sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Impunidade é um dos grandes vilões no enfrentamento à violência sexual


“Cada vez menos casos serão revelados. Vamos viver uma sociedade clandestina, com uma situação grave que envolve crianças e adolescentes totalmente na invisibilidade por causa da descrença na Justiça e dos danos que ela sofre quando torna visível ".

Apesar do crescente envolvimento e da mobilização de diversos setores da sociedade civil e do poder público no enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes; ainda que tenha sido elaborado um plano nacional nesse sentido, no ano 2000, com princípios, metas e estratégias para combater esses crimes; embora o Brasil tenha recebido a visita do relator especial da ONU sobre venda de crianças, prostituição e pornografia infantil, em 2003, que elaborou um relatório com recomendações para reverter a situação encontrada; e mesmo que tenha sido constituída uma CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) em 2003 e 2004 específica para investigar redes envolvidas com esse tipo de crime, a exploração sexual infanto-juvenil continua sendo um grave problema que atinge meninas e meninos de todo o Brasil.

As ações de prevenção e de atendimento psicossocial às vítimas são fundamentais, mas a ausência de punição aos responsáveis por esses crimes também consiste num dos principais entraves ao enfrentamento desse tipo de violações dos direitos de crianças e adolescentes. A certeza da impunidade perpetua a violência sexual, e a absolvição em si dá mais força ao agressor, que se sente livre para continuar cometendo esses crimes, além de gerar danos secundários nas vítimas e em seus familiares.

Para Neide Castanha, coordenadora do Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, “nosso grande vilão, nosso grande inimigo no vencimento dessa questão é a impunidade”, que além da dimensão pessoal tem uma dimensão social, com conseqüências desastrosas.

“Cada vez menos casos serão revelados. Vamos viver uma sociedade clandestina, com uma situação grave que envolve crianças e adolescentes totalmente na invisibilidade por causa da descrença na Justiça e dos danos que ela sofre quando torna visível. Já pensou como será quando não se puder acudir, reduzir os danos de vítimas de violência sexual? Sendo o abuso sexual um fator de risco para a exploração sexual, uma pessoa abusada na infância está muito mais vulnerável a ser uma presa mais fácil para o aliciamento das redes da exploração sexual, para o tráfico, para o turismo, para a prostituição infantil, porque o uso de seu corpo e da sua sexualidade foi banalizado”, avalia Neide. A vantagem hoje, diz ela, é que esses fatores estão postos na mesa, não estão mais debaixo do tapete.

Tais fatores que levam à impunidade nesses crimes são múltiplos. Eles vão desde o medo e a vergonha de denunciar até a ineficiência da polícia para cumprir mandados de prisão, passando por falta de estrutura e de capacitação dos policiais, inquéritos mal feitos, morosidade nos processos, ameaças por parte dos agressores, falta de habilidade e sensibilidade dos juízes para inquirir as vítimas, falta de prioridade a esses casos, entre outros motivos.

A questão cultural relacionada aos crimes de violência sexual infanto-juvenil permeia todas as etapas do processo de responsabilização. A impunidade pode ser atribuída, de acordo com a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), relatora da CPMI da Exploração Sexual, “à cultura que naturaliza essa violência e a relações hierárquicas em que o feminino, como gênero, está subordinado hierarquicamente ao masculino, e a criança subordinada ao adulto. O mesmo viés, o caminho que está a cada momento naturalizando a abordagem sexual de crianças por adultos em vários lugares do Brasil e do mundo é o mesmo caminho que faz com que isso seja visto como algo de menor importância no âmbito da polícia, do poder judiciário ou do Ministério Público na hora de responsabilizar esses que promovem esse tipo de abordagem”, explica.

Exploração sexual
Segundo a coordenadora do comitê nacional, a sociedade coloca essas situações no campo privado e as vítimas acabam virando as culpadas. “Ainda temos uma sociedade conservadora para novos padrões morais e éticos de direitos, sobretudo o direito à sexualidade”, avalia Neide. Os casos de exploração sexual raramente chegam às delegacias e menos ainda ao poder judiciário porque as vítimas muitas vezes não se reconhecem como tal. Além disso, costuma haver conivência da família, que conta com o dinheiro obtido por seus filhos nessas atividades para a sobrevivência. Quando o caso está na Justiça é comum as vítimas e testemunhas negarem os crimes, protegerem os agressores, afirmando que eles só estavam ajudando. Como geralmente são famílias em situação de extrema pobreza, o criminoso muitas vezes “compra” a sua absolvição com relativa facilidade.

