quarta-feira, 24 de julho de 2013

Um papa assim nunca se viu. Ele vai conseguir?

O modo de falar do Papa Francisco é provavelmente um de seus traços mais originais. Mas, além das coisas ditas há as que foram deliberadamente caladas. Não pode ser casualidade que após 120 dias de pontificado não tenham saído ainda dos lábios de Francisco as palavras aborto, eutanásia e casamento homossexual.

Por Sandro Magister

A viagem simbólica a Lampedusa. A grande popularidade. A reforma da cúria. O calculado silêncio sobre temas éticos. Mas também o primeiro erro em uma nomeação para o IOR. O desafio de Francisco para mudar a Igreja encontra obstáculos e inimigos, inclusive no Vaticano.

Ao entrar em seu quarto mês como papa, Jorge Mario Bergoglio produziu sua primeira encíclica e realizou sua primeira viagem, dois atos simbolicamente poderosos, mas de sinal quase oposto.

É verdade que a Lumen Fidei leva a assinatura do Papa Francisco, mas foi idealizada e escrita quase em sua totalidade por Bento XVI. Tornando-a sua, Bergoglio quis testemunhar sua plena conformidade com seu predecessor no desenvolvimento da missão típica dos sucessores de Pedro: “confirmar a fé”.

A viagem para Lampedusa marca, ao contrário, uma separação clara. O teólogo Joseph Ratzinger, para expressar de maneira cristã o encontro e o choque entre civilizações, teria pronunciado com gosto uma douta “lectio magistralis” na universidade islâmica de Al Azhar. O pastor Bergoglio, ao contrário, inspirou-se em Francisco e, do mesmo modo que o santo de Assis começou beijando os leprosos, expulsos das cidades da época, assim o Papa que tomou seu nome quis ir, antes de mais nada, a uma ilhota perdida, ancoradouro e naufrágio de milhares de emigrantes e refugiados. Na missa quis que se voltasse a ouvir as páginas bíblicas de Caim que mata Abel e da chacina dos inocentes. Uma viagem de penitência.

Não é estranho que depois da viagem a Lampedusa a popularidade universal de Francisco tenha atingido seu teto mais alto. “Deus faz as estatísticas”, disse. Mas há uma evidente coincidência entre as palavras e os gestos deste Papa e os que poderia sugerir um especialista encarregado de planejar seu sucesso. É difícil que a opinião pública católica e laica conteste algo do que faz e diz, começando por esse “quanto gostaria de uma Igreja pobre e para os pobres”, que se converteu no documento de identidade do atual pontificado.

O infalível paradigma

Um elemento chave da popularidade de Francisco é sua credibilidade pessoal. Como arcebispo de Buenos Aires vivia em um modesto apartamento de duas peças. Ele mesmo fazia sua comida. Andava de ônibus e metrô. Fugia como da peste dos encontros mundanos. Nunca quis fazer carreira; pelo contrário, afastou-se com paciência quando sua própria Companhia de Jesus, da qual havia sido durante alguns anos o superior provincial na Argentina, o depôs e isolou bruscamente.

Também por isto, cada vez que invoca a pobreza para a Igreja e ataca fortemente o desejo das ambições de poder e a sede de riquezas presentes no âmbito eclesiástico, nenhuma voz se levanta para criticá-lo. Quem poderia justificar a opressão do necessitado e fazer apologia das desmerecidas carreiras? Quem poderia criticar Francisco por pregar uma coisa e fazer o contrário? Nos lábios do atual Papa, a Igreja pobre constitui um paradigma infalível, em torno do qual consegue um consenso praticamente universal, tanto entre os amigos como entre os inimigos mais acérrimos da Igreja, que a queriam tão depauperada a ponto de desaparecer completamente.

Mas há também outro fator chave da popularidade de Francisco. Suas invectivas, por exemplo, contra a “tirania invisível” dos centros financeiros internacionais não atacam um objetivo específico e reconhecível e, portanto, nenhum dos verdadeiros ou supostos “poderes fortes” se sente efetivamente atacado ou provocado a reagir.

Também quando suas reprimendas têm como objetivo as más ações dentro da Igreja, quase sempre se mantém em generalidades. Quando o Papa Bergoglio, em uma de suas homilias coloquiais matinais, avançou uma dúvida explícita sobre o futuro do IOR, o Instituto para as Obras de Religião, o discutido “banco” do Vaticano, os porta-vozes competiram se apressaram para ver quem conseguia desdramatizar suas colocações. E quando, noutra ocasião, denunciou a existência de um “lobby gay” no Vaticano - “é verdade, existe” -, a minimização se disparou em todos os níveis. Inclusive a opinião pública laica, atualmente mais pródiga que nunca endossando acusações de homofobia, o perdoou por esta declaração com uma indulgência que provavelmente não teria concedido ao seu predecessor.

