quarta-feira, 17 de maio de 2017

Uma conversa com Amara Moira, travesti e escritora que milita pela descriminalização da prostituição

Amara Moira, travesti, prostituta e militante pela descriminalização da profissão veio a Porto Alegre para lançar o livro “E se eu fosse puta” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

A partir do momento que você é prostituta, você está à margem da sociedade. Prostituição é uma dessas profissões que você só pode estar lá se você não tem mais para onde ir. 


Fernanda Canofre

A primeira vez que Amara se viu Amara diante do espelho foi às vésperas de desfilar com 100 mil pessoas pela Avenida Paulista, no dia 04 de maio de 2014. Uma drag queen a maquiou, trouxe pulseiras, emprestou uma roupa arrasadora e ser mulher virou uma possibilidade. E um encontro consigo mesma. “Foi uma sensação de euforia gigantesca, uma sensação de leveza e liberdade, que eu nunca vivi na vida”, lembra. Ela tinha 29 anos, estava terminando o mestrado em Crítica Literária pela Universidade de Campinas (Unicamp) e morava com os pais.

No espaço de poucos meses, enquanto o país fervilhava em eleições presidenciais e divisão política, ela adotou o nome de Amara Moira – inspirado em um trecho da Odisseia, de Homero, sobre as moiras, videntes que previam um destino amargo pra Ulisses – passou a fazer tratamento hormonal, apresentou a nova identidade para a família, amigos e o mundo, virou militante política, começou a trabalhar como prostituta e criou um blog onde contava histórias suas e dos outros, sobre a profissão.


  
No ano passado, quando lançou o livro E se eu fosse puta (Editora Hoo), Amara virou pauta dos maiores jornais, sites e revistas do país. No jornal O Globo, do Rio de Janeiro, ela ocupou quatro páginas de uma edição de domingo, debaixo da manchete: “Travesti bissexual doutoranda na Unicamp lança livro sobre experiência como prostituta”. Uma amiga não gostou muito. Perguntou o que ela achava de travesti vir antes de doutoranda. Amara disse que gostava. 

“Porque eu me sinto mais travesti do que doutoranda”, explica ela com afeto na voz e o sorriso tímido que virou sua marca. “Eu não deposito mais expectativas de realização pessoal no meu doutorado. Antes da transição esse era o lugar onde eu seria feliz. Acadêmica, sentada em uma escrivaninha, escrevendo sobre livros que ninguém leu. Hoje, eu preciso dialogar. Eu preciso que o que eu estou escrevendo e produzindo afete a sociedade ao meu redor. Eu não consigo mais aceitar essa ideia de inteligência descompromissada com seu tempo, à margem da sociedade”.

Em 2016, Amara se lançou candidata à vereadora em Campinas, pelo PSOL. Com 2.040 votos, ficou de suplente. Três anos depois de Parada LGBT que mudou seu reflexo no espelho, ela é uma das principais vozes pela regulamentação e descriminalização da prostituição no Brasil. Na última semana, Amara esteve em Porto Alegre para lançar seu livro, na Aldeia. Pouco antes de participar de uma roda de conversa, ela falou com o Sul21 sobre identidade de gênero, feminismo e os tabus que cercam a prostituição no Brasil:

Sul21: Quando tu começaste a te ver no feminino?