Nos municípios do interior a situação costuma ser ainda mais complicada, já que o envolvimento de políticos, juízes, empresários e religiosos é freqüente. “Normalmente, essas pessoas que têm maior poder aquisitivo constituem bancas de advogados maiores, que utilizam um sem número de recursos, que acabam fazendo com que o processo dure mais”, afirma Patrícia Campos, coordenadora do eixo de direito à proteção do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca-CE). Por conta do prestígio com que contam os acusados nessas cidades pequenas, não é raro que seus habitantes se voltem contra as vítimas, responsabilizando-as pelos crimes cometidos contra elas.

Um exemplo emblemático disso é o caso de Santana de Acaraú, um dos municípios mais pobres do interior cearense, em que um padre foi acusado de explorar sexualmente meninas de 9 a 16 anos. Desde que ele foi denunciado, as vítimas sofreram pressões e humilhações por parte de grande parte dos moradores da cidade e acabaram sendo agredidas verbal e fisicamente. “O caso gerou uma comoção social no município tremenda ao ponto de ter havido um episódio em que as meninas iam prestar depoimento, tinham que passar por uma ponte para ir até o Fórum e a cidade toda se pôs em uma extremidade da ponte para elas não passarem. Elas foram postas numa situação de execração pública mesmo, de perseguição. Não porque a população achasse que a agressão não havia ocorrido, mas porque achavam que elas não deveriam denunciar o padre”, conta Patrícia.

O acusado conseguiu adiar diversas vezes as audiências de oitiva das vítimas e, no dia em que finalmente isso ia acontecer, a sua defesa instaurou um procedimento de suspeição contra a juíza da comarca, alegando que ela estaria sendo influenciada pela mídia e pela mobilização das entidades de defesa dos direitos da infância. O Tribunal de Justiça levou quase três anos para decidir sobre essa questão, o que só ocorreu neste ano, permitindo que o processo tivesse continuidade. “Nisso, a vida das vítimas se transformou de tal maneira que hoje pode estar pior do que antes. Ficamos muito preocupados com essa resposta que o judiciário dá porque às vezes a demora no processo é quase a mesma coisa que o não reconhecimento do direito”, diz a coordenadora do Cedeca-CE.

A deputada Maria do Rosário afirma que já está cansada de meninos e meninas serem julgados nas sentenças, particularmente as meninas. “Os juízes começaram a julgá-las de acordo com a aparência física, com o porte físico, com que tipo de roupa usam, com o jeito de falar. E a tese da provocação, da abordagem, da sexualidade diferenciada entre homens e mulheres, em que ela provocou, em que os mecanismos de sedução partem do mundo feminino, e os de não controle estão no âmbito da sexualidade masculina, reproduzem o que ao rumo da história a gente sempre ouviu. Enquanto o poder judiciário não se der conta disso, não vamos conseguir avançar”, acredita.

Em Tauá, município no interior do Ceará, por exemplo, cinco homens foram acusados de explorar sexualmente seis meninas com menos de 14 anos, que mantinham relações sexuais com eles em troca de dinheiro. A sentença em primeira instância, publicada em março deste ano, que absolve todos os acusados, ilustra o freqüente julgamento a que são submetidas as vítimas de violência sexual, numa total inversão do papel do magistrado. Ele fala, por exemplo, das “condutas desregradas de menores que venham a se prostituir” e que a “vida pregressa das mesmas era anormal à vida em sociedade”, sendo “duvidosa a inocência e pureza das vítimas”. Conclui a partir disso que, “na incerteza quanto à vida sexual das vítimas, vigora o princípio da presunção de inocência, posto que não vai interessar, in casu, se houve, ou não, penetração, ejaculação, etc”. Tudo isso embora reconheça que os acusados realmente mantinham relações sexuais com as vítimas (“pela robusta prova testemunhal carreada no processo, foi apurado que os autores sempre satisfaziam seus interesses sexuais com o consentimento das pretensas vítimas”).

