Thiago Cid - Revista Época
Ressaca da evolução
O britânico Malcolm Potts defende que a agressividade masculina que era fundamental para a sobrevivência da espécie tem agora um efeito negativo sobre a humanidade
Para o médico e cientista inglês Malcolm Potts, professor da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos, o sexo e a violência estão geneticamente ligados pela evolução. Em seu novo livro, Sex and War - que escreveu eu parceria com o jornalista Thomas Hayden -, ele afirma que a mesma agressividade que permitiu ao homem evoluir na pré-história agora provoca dois dos grandes problemas do mundo contemporâneo: as guerras e o terrorismo. Em entrevista a ÉPOCA, Potts afirma que, assim como a sociedade já abomina a escravidão – por considerar que somos todos iguais –, pode, no futuro, abominar as guerras e se esforçar mais para acabar com elas. O cientista também defende que, para diminuir a violência, a solução seria um mundo liderado pelas mulheres.
ÉPOCA - Por que o senhor diz que sexo e violência são ligados pela evolução?
Malcolm Potts - Evolução não quer se refere ao que é certo ou errado. É uma questão do que é bom em relação à sobrevivência. Os primatas mais desenvolvidos ou os seres humanos de antigamente matavam seus vizinhos. Isso garantia mais recursos e comida, portanto mais fêmeas e mais descendentes para perpetuar sua linhagem genética. A evolução conduz a coisas que hoje em dia podemos achar ofensivas ou imorais, mas quando entendemos de onde viemos, creio que se torna mais fácil compreender por que guerreamos ou por que existe terrorismo.
ÉPOCA - O senhor também afirma que a mesma evolução nos deu as ferramentas para quebrar esse elo entre violência e sexo. Por quê?
Potts - Creio que os mesmos instintos que apresentamos no sexo e na violência podem ser flexíveis e expressados de forma diferente. Não é preciso sair caçando pessoas, como alguns grupos indígenas ainda fazem, para expressar essa propensão genética à violência. Esportes radicais ou de grupo têm o poder de excitar os homens jovens, há grandes doses de perigo, exigem força, ousadia, incentivam a competitividade. Não são coisas características do ser humano, mas sim do sexo masculino. Para entender a violência, você tem de se dar conta de que é um aspecto masculino, conduzido pela testosterona, embora haja violência entre as mulheres. Mas a necessidade de sair e matar outros da mesma espécie é masculina, especialmente desenvolvida nos primatas mais evoluídos, como o chimpanzé e o homem.
Para entender a violência, você tem de se dar conta de que é um aspecto masculino, conduzido pela testosterona, embora haja violência entre as mulheres.
ÉPOCA - Se o papel do macho era guerrear para prover, qual o papel das fêmeas na evolução?
Potts - O primeiro é claro: gerar os descendentes. O problema é que as fêmeas vêm escolhendo seus parceiros sexuais por milhões de anos, e elas percebem essa aproximação do macho e da fêmea com os olhos de pessoas urbanas do século 21. Nas sociedades domésticas, que surgiram há cerca de 10 mil anos, as propriedades são passadas às novas gerações pelo parentesco. Há também formas culturais de controlar as mulheres, como os costumes e os tabus.
ÉPOCA - E como a biologia explica esse esforço para controlar as mulheres?
Potts - O homem que controla as mulheres tem mais filhos. Evolução é sobre quanto dos seus genes será passado à próxima geração. As mulheres não podem ter 20 ou mais filhos. Elas podem ter sete ou oito. Já os homens podem ter essa quantidade de filhos com cada uma das mulheres que possuir. Eles usam o poder e as riquezas para controlar as mulheres e, assim, gerar mais descendentes. A decisão de quem vai ser o pai de sua cria é da mulher e, por conta da sobrevivência, ela não vai escolher um fraco ou pobre. Ela sabe que um macho poderoso e com recursos vai poder prover a ela e à sua cria. É a escassez, a desigualdade de riquezas e recursos que provoca essa situação.
ÉPOCA - É por isso que as mulheres preferem os machões?
Potts - É interessante como as pessoas tomam decisões intuitivas muito boas. Se a mulher vê que um homem está no lado vencedor, o impulso delas é se juntar a ele, segui-lo, porque ela sabe que, no final, ele se sobressairá aos outros e terá mais recursos. Nem todas as mulheres tomarão essa decisão, naturalmente. Mas esse fascínio pelo homem violento e dominador não existiria se não houvesse a evolução e nossos antepassados não tivessem de lutar por cada pedaço de terra que pudesse fornecer alimentos.
ÉPOCA - É uma espécie de escolha inconsciente herdada de nossos ancestrais da idade da pedra?