Amara: Tem várias coisas que a gente sente por dentro, mas às vezes é difícil até acreditar que é viável. Principalmente quando você não tem essa compreensão de si desde muito cedo. A vida inteira eu fui uma personagem, eu precisava garantir que as pessoas me vissem como homem. Quando comecei a me perguntar por que, comecei a entrar num mundo muito doloroso de descobertas. Eu não sabia o quanto estava preparada para lidar com elas. Sete anos atrás, eu vi Priscilla, Rainha do Deserto, e fiquei perturbada. Eu já tinha me relacionado afetivamente com mulheres trans, já tinha morado com uma mulher trans por um ano e meio, já tinha contato com esse universo. Só que fazia algum tempo que eu tinha rompido relações e tentado voltar a ser o homem padrão, cis, classe média, branco, na universidade, sem participação nos movimentos sociais. E quando eu vi esse filme, era como se eu tivesse lembrado que eu estava dentro do armário. Entrei numa crise terrível e escrevi um poema, que fala de um homem que se sentiria tão mais livre se ele pudesse tirar os pelos do corpo, deixar o cabelo crescer, colocar uma roupa provocante. Mandei esse poema para a minha ex-namorada [que é trans] e disse: “escrevi esse poema pensando em você”. Ela leu aquilo e falou: “por que você acha que escreveu pensando em mim? Nunca tive pelos, meu cabelo sempre foi comprido, eu sempre me vi mulher”. Foi interessante, porque eu só consegui escrever esse poema porque achei que estava falando dela. Anos depois me dou conta que estava falando de mim. Mas eu não estava preparada para entender que falava de mim, naquele momento. Acho que só fui conseguir perceber quando, na brincadeira, eu me permiti sair com uma roupa feminina e lidar com o meu próprio temor do que isso significaria pra mim e para os outros. Eu saí num Carnaval, com a minha namorada do lado, de mãos dadas, com uma superprodução. Acho que as pessoas perceberam que estava alguma coisa passando do limite ali. Minha própria namorada não conseguia ficar perto de mim, que ficava constrangida, e veio falar “não sou lésbica” (risos).

Sul21: Os outros perceberam que “estava passando dos limites”. Mas e pra ti?

Amara:  Para mim foi uma sensação de euforia gigantesca, uma sensação de leveza e liberdade gigantesca, que eu nunca vivi na vida. Parece que você vive a vida inteira, sempre uma personagem, no momento que você não precisa mais ser uma personagem, descobre “uau, existem outras formas de viver”. Então, teve esse primeiro dia no Carnaval, daí na Parada LGBT (em maio de 2014), eu conheci uma drag que me montou, me produziu toda. Foi a primeira vez que consegui me olhar no espelho e, de fato, ver uma figura feminina. Para além da caricatura e da brincadeira. Ela fez tudo, me maquiou, me trouxe pulseiras, me ajudou a escolher a roupa, foi a primeira vez que me olhei no espelho e falei: “uau, com maquiagem dá!”. Naquele momento, eu ainda achava que precisava de maquiagem. Hoje eu não uso maquiagem nem para vir para palestras ou tirar fotos. Mas naquele primeiro momento, eu achava que só com maquiagem conseguiria ter uma aparência suficientemente feminina, a ponto de as pessoas me tratarem no feminino, como travesti.

‘Eu reconheço que tenho uma família que é completamente à parte, mas eu gostaria de lutar por um futuro que ela não fosse considerada uma família de exceção’ | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21: Depois desse episódio na Parada, tu já voltou para casa, em Campinas, como Amara?

Amara: Voltei como Amara. Meus pais foram me buscar na rodoviária, eu fiz questão de ir com a mesma maquiagem. Eu não sei fazer aquela maquiagem, então, eu dormi virada para cima, escovei os dentes de forma cuidadosa, para não borrar nada. Voltei no dia seguinte para Campinas, meus pais foram me buscar na rodoviária, dia 05 de maio de 2014, era aniversário de 92 anos da minha avó e ela estava no carro. Quando eu entro no carro, minha mãe vira e pergunta: “esse é o presente que você quer dar pra sua vó?”. Eu falei pra ela: “ela quer algo melhor do que ganhar uma neta?”. Silêncio sepulcral.

Sul21: E agora, três anos depois?

Amara: Minha vó ainda não me trata no feminino. Ela é a única pessoa que eu permito que isso aconteça. Até porque o meu nome de registro é o nome do marido dela, meu avô, que eu não conheci. É mais do que simplesmente um nome. Você me chamar de Amara é diferente da minha avó me chamar de Amara, minha mãe me chamar de Amara. Mas meu pai, com seis meses de transição, chama a família e fala que sente muita admiração pela forma como eu fiz minha transição, enfrentei os preconceitos e que a partir daquele dia ele ia me chamar de Amara. Era perto do Natal, foi maravilhoso. Nem sabia que eu podia contar tanto assim com meu pai e foi maravilhoso. É engraçado, porque eu venho descobrindo que a minha família, por mais que ela seja cria de uma sociedade preconceituosa, como todo mundo, também está disposta a se reinventar para não abrir mão da filha que tem.

Sul21: Infelizmente essa não é a realidade da maioria das pessoas trans e travestis, né? Como foi ter a acolhida da tua família?

