quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Reflexões de uma mãe feminista sobre a cultura das princesas

Existe uma pressão para que crianças tornem-se ‘jovens’ o quanto antes. Meninos e meninas de cinco comportam-se como se tivessem oito ou nove e estes já simulam a adolescência. A princesa-mania, com suas roupas, maquiagens e comportamento de ‘mocinha’ é uma das ferramentas eficientes para que esse mecanismo social funcione. Da mesma forma, essa cultura colabora na consolidação de padrões de beleza quase sempre inexistentes que acabam por oprimir a grande maioria das crianças que procuram no espelho, espelho meu, uma pele clara, longos cabelos lisos, olhos claros e amendoados.
 



Texto de Ludmila Pizarro

Nos corredores dos shoppings elas correm com desenvoltura. Meninas, cada dia mais novas, com esvoaçantes fantasias de princesa. Além da roupa, tiaras, bolsas, toalhas, mochilas, maquiagens, sandálias compõem o figurino que em sua infinita enumeração de itens acaba por configurar um fenômeno social, a princesa-mania tal qual já nos habituamos.



O universo dos contos de fadas, por si, nada tem de problemático. Com uma contribuição ao desenvolvimento infantil bastante esclarecida pela psicologia, a fantasia permeia e enriquece a realidade dos pequenos, principalmente até os cinco anos. Atire a primeira pedra o adulto que nunca se derreteu diante de uma frase criativa e surreal saída da boca de um serzinho de dois ou três anos. Ou, então, frente a um rosto que foi surpreendentemente iluminado por alguma mentira grosseira e seguido pela frase: é mesmo?



As histórias de princesas estão nesse contexto, também contribuindo para o desenvolvimento tanto de meninas como de meninos. Os relatos dos obstáculos enfrentados, sem a perda da esperança, os exemplos de resistência, bondade, esperança somados a um final reconfortante, podem ser acalentadores e ajudar as crianças a lidar com seus próprios medos e dificuldades.



Como mães e feministas, entretanto, fica difícil não lançar sobre esse fenômeno um olhar mais crítico e perceber a introdução de valores conservadores, onde deveria existir liberdade de expressão. O espaço da fantasia é tomado pela inserção de regras sociais rígidas onde o papel da mulher/princesa torna-se sufocante.



Um exemplo disso é a Escola das Princesas, iniciativa de uma empresária do interior do estado de Minas Gerais (assista ao vídeo aqui). Na reportagem, o jornalista afirma ‘que para ser uma princesa tem que cuidar da beleza e ficar elegante’. Em seguida, projeta no vídeo uma aula de automaquiagem, ‘que não pode ser exagerada’. Já as meninas, aspirantes a princesa, quando têm voz é para discorrer uma extensa lista de obrigações à mesa que vão de manter a postura ereta até usar o guardanapo só no cantinho da boca, com o cuidado para não tirar o batom. Não se trata de uma revolta contra os bons modos à mesa, mas não dá para ouvir, ao longe, o velho refrão dos Mutantes*? Serão essas meninas felizes hoje, nesse lugar social em que as colocaram, e, igualmente importante, serão adultas felizes?




Simone de Beauvoir nos ensinou que não se nasce mulher. Torna-se mulher. Uma construção social, como qualquer outra, é precedida de trabalho, esforço e um objetivo. A princesa-mania com suas regras e padrões faz parte dessa construção. E atenção para o detalhe: apresenta uma proposta de mulher a meninas cada vez mais novas. Outros fenômenos colaboram para isso. Como apontado pela psicóloga Rosely Sayão no texto ‘Bendita Juventude’, a juventude foi transformada em estilo de vida. Todos querem ser jovens, sejam adultos, velhos ou crianças. Existe uma pressão para que crianças tornem-se ‘jovens’ o quanto antes.



