sexta-feira, 19 de junho de 2015

Laudato si: Francisco, o novo teólogo da Terra

Texto critica o fracasso das negociações internacionais, a privatização da água, e defende ajuda aos mais pobres.
Em vez de falar aos céus com uma encíclica sobre Deus vociferando contra os pecados contra a fé e a moral, Francisco desceu até os sete infernos dos detentores do poder que, com sua ganância em querer dominar a Terra segundo seus cálculos capitalistas, deixaram para as novas gerações um planeta “de escombros, desertos e sujeira”.

Por Juan Arias

A primeira encíclica de Francisco, Laudato Si (Louvado Seja), dedicada à “dívida ecológica” contraída com nosso planeta, confirmou, se é que era necessário, que a Igreja tem hoje em sua liderança um Papa que foge de todos os esquemas do passado. Nos encontramos, de fato, diante do mais diferente bispo de Roma desde os tempos do apóstolo Pedro.

Sua primeira encíclica coloca do mesmo lado a fé e a ciência, Deus e a Terra e cria um novo pecado, o ecológico, poderá fazer estremecer muitos católicos tradicionais.

Em vez de falar aos céus com uma encíclica sobre Deus vociferando contra os pecados contra a fé e a moral, Francisco desceu até os sete infernos dos detentores do poder que, com sua ganância em querer dominar a Terra segundo seus cálculos capitalistas, deixaram para as novas gerações um planeta “de escombros, desertos e sujeira”.

Francisco, ao melhor estilo dos teólogos da libertação (condenados ao ostracismo por seus antecessores por serem considerados teólogos mais do humano do que do divino) se coloca ele mesmo como a versão mais moderna de “teólogo da ecologia”, na expressão criado pelo teólogo brasileiro Leonardo Boff.

A nova encíclica quebra paradigmas na Igreja que um dia condenou Galileu e que viveu um longo divórcio de séculos com a ciência e os não crentes. Nela se dá voz e credibilidade aos cientistas modernos mais sérios, não importa se religiosos ou não, empenhados em demonstrar que somos nós, com nossa cobiça e descuido, os responsáveis pelas graves mudanças que já ocorrem no planeta.

Lendo com atenção a nova encíclica fica claro que o Papa, que apostou desde o primeiro momento de seu pontificado pela periferia pobre e saqueada da Terra, pela escória humana, com clara e valente visão evangélica, sabe o que está em jogo.

Sabe que a Igreja joga seu presente e seu futuro, sua credibilidade e a própria fidelidade a sua mensagem original, não nas velhas teologias e direitos canônicos, mas na defesa do que é mais nosso como é a Terra. Uma riqueza que é social, que não deve ter donos definitivos, mas que pertence a todos, especialmente aos que mais sofrem as consequências de sua exploração pelos que acreditam ser deuses intocáveis do poder.

Uma encíclica que aborda um tema fundamental que afeta a todos, crentes, agnósticos e ateus, ricos e pobres, por seu interesse universal e os perigos que espreitam a humanidade inteira, e é por sua vez a mais ecumênica de todas as até agora proclamadas por um pontífice.

Em um mundo órfão de líderes mundiais capazes de imporem-se por sua força moral e de enfrentarem os tiranos como fez Jesus com Herodes, a arriscada decisão do papa Francisco de dedicar sua primeira encíclica não ao céu, mas à Terra, condenando os responsáveis pelo novo holocausto ecológico, o consagra como uma grande líder mundial não somente espiritual, mas também social e até mesmo político.



Papa Francisco abraça a teoria científica sobre o aquecimento global

Em sua primeira encíclica, o papa Francisco fala de anidrido carbônico, de óxidos de nitrogênio, de combustíveis fósseis contra energias renováveis, de fertilizantes e detergentes que poluem os rios e mares, de corredores ecológicos... É, definitivamente, uma encíclica (Laudato Si) carregada de argumentos científicos em que o responsável máximo da Igreja católica abraça as evidências do vínculo entre o aquecimento global e os humanos.

"Há um consenso científico muito consistente", diz o Pontífice, "e indica que nos encontramos diante de um preocupante aquecimento do sistema climático". "É verdade que há outros fatores (como a atividade vulcânica, as variações da órbita e do eixo da Terra ou o ciclo solar), mas numerosos estudos científicos indicam que a maior parte do aquecimento global das últimas décadas se deve à grande concentração de gases de efeito estufa (anidrido carbônico, metano, óxidos de nitrogênio e outros) emitidos sobretudo em decorrência da atividade humana”, afirma Francisco, que assim isola os negacionistas da mudança climática. O papa denuncia que “há interesses particulares em demasia, e o interesse econômico acaba prevalecendo sobre o bem comum muito facilmente, manipulando as informações para não terem seus projetos prejudicados”.

O último relatório de avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), do qual participam mais de 800 cientistas, concluiu que “as emissões de gases de efeito estufa e os estímulos antropogênicos foram a causa dominante do aquecimento observado desde meados do século XX". E mostrou que os efeitos dessa mudança já são observados em todo o planeta. “Ao que tudo indica, surgem sintomas de um ponto de ruptura”, disse agora o Papa, "causados pela grande velocidade das mudanças e da degradação do meio ambiente.” Esses sintomas se “manifestam tanto em catástrofes naturais regionais como em crises sociais, inclusive financeiras”.