Amara: Eu reconheço que tenho uma família que é completamente à parte, mas eu gostaria de lutar por um futuro que ela não fosse considerada uma família de exceção. Porque é absurdo, o filho ou a filha começarem transição e a gente achar que a família apoiar é inesperado. Eu precisei muito desse abraço dos meus pais. Na universidade, eu tive isso também. A primeira pessoa com quem eu conversei na Unicamp, a princípio parecia que ela não tinha comprado a ideia. A gente ficou horas conversando e, quando foi se despedir, ela falou: “tchau, gato”. Falei: “que merda, vou ter que conversar com cada indivíduo dessa universidade e descobrir no final da conversa se a pessoa vai me tratar ou não no feminino”. No dia seguinte, eu chego e essa pessoa me apresenta para uma roda de amigos dizendo “gente, essa é minha nova amiga, Amara”. Se alguém me tratava pelo nome antigo, alguém da própria roda corrigia. Eu não tive que me desgastar pedindo que não me tratassem pelo nome antigo. Isso seria uma tarefa muito violenta.

Sul21: Como que entrou na tua vida a questão de profissional do sexo?

Amara: Foi no final de 2014. Quando eu paro para pensar porque eu demorei tanto tempo para transicionar, um dos motivos era o medo de perder a vida que eu vinha construindo até aquele momento. Eu estava no final do mestrado quando comecei a transição, sem ninguém saber comprei os remédios, fiquei tomando hormônio sozinha. Comprei roupas [femininas] e deixava guardadas no armário, só esperando. Porque eu não sabia de nenhuma pessoa trans que estava na universidade, eu não conhecia o transfeminismo, não conhecia a militância trans. O único lugar que eu via transexuais era na prostituição e na prostituição precária. Eu não poderia continuar com a minha ideia de ser professora ou uma intelectual, qualquer plano que como homem cis eu teria pela frente. Poderia ser difícil chegar lá, mas esse caminho existia na minha frente. Como travesti parece que esse caminho não tinha mais condições. O caminho que se abria era a prostituição. Meu doutorado é sobre um autor difícil, James Joyce, e é para fazer com que ele pareça mais difícil ainda, para que só iniciados consigam lidar com ele. Para mim, isso era absurdo, não conseguia mais participar daquele espaço. Então, várias coisas me levam à prostituição. Os clientes me tratam no feminino sem pestanejar, eles demonstram desejo pelo meu corpo e meu corpo fazia sentido. Em todos os outros espaços que eu ocupava, meu corpo era um corpo estranho, recebia ameaças, ali não. Ali era um corpo que merecia desejo, ainda que na sombra, ainda que ninguém visse, que não pudesse pegar a mão da pessoa em público, que não pudesse haver um afeto de forma um pouco mais respeitosa e inteira. Era só um negócio precário, vinte minutos, 30 e poucos reais, algumas experiências de violência, mas ali eu podia ser Amara. A prostituição foi um espaço de descoberta, onde eu pude descobrir para que serve a literatura, pude dar um sentido para a minha escrita. Era uma forma de ganhar o dinheiro que eu precisava para bancar a minha transição também.



‘Quero poder lutar por um futuro onde exercer sexo e cobrar por ele não seja algo estigmatizável. Eu não entendo como é possível fazer uma roda de conversa sobre sexualidade, sem chamar prostitutas’ | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21: Em um trecho do teu livro, tu falas que tinha “medo da prostituição e de ser tratada com exclusão”. Como foi lidar com isso?

Amara: A partir do momento que você é prostituta, você está à margem da sociedade. Prostituição é uma dessas profissões que você só pode estar lá se você não tem mais para onde ir. Só que ao mesmo tempo, a gente olha para a sociedade, vê que sexo é uma coisa importantíssima, mas alguém que se especializa em sexo é inconcebível. E a gente tem as profissões mais absurdas no capitalismo. Eu estava nesse lugar da prostituição, de objeto, e aí eu começo a me aproximar da militância, que pensava um feminismo que respeitasse as demandas de prostitutas. Que demandas seriam essas? A gente poder exercer esse trabalho e ser melhor remunerada por ele, poder exercer em condições mais adequadas, dentro de estabelecimentos que nos garantissem segurança, que a gente estabelecesse um protocolo de segurança. Não é só colocar camisinha, mas ter iluminação pra ver se a camisinha estourou, água corrente pra fazer higiene antes e depois do programa, coisas que quando eu me aproximei das minhas amigas travestis que se prostituíam, não existiam. A gente atende na rua, atrás do matinho, dentro do carro. Tem que confiar na sorte. Essa realidade existe, mas ninguém sabe falar sobre ela. A gente acha que a prostituição é terrível, mas não sabe de que forma isso se dá na prática e como é.

