terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Carnaval: com que roupa?

          Sou do tempo em que no Carnaval nossas mães  soltavam a criatividade e faziam para cada um de nós a mais linda e diferente fantasia: “de rei ou de pirata ou jardineira”... diz a canção do poeta Vinicius de Moraes.  E  de camponesa russa, de bailarina, de ursinho etc, etc.  Quem já não vestiu cada uma dessas fantasias e foi para o baile sentindo-se rainha ou pelo menos princesa, com todos os olhares postos na sua pessoa?

 Por Maria Clara Bingemer

         Havia também os grupos.  E eu participei de vários.  Uma vez éramos 26 palhaços, rapazes e mocinhas, todos de cara pintada, bata de seda, meias pretas.  Em outra, 17 tiroleses.  Eu fui de saia, a única.  E a mancha verde se confundia com os confetes e serpentinas.  Naquele tempo, a maior preocupação das mães era um de nós engolir confete e ter de parar no hospital. Ou  escorregar no chão cheio de serpentinas molhadas e quebrar uma perna.

         Sim, senhoras e senhores, a gente vai ficando velha.  Lança-perfume era só uma deliciosa sensação de geladinho na perna, nas costas, na mão.  E disputar quase a tapa a linda garrafa dourada para brincar de casinha no dia seguinte.  Em nossa inocência jamais soubemos o que Rita Lee sabia. E que os garotos mais velhos que iam ao baile noturno dos clubes também sabiam.

         Para nós, pequenas, era brincar em roda, fazer cordão, cantar e suar até se acabar. E quando a adolescência começava a espreitar na porta, sentir o coração bater e o rosto corar, sem precisar de maquiagem.  Será que o namorado ou “paquerado” viria ao baile?  Será que iria dançar conosco? Coisas que enchiam a imaginação, o afeto, o coração.         Hoje, fantasia, quando é anunciada nos desfiles e concursos, a vontade é perguntar: onde está?  Porque quando não se resume a uma lantejoula estrategicamente colocada na parte inferior do tronco, chega a, no máximo, algumas pluminhas que balançam ao som da música e deixam adivinhar tudo que, aliás, ninguém estava tentando esconder. A nudez é a fantasia na maioria das vezes.  Pois, para isso aquele corpo foi submetido à mais rigorosa “malhação”, ao longo de todo o ano, a fim de poder ser exibido sem cuidado nem pudor, mas, ao contrário, orgulhosamente, aos olhares todos.

          Não cabe aqui ser moralista.  Fica até meio ridículo.  Cabe, porém, tentar refletir.  A realidade está aí para isso mesmo: ser ruminada, digerida, refletida, mastigada. Reflitamos, então.  Não estaremos indo na contramão da civilização que levamos milênios para construir e edificar?  Pois, na raiz da mesma está uma combinação dos dois elementos: a nudez e a veste.

         A primeira era apanágio dos gregos.  Na nudez estava o apanágio da estética.  E por isso as gravuras da época cuidaram bem que ficasse material para que os artistas renascentistas imortalizassem a beleza nua das deusas do Olimpo, como Vênus e Afrodite, que deixavam ver o esplendor de seus corpos perfeitos para sempre escavados no alvíssimo mármore.  Até hoje peregrinamos pelos museus europeus extasiando-nos diante dessas maravilhas.

         Mas não só de Atenas vive a nossa cultura.  Não podemos nos esquecer de Jerusalém, longe de nós.  E nesta cultura, a veste era a coisa mais importante. Era a “carteira de identidade” da pessoa, pois revelava a que meio social pertencia.  E era igualmente sinal de respeito.  Apresentar-se em algum lugar, sobretudo em um ritual ou uma festa, com a veste inadequada era uma falta de respeito passível de ser punida com a expulsão ou a rejeição mais radical.

         Foi nesse terreno plural e rico que aterrissou a mensagem cristã.  E foi tão natural como o desabrochar de uma flor identificar a nova vida em Cristo, que a comunidade proclamava com entusiasmo e alegria com uma nova veste que devia ser revestida e nunca retirada, a fim de fazer parte da personalidade da pessoa.  Assim é que o Apóstolo diz uma e outra vez: “Pois todos vós que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo” (Gal 3,27).  Ou ainda “... e vos revestistes do novo, que se vai restaurando constantemente à imagem daquele que o criou, até atingir o perfeito conhecimento” (Col 3,10).

         Assim, no próximo Carnaval, vamos brincar de ir vestidos.  Não só vai ser coisa nova, que vai chamar a atenção.  Mas pode ser, inclusive, testemunho de que estamos cheios de alegria, justamente porque fomos revestidos d’Aquele que é a fonte da vida e da alegria.  Um bom e sadio Carnaval para todos e todas!

Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, é autora de 'A argila e o espírito - Ensaios sobre  ética, mística e poética' (Ed. Garamond), entre outros livros

Fonte: Jornal do Brasil

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