sexta-feira, 24 de agosto de 2012

O hip-hop das mulheres: temas femininos mudam gênero no Brasil

Elas chegaram de mansinho e agora já está tudo dominado. Fazem shows lotados, têm público fiel que sabe cantar todas suas letras e vão ocupando seus lugares de destaque nas capas de revistas.



 As meninas do hip-hop nacional subverteram o universo de temas masculinos, para começar. Também fizeram com que seus shows fossem uma porta de entrada para o público feminino no rap. "Antes, era raro. Agora, só dá menina", diz a paulistana Dryca Ryzzo, que está lançando seu primeiro disco, batizado com seu nome - produzido por Dehco Wanlu (Jigaboo) e masterizado no Sterling Sound de Nova York por Jay Franco.
 São muito jovens, mas já têm estrada. A curitibana Karoline dos Santos de Oliveira, que sonhava em ser Lauryn Hill um dia, virou a Karol Conká, e faz rima desde os 17 anos (tem 26 agora). Sua agenda de shows (sempre cheios, difícil até de arrumar ingresso) passa pelo Brasil todo, de Salvador a Limeira, de balada gay em Vitória da Conquista ao Amapá.
"O rap tinha problema de aparecer na TV, na mídia. A nova escola não tem tanto esse problema. Eu acredito que quem não é visto não é lembrado", diz Karol, que foi atração do recente The Creators Project, em São Paulo.
 Um grande sinal de que a mudança tinha vindo para ficar foi durante a Virada Cultural, em junho. No palco da República, as meninas Flora Matos e Lurdez da Luz conseguiram arrebanhar cerca de 5 mil fãs para vê-las em uma manhã muito quente. Detalhe: a maioria era de garotas.
 Lurdez e Flora (abusando do seu slogan "Máximo Respeito", que invoca Aretha Franklin) inverteram o axioma do hip-hop, de que a rima é coisa dura e de macho, e arredondaram o ritmo com versos mais macios, danças mais sensuais e impregnadas dos dramas femininos mais cotidianos. Enxertaram curvas onde só havia verso pontiagudo. 
Suas canções contemplam a desilusão amorosa, o ciúme, a apatia masculina, a falta de carinho. Sua atitude é desafiadora, elas mostram que são do tipo que toma a iniciativa. "Fica só pra esperar o sol", cantava Flora Matos, de gorro de esquiadora e coturno. Ela é, aos 21 anos, a maior estrela do rap nacional no momento. Suas canções parecem conhecidas em todas as classes sociais, conclamando uma espécie de trégua social e multicultural. "Pretim, desse jeito você me deixa louca." Não há menina que não dance essa.
Dryca Rizzo ficou à sombra dos manos do rap durante um bom tempo. Era backing do projeto Rosana Bronks, de Mano Brown, e sua voz às vezes soava em coletivos masculinos como RZO e Conexão do Morro.
"Mas estava na hora de injetar algum glamour no caos", brinca a cantora. "Se hoje tem meninas nos shows, é porque falamos de assuntos que são de mulheres. Não queremos mais só agradar ao lado masculino do rap", diz. "Engraçado, todo mundo achava que os homens não iam gostar, mas acho que pela batida e por outros elementos, tem atraído o público masculino também."
 Dryca tem 26 anos e é de Santo Amaro, zona sul de São Paulo. Alterna as turnês como cantora com o trabalho numa fábrica - três vezes por semana, ela desenha bijuterias numa empresa, das 7h às 17h30. Paralelamente, estudou canto, aprendeu em discos de Aretha Franklin, Ella Fitzgerald, Whitney Houston, como conta.
 "Quando eu fazia backing para o Conexão do Morro, a música era uma realidade deles. Agora é o meu disco, quero falar de coisas que eu sinto, coisas que podem inspirar outras meninas", afirma Dryca.
 Até cinco anos atrás, em Curitiba, Karol Conká só tinha uma canção para abrir shows, Aqui Você Não Pode. Foi com essa música que escancarou seu caminho numa época em que as garotas "se comportavam como homens", diz. "As garotas iam as shows de rap, mas eram tão masculinizadas que se camuflavam. A primeira vez que eu fui, eu prometi: vou entrar nesse mundo do rap e mostrar como é que a mulher faz", diz Karol.



Ela, na verdade, era mais da MPB. "Adorava Milton Nascimento", confessa a menina que veio do Alto Boqueirão, em Curitiba, e foi secretária, recepcionista, assistente administrativa até ser aconselhada pelos chefes a ser artista mesmo, porque seu negócio era outro. Em 2011, seu clipe Boa Noite lhe rendeu uma indicação na categoria Aposta do VMB 2011.
 A profissão de fé do rap de Karol Conká é muito explícita: "Quero fazer sempre um rap acessível a todas as classes, todas as idades, todos os estilos".
Flora Matos veio de Brasília. Filha do músico baiano Renato Matos, da banda Acarajazz, cresceu entre a capital federal e Olhos D’Água, cidade de 3 mil habitantes a 105 quilômetros da capital federal. É a quinta de sete irmãos: Jandira, Abaetê, Zé, Caetano, Julia e Davi. Nas palavras do pai, aos 12 anos a filha "já estava mulher". Ia sozinha a shows de reggae, escondida da mãe, Áurea, auxiliada por uma amiga com o dobro de sua idade. Aos 13, se apaixonou por rap num show dos Racionais.
"O grande lance é que ela não é uma mina que fica reclamando que é mina. Tem umas garotas que cantam ‘eu sou mina, mas também represento’, ‘quero meu espaço’, essas coisas. A Flora canta de igual pra igual com qualquer MC, seja o Mano Brown ou um moleque de 15 anos", disse Emicida, colega e fã de Flora.
"A gente teve várias minas na história do rap nacional, mas neste momento os ventos têm soprado a favor da Flora", disse Emicida à revista TPM, avalizando a trajetória da colega. Gravou uma música com Seu Jorge para disco do rapper Talib Kweli,
A veterana do time é Lurdez da Luz, de 31 anos, que compõe e rima há 12 anos e alterna a carreira com o papel de mãe de Roge, de 6 anos. Lurdez foi vocalista do grupo Mamelo Sound System e integrante do projeto 3naMassa, e é um exemplo de atitude e coerência para as recém-chegadas. "Bate no peito com respeito/Que eu quero ver", desafia, em sua nova canção, Levante, um "grito de guerra".
O hip-hop das novas garotas do rap não tem preconceitos nem fronteiras. Parte do R&B de Beyoncé e Destiny’s Child, como confessam Karol e Dryca. Volta atrás em busca de Diana Ross e Lady Zu. Mas também assume sua porção Cartola e Elis Regina. Tem ziriguidum e tem scratch, mas principalmente apelo dançante e um jeito franco de assumir sua vaidade. "Respeito não se ganha pela roupa, mas pela atitude. As garotas se vestiam para serem aceitas pelo rap masculino. Mas é bom que se diga: não sou feminista", diz Karol Conká.


Fonte: O Estadão

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