De repente, poder falar sobre isso era uma forma de poder espantar meus próprios medos e encarar a minha putafobia. Eu fui criada em uma sociedade putafóbica, que tem horror à prostituição, de repente quero estar lá e reivindicar um novo status pra essa profissão. Quero poder lutar por um futuro onde exercer sexo e cobrar por ele não seja algo estigmatizável. Eu não entendo como é possível fazer uma roda de conversa sobre sexualidade, hoje, sem chamar prostitutas. É para nós que vão dizer todos os desejos abjetos, que sempre ficam embaixo do tapete. Psicólogo muitas vezes não tem ideia de até onde vai a coisa. Eles chegam para nós e vão falar de todo tipo de coisa que está pairando no inconsciente e não se pode falar com as pessoas que você ama, com quem você vive, que você respeita. Para quem você pode falar sobre isso? Para prostitutas.

Sul21: Hoje tu és vista como uma das principais ativistas no Brasil pela descriminalização e regulamentação da profissão. Como estamos em termos de legislação?



Amara: A gente fica naquele impasse. O Congresso que a gente tem não vai permitir que as condições de trabalho de prostitutas sejam aprovadas, mas a gente precisa aproveitar os projetos pela visibilidade. São pautas que envolvem a desestigmatização, condições de trabalho mais seguras, melhor remuneração e estão em dois projetos. Um quer criminalizar o cliente, como forma de proteger as prostitutas, é do deputado João Campos (PL 377/2011), o mesmo da “cura gay”. É interessante, o cara é da bancada evangélica e quando é que bancada evangélica vai citar feminismo como ponto de apoio? Para tornar a profissão ainda mais inviável. O outro é o projeto do Jean Wyllys (PL de 2012, batizado em homenagem à Gabriela Leite), que visa descriminalizar as casas de prostituição e regulamentar a profissão. Muito debate sobre a prostituição é feito em cima de caricaturas e espantalhos. Pegam, por exemplo, a figura do cafetão e falam que isso é legalizar a cafetinagem. Ninguém quer debater o que está sendo colocado aí. Qualquer coisa que aconteça dentro de uma casa de prostituição vai ser chamado de cafetinagem? Se você está vendendo serviço em uma espaço e uma estrutura que não é sua, você está fazendo uso da água corrente, da energia, da limpeza, do IPTU, como qualquer outro negócio, quando o cliente paga, ele está pagando por toda essa estrutura que você está se valendo para poder fazer sexo de forma segura.



‘Tem sempre curiosos passando, tirando foto, brincando com você, zombando da sua cara, jogando coisas em você. As travestis vivem muito isso’ | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21: E o texto do PL Gabriela Leite deixa brechas para que isso seja interpretado como cafetinagem?



Amara: Sim, porque é colocado como cafetinagem qualquer tipo de intermediação em que alguém coloque um espaço mais seguro para você trabalhar. Isso não é cafetinagem. Isso é o capitalismo funcionando. Que prostituta tem condições de ter um local próprio? E se você não tem local próprio vai trabalhar onde? Na rua. A gente sabe o quanto a rua é um espaço de vulnerabilidade e violência. Trabalhar dentro de casa coloca você em outro escalão. Tem sempre curiosos passando, tirando foto, brincando com você, zombando da sua cara, jogando coisas em você. As travestis vivem muito isso.

Sul21: Tua família te acolheu como travesti, mas como foi quando tu passou a trabalhar como prostituta?