Potts - Sim. Na Segunda Guerra Mundial eu era uma criança na Inglaterra, mas me lembro bem como os soldados de uniforme fascinavam as mulheres. Elas se apaixonavam e tinham relações sexuais com homens que faziam coisas perigosas porque era uma maneira de ter acesso a um parceiro em potencial que a proveria com recursos e a protegeria em situações de crise, como era aquela.
ÉPOCA - Mas as mulheres não são isentas de tendências violentas?
Potts - Claro que não. Elas também podem fazer parte do grupo que ataca a própria espécie, que “desumaniza” o seu vizinho para poder diferenciá-lo dos seus e assim matá-lo e roubar seus recursos. Se você é um animal sociável inteligente, matar sua própria espécie é um comportamento incomum e sem sentido. Então, é preciso um mecanismo no cérebro que “desumanize” – ou “desanimalize”, porque os chimpanzés e as hienas também o fazem – para poder tolerar e conviver com essa anomalia. É o que ocorre. Quando há uma matança sistemática, você sempre ouve o discurso: “eles não são humanos, são animais”. É como os inimigos de guerra se tratam. Quando eu era jovem, eu ouvia que um alemão bom era um alemão morto. E toda a Grã-Bretanha foi educada a pensar dessa forma por causa da guerra.
ÉPOCA - E somos capazes de mudar?
Potts - Essa é a boa notícia. Basta olhar como os franceses, os britânicos e os alemães se odiavam há pouco mais de 60 anos. Mas as pessoas viajam, elas são conectadas pelas redes sociais, do telefone ao cinema, música e internet. Elas restabelecem vínculos. Quando olhamos o impacto da violência humana, devemos pensar quantas pessoas foram assassinadas em relação ao restante da população. Se você analisar os yanomamis no Brasil, um terço deles morre assassinado por outros seres humanos. Na Segunda Guerra, cerca de 20% dos russos morreram. O que eu percebi naquele atentado em Mumbai, na Índia, é que 10 homens mataram cento e setenta e poucas pessoas. A proporção foi de um assassinado para cada 3 milhões de indianos. E isso por apenas 10 homens. Apesar de milhões de anos de evolução, temos uma predisposição a atacar e a reagir a atentados partidos de seres de nossa própria espécie, porque matar seres humanos é a coisa mais freqüente de nossa história.
ÉPOCA - Mas por que os somos um dos poucos animais a matar sistematicamente outros de nossa própria espécie?
Potts - Para matar dessa forma é preciso ser um animal territorialista. As feras na África percorrem milhares de quilômetros para encontrar água e comida. Elas vivem em movimento. Mas se vivem em um território específico, é preciso lutar pelo espaço e pelos recursos que ali estão. Quando o animal é inteligente e sociável, ele é capaz de produzir trabalho em equipe. Eles formam um grupo que é coeso pela confiança. Existe uma ligação afetiva não-sexual muito forte. E esse grupo é capaz de matar os vizinhos, que são da própria espécie – mas não do grupo – para lhes tomar o espaço, as fêmeas e os recursos. E são os jovens que fazem a matança, juntos. Por isso é tão perturbador pensar sobre isso. Nós sempre admiramos a coragem do guerreiro, e lhe damos medalhas e honrarias, mas não paramos para pensar que essa bravura tem a mesma natureza da violência que abominamos. Gosto de fazer a seguinte brincadeira: como o mundo se pareceria se fosse dominado por um animal inteligente como o cavalo ou o canguru. Haveria guerra? Eles não são territorialistas. Pode parecer bobo, mas é uma forma interessante de avaliar o comportamento humano. De certa forma, é um azar ter essa inteligência sociável e territorialista.
ÉPOCA - No seu livro, o senhor mostra que a guerra, a escravidão e o domínio sobre a mulher têm uma raiz comum profunda na nossa história biológica. O que isso quer dizer?
Potts - Inicialmente, os seres humanos saíam e matavam seus vizinhos. Quando a sociedade se tornou um pouco mais complexa, percebemos que, em vez de matá-los, poderíamos escravizá-los e fazê-los trabalhar para nós. Escravidão é o mesmo que a guerra. Depende da habilidade de desumanizar os semelhantes. Ninguém escraviza outro ser humano se pensar que ele é igual. É preciso que o escravizado seja um ser inferior. Nessa análise eu percebo uma outra mensagem. Apesar de ainda existirem escravos no mundo, todos os países condenam a escravidão e realizam esforços para acabar com ela. Então é razoável pensar que daqui a centenas de anos as pessoas façam o mesmo esforço para prevenir as guerras.