José Manuel Moreno, catedrático de Ecologia e membro do IPCC, crê que a encíclica contém “uma mensagem muito importante advertindo que o homem está transformando o planeta e que existem evidências científicas disso”.

A encíclica identifica na raiz do problema do aquecimento ser “potencializado especialmente pelo padrão de desenvolvimento baseado no uso intensivo de combustíveis fósseis”. O Papa indica o caminho a seguir: "a tecnologia baseada em combustíveis fósseis muito poluidores —principalmente o carbono, mas também o petróleo e, em menor medida, o gás— precisa ser substituída progressivamente e sem demora”.

O Pontífice dá um passo além, ao vincular a mudança climática com as desigualdades no planeta. “O aquecimento, originado pelo enorme consumo de alguns países ricos, tem repercussões nos lugares mais pobres da Terra, especialmente na África, onde o aumento da temperatura, aliado à seca, causa estragos no rendimento dos cultivos.” José Manuel Moreno avalia o vínculo que o Papa estabelece entre os problemas ambientais e a pobreza. Em sua opinião, seria necessário que algumas organizações, a exemplo da Igreja, se pronunciassem sobre os efeitos nos países menos desenvolvidos.

Yolanda Kakabadse, presidenta do Fundo Mundial pela Natureza (WWF), aplaudiu nesta quinta-feira a mensagem do Papa. “A encíclica inclui uma perspectiva moral muito necessária para o debate sobre o clima”. O Greenpeace, por sua vez, considerou que as palavras do Papa devem “tirar os chefes de governo de sua complacência” e “estimulá-los a aprovar leis estritas em seus próprios países para proteger o clima e entrar em acordo em torno de um protocolo climático poderoso em Paris”.

A encíclica é publicada num momento em que o debate sobre o aquecimento está muito presente, já que Paris receberá no fim do ano a cúpula internacional na qual se deverá aprovar o novo protocolo de redução de emissões de gases de efeito estufa, que será aplicado a partir de 2020. "As cúpulas mundiais sobre o ambiente dos últimos anos não corresponderam às expectativas porque, por falta de decisão política, não chegaram a acordos ambientais globais realmente significativos e eficazes”, critica o Papa na encíclica.

Francisco vai ao encontro de um sentimento que parece majoritário. Uma pesquisa recente com 10.000 pessoas em 75 países, o World Wide Views Climate and Energy, mostrou que 70,8% dos entrevistados acham que as negociações sobre o clima, que a ONU promove desde 1992, não fizeram o suficiente para lutar contra o aquecimento global.

Diante do desafio de tentar deter esse processo, a encíclica afirma que há “responsabilidades diferenciadas” frente à mudança climática. “É necessário que os países desenvolvidos contribuam para saldar essa dívida (ecológica) limitando de maneira relevante o consumo de energia não renovável e aportando recursos aos países mais necessitados para apoiar políticas e programas de desenvolvimento sustentável”. Entra-se assim num dos debates que estão concentrando as atenções nos meses precedentes à cúpula de Paris: a petição que os países em desenvolvimento estão fazendo para que as economias mais ricas os ajudem economicamente para lutar contra a mudança climática.

Biodiversidade e privatização da água

A encíclica do Papa não só aborda as causas e consequências da mudança climática. Também entra em outros problemas e os especifica.
Água. Francisco adverte para a perda de qualidade das águas, para a contaminação dos aquíferos e para os problemas de acesso a esse recurso na África. Mas vai além. “Enquanto a qualidade da água disponível se deteriora constantemente, em alguns casos avança a tendência a privatizar esse recurso escasso, convertido em mercadoria regulada pelas leis do mercado”. Em sua opinião, “o acesso à agua potável e segura é um direito humano básico, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas, e portanto é condição para o exercício dos demais direitos humanos”.
Biodiversidade. "A perda de florestas e bosques implica ao mesmo tempo perda de espécies que poderiam significar no futuro recursos sumamente importantes não só para a alimentação, mas também para a cura de doenças e outros múltiplos fins”. O Papa fala do “alerta” dado pela extinção de um mamífero ou de uma ave, por sua maior visibilidade. Mas acrescenta: "para o bom funcionamento dos ecossistemas também são necessários os fungos, as algas, os invertebrados, os insetos, os répteis e a inumerável variedade de micro-organismos”. Também critica o desmate dos “pulmões do planeta”, como a Amazônia ou a bacia fluvial do Congo.
Oceanos. "O problema crescente das águas contaminadas e da proteção das áreas marinhas, acima das fronteiras nacionais, continua representando um desafio importante”, afirma o Papa. “Temos que entrar em acordo para criar modelos de governança para o conjunto do que se costuma chamar de patrimônios mundiais”, propõe. Ele também alerta na encíclica para os problemas das barreiras de coral, que “hoje já estão ou estéreis ou em estado contínuo de declínio”.


Fonte: El Pais

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