Amara: Minha mãe chorou muito. A princípio, eu tinha o blog, ela veio me perguntar que história era essa. Eu inventei que era ficção, que minhas amigas me contavam as histórias e eu tentava representá-las. Até que eu apareci no primeiro documentário como prostituta. Aí ela soube que era mentira. Mas a gente nunca conversou muito sobre isso. A gente voltou a falar sobre isso quando eu estava às vésperas de publicar meu livro. É o momento em que ela começa a se dar conta que existia um propósito político junto à questão da prostituição. Não era simplesmente vagabundagem. Parece que as pessoas prestam atenção ao que eu digo, mas não tanto quando as minhas amigas dizem. Meu próximo livro, que eu já estou juntando material, é uma antologia de relatos delas, elas vão ser as autoras e eu vou ser uma organizadora. Como eu tenho mais intimidade com a língua escrita, fico com esse trabalho de transcrever esses depoimentos que são muito potentes na oralidade. Elas têm uma potência na hora de contar histórias, que eu não chego aos pés!

Sul21: Tu és feminista. Dentro do feminismo, prostituição não é um assunto fácil. Como tu vive entre os dois temas?

Amara: Os feminismos (que tem vários) gostam de falar de prostitutas como vítimas, não como figuras que tenham possibilidade de pensar sua própria condição. Pra esse feminismo, é inaceitável que a gente consiga voz para defender, não só a nossa profissão, mas o nosso direito de lutar por melhores condições de trabalho. Dinheiro nas mãos de mulheres muda o mundo. A gente vive em uma sociedade que dinheiro determina quem tem voz. A gente precisa equilibrar a distribuição de renda – e a prostituição vai ser um desses lugares, tem que ser, porque é um dos lugares de concentração massiva de mulheres. Tem muita travesti que banca a família, que foi expulsa de casa, mas que banca a família inteira como forma de tentar resgatar esse carinho. Vai para a Europa, trabalha em condições humilhantes, sub-humanas, junta um dinheiro em euro e compra uma casa para a família. Isso acontece muito. Tem muita mulher que se liberta de relação abusiva, violência doméstica e vai pra prostituição porque lá ela tem o próprio dinheiro e não precisa prestar contas pra ninguém. É uma profissão que não vai exigir experiência anterior, diplomas, cursos profissionalizantes.

A gente só precisa de uma sociedade disposta a ouvir o que gente tem a falar. O feminismo podia ser um desses espaços. Quando o feminismo chega e fala que prostituição não é trabalho, está dizendo que prostitutas não podem se organizar junto com a classe trabalhadora. A gente vende um serviço em troca de dinheiro, deveria poder estar lá. Mas não. Prostituição não significa que vale tudo, que não tem limites. O machismo da nossa cultura é que faz que o cliente não entenda quais são os limites ali. A pobreza muitas vezes faz com que a mulher não consiga impor os limites que ela gostaria de impor nesse trabalho. Se o cara chega e diz que dá R$ 10 a mais para você transar sem camisinha, isso não é a prostituição que faz, é a pobreza. Minhas amigas que trabalham a R$ 300 por hora jamais topariam isso. Ou seja, se a gente melhora as condições de trabalho, a gente faz com que as prostitutas tenham melhores condições de impedir esse tipo de abuso e violência baseado em dinheiro.

‘Quando o feminismo chega e fala que prostituição não é trabalho, está dizendo que prostitutas não podem se organizar junto com a classe trabalhadora’ |Foto: Guilherme Santos/Sul21



Sul21: Algumas matérias sobre o lançamento do teu livro colocavam “travesti, doutoranda, prostituta”. Te incomoda ser vista nestes rótulos? 



Amara: O objetivo da militância devia ser, justamente, para que aos poucos a gente fosse mostrando a importância dessas falas que estão para além dos holofotes. Por eu ser branca prestam muita atenção ao que eu falo, por eu ser de classe média, por eu ter estudado. Eu consigo pensar em cinco pessoas trans que têm título de doutora. Em agosto, eu vou ter o meu, vou ser a sexta ou sétima no país. A gente consegue pensar em outro grupo populacional com apenas sete pessoas com doutorado? Talvez população indígena. Quando colocam assim [nestes rótulos] estão querendo dizer que essas palavras são conflitantes. Selecionar essas palavras quer dizer que a sociedade vê como paradoxal essa mistura de coisas que eu sou. Não faz sentido, parece que é um acúmulo de paradoxos. O que é muito revelador da sociedade como ela é.


Fonte : Revista Sul 21

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