As pessoas são capazes de restabelecer vínculos. É só olhar como os franceses, os britânicos e os alemães se odiavam há pouco mais de 60 anos.
Sexo e Guerra
ÉPOCA - Por que senhor diz que o comportamento humano só pode ser verdadeiramente entendido sob a luz da biologia?
Potts - Os seres humanos não são uma folha em branco. Nossos cérebros não são como um disco rígido vazio no qual rodamos um programa. Nós temos predisposições, estruturas mentais já formadas e preparadas para identificar pessoas de nosso próprio grupo. Quando minha primeira mulher morreu, descobri esse imenso potencial para o luto que eu não esperava e não entendia. É o mesmo em relação à dedicação aos filhos. São sentimentos e comportamentos que não nos são ensinados e são universais. Temos todas essas predisposições, e uma delas, infelizmente, é a predisposição masculina para a violência.
ÉPOCA - Mas são predisposições geradas há milhões de anos. Por que elas permanecem, mesmo como o advento da civilização e da cultura há alguns milhares de anos?
Potts - A cultura é uma força poderosa que nos impede de matar nossos vizinhos. Mas, como você disse, nós só vivemos em comunidades – comunidades agrícolas – há aproximadamente 10 mil anos. Na maior parte dos últimos 300 mil anos – quando o cérebro e o corpo humano se tornaram o que são hoje – nós vivemos em pequenos grupos predadores. Os comportamentos que temos estão em sintonia com aquele mundo em que era preciso matar os da própria espécie para sobreviver. A evolução é um processo muito lento. Estarmos no mundo há poucos milhares de anos e por isso nossos genes ainda não foram modificados.
ÉPOCA - Qual a importância de tomarmos o comportamento de outros animais para entendermos o nosso?
Potts - Antes de olharmos para nós mesmos, nós deveríamos olhar atentamente para os macacos. Se nós podemos fazer isso para analisar nossa anatomia, também podemos fazê-lo para analisar nosso comportamento. Quando você convive com chimpanzés, percebe muitas características humanas. Ou seria o contrário? O elementar é que a violência territorial do homem, incluindo aí o controle da fertilidade das mulheres e a desumanização do vizinho, são nítidas nas duas espécies.
Apesar de ainda existirem escravos no mundo, todos os países condenam a escravidão e realizam esforços para acabar com ela. Então é razoável pensar que daqui a centenas de anos as pessoas façam o mesmo esforço para prevenir as guerras.
ÉPOCA - O fato de ambas as espécies herdarem esse comportamento de um ancestral comum tem a ver com a sua afirmação de que a violência masculina é uma ressaca evolucionária?
Potts - Sim. A evolução é um processo imperfeito. Vou-lhe dar um exemplo. Eu sou um médico obstetra. Para dar à luz, as mulheres têm de forçar o bebê por entre os ossos da pélvis. Mas por que os bebês não podem sair através da barriga, por onde fica o umbigo, tal como é feito em cesarianas? A razão para termos de espremer um bebê largo através de uma abertura tão pequena é porque há muitos milhões de anos, os peixes expeliam seus filhotes pela mesma abertura e aquilo não fazia a menor diferença. Uma vez que a evolução é um processo, não havia como criar um novo processo para outros animais. Há apenas a possibilidade de adaptação. Uma grande crítica à idéia de design inteligente, de que uma entidade divina nos desenhou à perfeição, é que a anatomia humana não é nada inteligente. Qualquer pessoa com noções de anatomia poderia redesenhar nosso corpo de modo a torná-lo mais funcional. Mas a evolução é um processo passo-a-passo. São pequenas mutações por pequenas mutações e assim progressivamente. Há os lados negativos, os efeitos colaterais da natureza. Assim como as dificuldades do nascimento são um efeito colateral do fato de termos cabeças grandes para abrigar nossos cérebros desenvolvidos, a agressividade masculina é um efeito negativo da evolução.
ÉPOCA - Por que o planejamento familiar é tão importante para um mundo mais pacífico?
Potts - Se as mulheres continuarem a ter seis ou sete filhos, a sociedade nunca irá avançar. Para isso ocorrer, é preciso que as mulheres tenham autonomia. Quando há uma alta taxa de natalidade, há grande competição por recursos e também há muitos homens jovens. No Afeganistão, metade da população tem menos de 20 anos. São muitas pessoas sem perspectivas, muitos homens que não terão emprego algum. Eles não terão meios de assumir o papel deles de provedor, de ter respeito diante da sociedade. Isso os torna presas fáceis para qualquer religião fundamentalista que os levará para atos extremos. Não é de se espantar que altas taxas de natalidade, altos índices de desemprego e muito poucas oportunidades para os homens se tornarem indivíduos de respeito para a sociedade criem um ambiente propício ao terrorismo. E aqueles 10 terroristas do Paquistão que atacaram Mumbai. Todos homens na faixa dos 20 anos, crescidos e criados juntos. Eles sabiam que iriam morrer juntos em poucos dias. Havia um amor não-sexual extraordinário entre eles, um senso de confiança de grupo e um inimigo em comum. É preciso saber o que deixa os homens jovens menos zangados e agressivos.
