma decisão radical. Mãe solteira e desempregada, ela aceitou o convite de uma amiga para fazer programa numa boate do Suriname, país que faz fronteira com o Pará. Ao chegar, o dono do local confiscou seu passaporte e disse que ela só sairia de lá depois que pagasse as despesas que ele teve com a viagem.

“Eu era obrigada a fazer vários programas por dia e só saía para exames médicos, mesmo assim acompanhada por um segurança”, diz Safira. “Do que eu ganhava, eles descontavam a comida, a hospedagem e as passagens.”
Depois de quatro meses, Safira acabou engravidando. O pai da criança pagou parte da dívida para que ela fosse libertada. Mas o relacionamento do casal não deu certo e, quando o filho tinha 11 meses, Safira voltou para o Brasil.
No Pará, ela fez parte de um projeto da ONG paraense Sodireitos, que trabalha na prevenção, atendimento e pesquisa nas áreas de direitos sexuais e migratórios.
As histórias de Safira e de outras dez mulheres vítimas do tráfico de pessoas foram registradas no livro “Mulheres em Movimento: Migração, Trabalho e Gênero em Belém do Pará”, de 2011. O projeto foi financiado pela Iniciativa Global das Nações Unidas para Combater Tráfico de Pessoas (UN.Gift).
“Cada mulher ganhou o nome de uma pedra preciosa no livro”, diz Safira, que não usa o nome verdadeiro para falar de sua experiência. “Agora a gente busca financiamento para dar palestras em escolas e informar a população sobre o tema.”
O Tráfico de Pessoas para fins de exploração sexual, como é o caso de Safira, é o que aparece com mais frequência no “Diagnóstico sobre Tráfico de Pessoas nas Áreas de Fronteira no Brasil”, da Secretaria Nacional de Justiça (SNJ) do Ministério da Justiça.
Em seguida, vem o tráfico para fins de exploração de trabalho escravo.
A grande surpresa é o que aparece depois.
“Durante a pesquisa, descobrimos novas formas de exploração, como o uso de pessoas para fins de mendicância, exploração de indígenas e ainda de vítimas usadas como ‘mulas’ pelo tráfico de drogas”, afirma Fernanda Alves dos Anjos, diretora do Departamento de Justiça, Classificação, Título e Qualificação da SNJ.
No caso de mendicância, crianças e adolescentes são levados para longe de suas casas e obrigados a pedir dinheiro ou vender produtos nas ruas. No fim do dia, eles têm que entregar parte ou todo o dinheiro obtido para seus exploradores.
Já a exploração indígena se refere ao aliciamento de indígenas para diversos fins, desde exploração sexual até tráfico de drogas. Como muitos deles vivem em aldeias isoladas e sequer têm documentos, as autoridades não tomam conhecimento do crime.
Divulgado em outubro, o Diagnóstico também identificou a exploração de crianças e jovens para servidão doméstica sob o pretexto de “adoção” e para exploração em clubes de futebol.
Este último fim é o mais surpreendente. Segundo o SNJ, adolescentes do sexo masculino estão sendo levados para longe de casa para jogar futebol com a promessa de bons salários. Uma vez no local, eles têm os documentos apreendidos e passam a ser explorados sem a prometida remuneração.
O Diagnóstico cita alguns exemplos, como o de um haitiano que foi levado para o Amapá e o de meninos do Acre que foram atuar nas divisões de base de clubes paulistas.
Nos 11 estados brasileiros que fazem fronteira com outros países, foram analisados dados de instituições governamentais, como a rede de assistência social, órgãos da segurança pública e justiça, e não governamentais, como ONGs que trabalham contra o tráfico de pessoas.
Pará, Amapá, Roraima, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul são os estados com maior incidência de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual. O trabalho escravo é mais comum nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Pará, Amazonas, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
O perfil da pessoa traficada é de crianças, adolescentes e adultos vulneráveis por condições socioeconômicas ou conflitos familiares.
O modo de ação dos criminosos é basicamente o mesmo. As vítimas são aliciadas e convencidas de que terão uma vida melhor. Quando chegam ao local, elas descobrem que adquiriram uma dívida pelo transporte, alimentação e alojamento, que será paga com violência e exploração. Elas também recebem ameaças de represálias caso tentem escapar ou denunciar.
A legislação penal brasileira prevê o tráfico de pessoas exclusivamente em caso de exploração sexual. Para os outros fins, é necessário encontrar correspondência em outros tipos de crimes previstos na legislação.
O Diagnóstico faz parte do Plano Estratégico de Fronteiras, do governo federal. A coleta de informações do Diagnóstico cumpre a primeira de três ações sob responsabilidade da SNJ.
A segunda ação é a capacitação de agentes para trabalhar nos Postos Avançados de Atendimento Humanizado ao Migrante, que atende brasileiros não admitidos em países vizinhos ou deportados.
“O Diagnóstico também irá indicar os municípios nas áreas de fronteira onde novos postos devem ser implantados,” diz Fernanda.
Atualmente, dos 11 estados da fronteira, somente o Amazonas e o Pará contam com postos já instalados.
A terceira ação da SNJ é a promoção de ações de cooperação jurídica internacional.
“Mantemos parcerias internacionais para prevenção, atendimento e combate ao tráfico de pessoas com países do Mercosul e montamos uma estratégia com os da Unasul [União de Nações Sul-Americanas]”, diz Fernanda.
Para Angélica Lima Gonçalves, assistente social da ONG Sodireitos, o tráfico de pessoas precisa ser combatido em três frentes: desarticulação das quadrilhas, punição aos autores e aliciadores e atendimento às vítimas.
“É importante também informar à população e fazer com que ela tenha acesso a políticas públicas que realmente possam garantir uma vida melhor a todos,” diz Angélica. “O que mais ouvimos é que as pessoas aceitaram o convite porque queriam ter uma vida mais digna.”

O Diagnóstico foi financiado pela SNJ e realizado em parceria com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc) e com o International Centre for Migration Policy Development (ICMPD), organização internacional com sede em Viena, na Áustria.

  


(*) Fonte: http://infosurhoy.com/pt/articles/saii/features/main/2014/02/21/feature-01

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