Assim, meninos e meninas de cinco comportam-se como se tivessem oito ou nove e estes já simulam a adolescência. A princesa-mania, com suas roupas, maquiagens e comportamento de ‘mocinha’ é uma das ferramentas eficientes para que esse mecanismo social funcione. Da mesma forma, essa cultura colabora na consolidação de padrões de beleza quase sempre inexistentes que acabam por oprimir a grande maioria das crianças que procuram no espelho, espelho meu, uma pele clara, longos cabelos lisos, olhos claros e amendoados.




Intrinsecamente ligado a esse cenário, onde a fantasia colorida das princesas torna-se a maçã envenenada da bruxa, está a mola mestra do capitalismo contemporâneo que é o consumo exacerbado de produtos descartáveis. A princesa-mania oferece em uma bandeja prateada – de plástico, produzida na China – um arsenal de produtos altamente sedutores e de uma inutilidade impressionante, que vão se tornando indispensáveis para a felicidade e afirmação social das meninas. E nesse quesito, vale lembrar, o lúdico cede seu lugar aos objetivos de uma indústria global que visa comercializar o máximo de produtos possível e fidelizar a clientela. A mãe e também feminista, Lilliane Gusmão, exemplifica bem ao recordar de um presente dado à sua filha. Mesmo com uma característica educativa, ensinar números e letras, o brinquedo com o tema das princesas verbalizava com uma vozinha de robô: você que ser uma princesa quando crescer?




Não é possível, portanto, negar a participação dessa cultura das princesas na formação da mulher que nossas filhas serão. Assim como, ela também interfere na formação dos homens que nossos filhos serão e que, muitas vezes, foram impedidos de aproveitar, com liberdade, suas próprias fantasias com castelos e princesas.




Não pretendo com essa conclusão sugerir um cenário sombrio para essas futuras mulheres e futuros homens. As construções sociais são dinâmicas e as previsões nessa área quase sempre infrutíferas. Como feminista e mãe de uma menina, prefiro atentar-me ao fenômeno sem negá-lo ou cair em reducionismos. Muito menos tentar restrições educativas inócuas. Fico com as perguntas, como dosar, com sabedoria, o acesso às princesas e seu universo lúdico? Como ressaltar a distinção entre o faz-de-conta e o consumo vazio? E apresentar a um ser em formação e imerso em histórias fantásticas o que é senso crítico?




Não tenho respostas. Mas talvez tenha algumas inspirações. O primeiro filme que tenho lembrança de assistir no cinema foi A Branca de Neve. Bem no início da sessão meu pai, para minha surpresa, afirma que irá torcer pela madrasta. E assim o faz durante todo o filme, chegando a ficar condoído quando a velha bruxa (coitadinha, dizia ele) caiu do penhasco, perseguida pelos anões (aqueles homenzinhos sem coração, para meu pai). Quando perguntei o porquê de uma decisão tão infeliz – torcer pelo vilão – ouvi a seguinte explicação: todos torcem pela Branca de Neve. Coitada da bruxa, não tem ninguém para torcer por ela, então eu farei isso, mesmo sabendo que ela vai perder no final.




Algumas derrotas podem se transformar em vitórias no futuro. Evidentemente, à época, eu não entendi o raciocínio de meu pai. Mas, não sei em que momento da vida, passei a simpatizar não apenas com princesas, mas com bruxas, mulheres incompreendidas em sua maioria, também.




Agradeço as honrosas e elegantes colaborações de Liliane Gusmão e Cecília Santos para a construção desse texto.




* Em respeito aos mais jovens, o refrão citado: “Essas pessoas na sala de jantar / São as pessoas da sala de jantar / Mas as pessoas na sala de jantar / São ocupadas em nascer e morrer”. A música é Panis et circenses, de 1968 da banda Os Mutantes.



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Ludmila Pizarro é brasileira, jornalista, feminista, mãe e apaixonada por livros. Escreve no blog: Com o pé na estrada.

Fonte: blogueirasfeministas.com

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