“O juiz entendeu que o fato de as meninas já serem vulneráveis, já serem exploradas anteriormente, fazia delas pessoas que não mereciam ser protegidas pelo Estado e que mesmo reconhecendo o fato em si, que o cidadão havia mantido relações sexuais com meninas de 11, 12 anos, a conduta era atípica, não puniu ninguém, desconsiderou completamente o artigo 244 do ECA. O colega promotor recorreu ao tribunal, os acusados que estavam presos foram soltos e fica o exemplo para a comunidade, como se as meninas fossem culpadas de sua própria exploração”, avalia a promotora de Justiça Edna da Mata, da vara especializada em crimes contra a criança e o adolescente de Fortaleza.

Em muitos casos, a própria polícia acaba sendo pressionada para não dar seguimento ao inquérito. Waldemar Oliveira, coordenador executivo do Cedeca-Bahia, conta que há pouco mais de dois anos, no município de Pintadas, interior baiano, ele entrou em contato com uma delegada que estava investigando um caso de exploração sexual infanto-juvenil que envolvia políticos, fazendeiros e comerciantes locais. Pouco mais de um mês depois do primeiro contato, ele foi informado de que ela havia sido transferida da cidade, em função desse inquérito.

“Consegui localizá-la em outro município, já numa outra delegacia, e ela me disse ‘o senhor não sabe o que eu sofri com aquele inquérito, as pressões foram enormes, adoeci em função disso, tive que colocar vigilância e cães dentro de minha casa para me proteger e tive de sair da cidade. Vou dizer uma coisa ao senhor: se eu tiver informação de um caso semelhante àquele, eu não instauro mais inquérito’. Esse é um dado de realidade do nosso Estado”, lamenta Oliveira.

Abuso sexual
Quando se trata de abuso sexual, as peculiaridades desse tipo de crime contribuem de forma significativa para a impunidade. Uma dificuldade grande a ser enfrentada pela Justiça é que o agressor, na maior parte dos casos, é uma pessoa próxima à vítima, geralmente pai, padrasto, tio, avô, amigo da família ou vizinho. Nos casos de abuso sexual intra-familiar, a denúncia e o processo judicial costumam desorganizar a família porque muitas vezes o agressor é provedor da casa ou a mãe ainda está envolvida emocionalmente com ele. Não são raros os casos em que ela acaba pressionando a filha a retirar a queixa na delegacia ou a mudar a versão dos fatos no depoimento judicial, para preservar a família. Por serem pessoas próximas, o medo de ameaças e retaliações também pode alterar a fala da menina ou do menino e de seus familiares.

Além disso, como é um crime que geralmente ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas, e que em grande parte dos casos não deixa vestígios, muitos abusadores acabam absolvidos por ausência de provas materiais. Por isso, a palavra da criança ou do adolescente é uma prova fundamental nesses processos, mas a falta de sensibilidade ou de habilidade de muitos juízes pode impedir ou prejudicar o depoimento da vítima. A freqüente falta de credibilidade do magistrado em relação ao relato da criança, muitas vezes acusada de mentir e fantasiar demais, também pode invalidá-lo.

Outro problema comum é que os exames periciais, no instituto Médico Legal, costumam ser feitos muito tempo depois de ocorrido o fato, o que dificulta ainda mais a obtenção de provas.

Em alguns casos, o abusador chega a ser julgado e condenado, mas é a própria polícia que não cumpre o mandado de prisão. Em Cabo de Santo Agostinho, município do litoral de Pernambuco, próximo à Recife, uma menina de 13 anos foi abusada sexualmente pelo vizinho, responsável por cuidar dela e de seus irmãos enquanto o pai trabalhava de vigilante noturno. Depois de um processo que durou sete anos, e de muita persistência do pai da vítima, o réu foi condenado. Apesar dessa sentença, até hoje o mandado de prisão não foi cumprido pela polícia local.

“A comunidade sabe quem é o agressor, no caso da violência da criança e do adolescente, o pai, o padrasto, alguém do convívio da vítima. A polícia não precisa de muitos elementos para saber quem é ele, não precisa ir muito longe. Então, o que falta para essa polícia fazer um serviço mais apurado, um trabalho mais correto? Precisa que ela esteja mais envolvida com a questão da infância e juventude. Eu acredito na capacitação, na formação das pessoas, mas acredito também na sensibilização e nas mudanças de paradigma. Quando essa polícia entender que criança e adolescente é sujeito de direitos, prioridade absoluta e que deve ser tratado com respeito a infância e a juventude não serão tão desrespeitadas”, acredita a advogada Lucidalva Nascimento, do Centro das Mulheres do Cabo.

Fonte: ( Fernanda Sucupira)  Carta Maior

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