É interessante notar que durante o Império Turco Otomano, os diplomatas eram sempre eunucos – homens castrados. Eles eram pessoas sensatas, que não perdiam a cabeça.
ÉPOCA - É por isso que o senhor afirma que a testosterona é mais poderosa arma de destruição em massa?
Potts - Sim. A testosterona leva à competitividade masculina. Em alguns casos isso é bom. A testosterona produz o desejo sexual, que é apreciado pelo homem. Mas também o torna mais violento. É interessante notar que durante o Império Turco Otomano, os diplomatas eram sempre eunucos – homens castrados. Eles eram pessoas sensatas, que não perdiam a cabeça. Eles eram escolhidos para avaliar situações complexas e foram responsáveis por decisões muito sérias para os sultões. Por isso gostaria que o próximo presidente dos Estados Unidos fosse uma mulher ou um castrado.
ÉPOCA – É possível, então, simplesmente reduzir os níveis de testosterona dos homens?
Potts - Existem pesquisas com bloqueadores de testosterona e eu conversei com muitos dos cientistas envolvidos nesses estudos. Eles pretendem chegar a remédios que permitam aos homens controlar a produção. Seria como escolher que às terças e quintas o homem não produziria testosterona e não ficaria excitado. Por outro lado, ele agiria mais calculadamente. Claro, ainda são pesquisas e isso seria algo difícil em larga escala. Há também as castrações químicas feitas em estupradores, mas é um caso completamente diferente.
Se você der a um jovem poder total sobre uma mulher, ele irá usar esse poder para ter sexo. A boa notícia é que, mesmo nas sociedades mais violentas, as mulheres têm algum grau de autonomia e são capazes de confrontar essa coerção masculina.
POCA - O senhor mencionou o estupro. Como a biologia e a evolução explicam esse ato?
Potts - Para mim, a surpresa é que estupro é algo muito mais comum do que as pessoas pensam. Do ponto de vista evolucionário, o vencedor é aquele que passa seus genes para a próxima geração, e uma das formas de fazer isso é o sexo sem consentimento. O triste é perceber que essa característica de nossos ancestrais é amplamente visível nos dias de hoje. Se você der a um jovem poder total sobre uma mulher, ele irá usar esse poder para ter sexo. A boa notícia é que, mesmo nas sociedades mais violentas, as mulheres têm algum grau de autonomia e são capazes de confrontar essa coerção masculina. Esse lado masculino, ligado à violência doméstica, é muito mais comum do que nós queremos acreditar.
ÉPOCA - O senhor afirma que uma característica comum a todas às guerras é o estupro sistemático das mulheres dominadas. Por quê?
Potts - Nas guerras, muitas vezes isso era o esperado dos homens. Na Segunda Guerra, os soldados aliados eram proibidos de estuprar as mulheres alemãs. Alguns foram punidos e executados, mas muitos o fizeram. Quando trabalhei em Bangladesh durante a guerra de independência, fiquei espantado que os estupradores eram pais de família, homens religiosos e respeitados na sociedade. Houve também uma pesquisa americana em que homens eram perguntados se eles estuprariam uma mulher caso tivessem a absoluta certeza de que não seriam pegos e punidos. Um terço respondeu que sim. É um estudo, não o mundo real, mas eu acho que muitos homens agiriam dessa maneira.
ÉPOCA - Qual a saída para a violência da sociedade?
Potts - Pelo fato de termos esse componente sexual em nosso comportamento, creio que os homens que crescem vendo as mulheres como iguais têm um nível de violência muito menor. Eles são menos propensos à agressividade. As sociedades machistas são as mais violentas. Os meninos são espancados desde pequenos, as crianças crescem sem amparo. É como se fizessem de tudo para as pessoas se tornarem mais violentas. Deveríamos criar um mundo em que as pessoas sejam criadas para serem pacíficas. Temos mulheres tomando parte nas sociedades democráticas, e isso torna menos provável que essas sociedades tenham atos de violência extrema. Na invasão do Iraque, apenas um terço do Congresso americano votou contra os planos de Bush. Se houvesse mais mulheres congressistas, teria sido mais difícil aprovar a invasão. O mundo seria mais pacífico se fosse governado por mulheres.
Fonte: Revista Época
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