Bento XVI, efetivamente, era diferente. Apesar do trato agradável, muitas vezes era bem explícito e direto quando se tratava de exprimir suas opiniões e colocar seus ouvintes contra a parede. O terremoto que seu discurso em Regensburg provocou continua sendo o efeito mais espetacular. Mas outro de seus importantes discursos ilustra ainda melhor do que se trata.

Foi durante a sua terceira e última viagem à Alemanha, em setembro de 2011. Em Friburgo, o Papa Joseph Ratzinger quis reunir-se com uma representação dos católicos alemães “comprometidos na Igreja e na sociedade”. A eles, assim como também a quase todos os bispos da Alemanha presentes, dirigiu-lhes serenamente palavras de muita severidade, muito exigentes, todas elas centradas sobre o dever de uma Igreja pobre que “se despoja” (...) de sua riqueza terrena”, que deve “afastar-se do mundo”, a fim de poder, “libertada de fardos e privilégios materiais e políticos”, “dedicar-se melhor e de maneira verdadeiramente cristã ao mundo inteiro”.

Pois bem, este discurso foi acolhido com frieza e rapidamente silenciado por aqueles a quem o Papa se havia dirigido em primeiro lugar. Porque justamente para eles havia olhado com determinação, solicitando uma mudança dessa Igreja alemã que ele conhecia muito bem: rica, satisfeita, burocratizada e politizada, mas pobre de Evangelho.

Palavras e silêncio

O modo de falar do Papa Francisco é provavelmente um de seus traços mais originais. É simples, compreensível, comunicativo. Tem a aparência da improvisação, mas na realidade é cuidadosamente estudado, tanto na invenção das fórmulas – a “bolha de sabão” com a qual, em Lampedusa, representou o egoísmo dos modernos Herodes –, como nos fundamentos da fé cristã que ele mais gosta de repetir e que ele condensa em um consolador “tudo é graça”, a graça de Deus que sem cessar perdoa, embora todos continuemos sendo pecadores.

Mas, além das coisas ditas há as que foram deliberadamente caladas. Não pode ser casualidade que após 120 dias de pontificado não tenham saído ainda dos lábios de Francisco as palavras aborto, eutanásia e casamento homossexual.

O Papa Bergoglio conseguiu esquivar-se delas inclusive na jornada que dedicou à Evangelium Vitae, a espetacular encíclica publicada por João Paulo II em 1995, no momento culminante da sua épica batalha em defesa da vida “desde a concepção até a morte natural”.

Karol Wojtyla e, depois dele, Bento XVI se dedicaram pessoal e incansavelmente a fazer frente ao desafio histórico que representa a hodierna ideologia do nascer e morrer, como também a dissolução da dualidade “criatural” entre homem e mulher. Bergoglio não. Parece já comprovado que decidiu silenciar sobre estes temas que estão presentes na esfera política de todo o Ocidente, inclusive a América Latina, convencido de que estas intervenções não são da competência do Papa, mas dos bispos de cada país. Aos italianos disse isso com palavras inequívocas: “O diálogo com as instituições políticas é coisa de vocês”.

O risco desta divisão das tarefas é grande para o próprio Francisco dado o juízo pouco bajulador que parece ter sobre a qualidade média dos bispos do mundo, mas é um risco que ele quer correr. Seu silêncio é outro dos fatores que explicam a benevolência da opinião pública laica a respeito dele.

A cúria

Além disso, há a seu favor a visível vontade de reformar a cúria romana e, em particular, de extirpar esse tumor que é o IOR.

O Papa confiou o estudo de uma reforma da cúria a um conselho internacional de oito cardeais, todos nomeados por ele, cada um dos quais, por sua vez, chamou para consulta especialistas da sua confiança. Há quem viu nisto o primeiro passo para uma democratização da Igreja, com a passagem de uma autoridade monocrática a uma oligárquica. Como um perfeito jesuíta, Bergoglio quer antes aplicar ao seu exercício do papado o modelo próprio da Companhia de Jesus, no qual as decisões não são tomadas colegiadamente, mas apenas pelo prepósito geral, em absoluta autonomia, após ter ouvido separadamente os próprios assistentes e cada pessoa que quiser.

É, portanto, previsível que no começo de outubro, quando pela primeira vez se reúnam em Roma os oito cardeais conselheiros para colocar sobre a mesa os projetos recolhidos, os pareceres sejam muito diferentes.

Já foi possível ter um aperitivo dessa divergência de opiniões na Alemanha, onde também um projeto de reforma da cúria foi solicitado ao ex-diretor da filial de Munique da Agência McKinsey, Thomas von Mitschke-Collande. Este pedido lhe foi dirigido pelo poderoso secretário da Conferência Episcopal da Alemanha, o jesuíta Hans Langerdörfer, sem o conhecimento do arcebispo de Munique, Reinhard Marx, que é, além disso, um dos oito conselheiros nomeados pelo Papa; mais, com grande desgosto por sua vez, pois o arcebispo tem uma opinião bastante negativa sobre von Mitschke-Collande, sobretudo depois da leitura de seu último livro, com o polêmico título: “Quer a Igreja eliminar-se a si mesma? Fatos e análises de um consultor empresarial”.

Enquanto isso, outra alta personalidade da Igreja alemã fez chegar à Congregação para a Doutrina da Fé outro escrito do homem da agência McKinsey, evidenciando os erros doutrinais dos quais seria portador.

O IOR

Se as iniciativas do Papa Francisco em relação à reforma da cúria e à seleção mais rigorosa dos candidatos a bispos ainda estão apenas no nível do anúncio – por outro lado, saudado também este por um consenso geral –, vários fatos concretos tiveram lugar, ao contrário, no que diz respeito ao IOR. Mas por obra, no entanto, não tanto do Papa como de diversos atores, às vezes em conflito uns com os outros, tanto dentro como fora da Igreja, incluindo, além disso, um desastroso infortúnio que recaiu pessoalmente sobre Francisco.

O ator externo que teve um papel decisivo determinando os acontecimentos foi a magistratura italiana, que em junho ordenou a prisão de mons. Nunzio Scarano, que até o mês anterior havia sido responsável pela contabilidade da Administração do Patrimônio da Sé Apostólica. Está sendo acusado de tráfico ilegal de dinheiro realizado em 2012, também através de contas do IOR e com o consentimento dos dirigentes máximos do instituto, precisamente enquanto o Vaticano estava comprometido com o mundo na adoção de normas internacionais mais severas contra a lavagem de dinheiro.

Ao mesmo tempo, foi igualmente a magistratura italiana que concluiu as investigações sobre o diretor e o vice-diretor do IOR, Paolo Cipriani e Massimo Tulli, respectivamente, ambos acusados de movimentos suspeitos de dinheiro em 14 operações realizadas entre 2010 e 2011; portanto, novamente enquanto Bento XVI impulsionava uma obra geral de reordenação e de limpeza dos escritórios financeiros vaticanos.

A consequência inexorável destes atos da magistratura italiana foi a demissão de Cipriani e de Tulli, ou seja, precisamente as duas pessoas que, na primavera de 2012, o então presidente do IOR, Ettore Gotti Tedeschi, quis que fossem destituídas, considerando-as os verdadeiros responsáveis pelas malversações de dinheiro do instituto. Mas, ao contrário, o que conseguiu foi, em 24 de maio, sua própria brutal expulsão do conselho do IOR por ordem do cardeal secretário de Estado, Tarcisio Bertone.

O escândalo

Sobre este fundo de ruínas, o Papa Francisco tomou, por iniciativa própria, duas medidas.

Em 15 de junho, nomeou “prelado” do IOR, com plenos poderes, Mons. Battista Ricca, conhecido e apreciado por ele como diretor da Domus Sanctae Marthae, onde escolheu morar em vez dos apartamentos pontifícios.

E no mesmo dia 24 do mesmo mês, instituiu uma comissão de investigação sobre o IOR, que prestará contas exclusivamente a ele e que é formada por cinco personalidades externas e competentes, entre as quais a ex-embaixadora dos Estados Unidos na Santa Sé e professora de direito em Harvard, Mary Ann Glendon.

Contudo, infelizmente, quando o Papa Francisco criou esta comissão, já havia descoberto que havia se equivocado de maneira clamorosa com a primeira nomeação, a do “prelado”.

Efetivamente, nos dias imediatamente anteriores ao dia 24 de maio, ao reunir-se com os núncios vaticanos que chegaram a Roma de todas as partes do mundo, havia obtido de alguns deles informações incontestáveis sobre a “conduta escandalosa” demonstrada por mons. Ricca em 2000 e 2001 no Uruguai, quando prestava serviços na nunciatura deste país, da qual foi bruscamente afastado para ser, por fim, chamado para Roma.


A causa da cadeira vazia no concerto de 22 de junho oferecido em sua honra foi, talvez, também a dor que Francisco sentiu ao descobrir este seu erro ao reunir-se com os núncios naqueles dias. Nenhum Papa é infalível. Nem sequer o mais amado por todos.


Fonte: domtotal

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