sábado, 20 de junho de 2015

A campanha “Ni Una Menos” e por que não temos uma marcha contra o feminicídio no Brasil?

Acredito que no Brasil não há mobilização popular para uma marcha como a “Ni una menos”. Não só por estarmos mergulhados num profundo momento conservador e pelas pessoas ainda não reconhecerem o problema da violência contra a mulher como responsabilidade de toda sociedade, mas também porque vivemos um período de grande despolitização, exclusão social e banalização da violência, para os quais só há ódio gratuito e soluções encomendadas como receita de bolo.


Dia 03 de junho de 2015, centenas de pessoas saíram as ruas da capital Buenos Aires para protestar contra o feminicídio ao grito de “Ni una menos”. A marcha também ocorreu em 110 cidades da Argentina além de Chile, Uruguai e México. “É pela vida, chega de mortes”, “o machismo mata”,“nem a roupa nem os costumes podem justificar o abuso”; foram algumas das frases escritas em cartazes.
As imagens são impactantes. Milhares de pessoas protestando e pedindo a aplicação da lei de proteção integral contra a violência as mulheres, aprovada em 2009 mas dependente de regulamentação efetiva. A frase “Ni una menos” viralizou nas redes sociais e levou multidões às ruas com o apoio de figuras públicas como a presidenta Cristina Kirchner, o jogador Lionel Messi, a ativista Estela de Carlotto, a cartunista Maitena, a atriz Érica Rivas, o Papa Francisco, entre outras. Ao ver tudo isso, me perguntei: é possível que uma marcha parecida aconteça no Brasil?

Como nasceu a marcha contra os feminicídios
O que iniciou o movimento “Ni una menos” foi a morte da adolescente Chiara Páez na cidade de Rufino, província de Santa Fé na Argentina. Chiara (14 anos) estava grávida de quatro meses do namorado Manuel Mansilla (16 anos). Três dias após seu desaparecimento, seu corpo foi encontrado pela polícia no quintal da casa de Manuel. Chiara foi enterrada viva e os pais do adolescente são suspeitos de terem ajudado. Havia traços de uma substância abortiva no corpo da jovem, portanto as investigações trabalham com a hipótese de que Chiara foi obrigada a tomar a substância, passou mal e seu corpo foi ocultado. A população argentina ficou chocada com esse e outros casos recentes de violência contra mulheres. No país, uma mulher é morta a cada 35 horas.
Após a divulgação do caso de Chiara Páez, no dia 12 de maio um grupo de jornalistas iniciou via Twitter uma campanha para pedir a implementação da Lei 26.485 de proteção integral a mulher.
“Ni Una Menos” é uma frase atribuída a poeta e ativista mexicana Susana Chávez Castillo, que lutava contra as mortes de mulheres em seu país. Foi assassinada em 2011 por denunciar crimes contra as mulheres. A frase é deriva de um poema apresentado em 1995 onde usou a expressão: “Ni una muerta más”; em protesto pelos crimes que aconteciam em Ciudad Juarez, considerada a cidade mais violenta do México.
Ao que parece, a Argentina chegou num momento extremo. O caso de Chiara é visto como a gota d´água. E aqui no Brasil? Em maio, tivemos o caso do estupro coletivo de quatro adolescentes no Piauí. Elas foram agredidas, violentadas e arremessadas do alto de um penhasco. Uma delas, Danielly Rodrigues (17 anos) faleceu no último domingo. O que falta para que a população brasileira saia as ruas contra o feminicídio no Brasil?
Marcha “Ni Una Menos” em Buenos Aires, Argentina. Junho/2015. Foto de Natacha Pisarenko / AP.


O movimento feminista brasileiro, a despolitização e a banalização da violência

Acredito que no Brasil não há mobilização popular para uma marcha como a “Ni una menos”. Não só por estarmos mergulhados num profundo momento conservador e pelas pessoas ainda não reconhecerem o problema da violência contra a mulher como responsabilidade de toda sociedade, mas também porque vivemos um período de grande despolitização, exclusão social e banalização da violência, para os quais só há ódio gratuito e soluções encomendadas como receita de bolo. Pensando sobre o atual momento do feminismo no Brasil, da política e da sociedade, listo motivos que acredito serem barreiras para que a questão da violência de gênero avance no debate:

1. Movimento feminista institucionalizado enfraquecido.

A primeira pergunta que me passou pela cabeça foi: quem poderia lançar a ideia de uma marcha como essa no Brasil? A verdade é que o feminismo não é tão popular, especialmente para a mídia, que até tem publicado mais matérias sobre o assunto, mas não abraça suas causas facilmente. Até quem é feminista as vezes conhece pouco sobre as organizações e movimentos de mulheres que tentam garantir políticas públicas para o enfrentamento da violência contra as mulheres.
Organizações, coletivos e redes com algum grau de institucionalidade funcionam como articuladoras do movimento feminista. No Brasil, vários grupos se institucionalizaram, especialmente nos anos 90 pós-Constituinte, para garantir uma ação mais permanente de exigir ações do Estado. Foi essa rede que conseguiu conquistas como a Lei Maria da Penha e que poderiam se referências importantes nessa mobilização. Porém, a situação não anda boa, como lembrou Priscilla Caroline no textoFeminismo em crise?: “sem recursos para manter equipe e projetos, várias organizações feministas no Brasil vem travando uma luta árdua para se manterem existindo e resistindo às inúmeras possibilidades de retrocessos nos direitos das mulheres”.
Assim como na Argentina, o movimento poderia ser iniciado por quaisquer grupos de pessoas via internet. Porém, até que ponto as pessoas no Brasil estão comprometidas em combater a violência contra a mulher? Há uma ocupação cada vez maior de grupos feministas na internet. Vejo com alegria o debate feminista sair da academia universitária e ganhar mais interlocutoras nesse espaço de comunicação e interatividade. Porém, também tenho a sensação de que falta mais empatia, reciprocidade, solidariedade e alteridade. Mais ouvir e ampliar a discussão. Na maioria dos debates na internet não se forma uma opinião, apenas se joga para a torcida.
Não estou cobrando que as feministas saiam da internet e vão protestar, as pessoas não participam da militância presencial por diversos motivos. O que quero enfatizar é que na internet não temos o mesmo diálogo, debate ou construção de ideias que poderia ser feito pessoalmente. E isso parece fazer muita falta, pois existem feministas que estão há anos no movimento e que poderiam compartilhar suas experiências com quem está chegando agora, promovendo mais conversação para discussões tão polarizadas.
As Marchas das Vadias tem como pauta principal lutar contra a violência de gênero. Porém, assim como muitos dos movimentos sociais ativos atualmente, seus núcleos de organização estão voltados para ações locais. Desde 2011, quando começaram a ser realizadas no Brasil, apenas uma vez houve uma tentativa de conversar com organizadoras de todas as Marchas das Vadias e tentar marcar uma data única. Os movimentos sociais brasileiros parecem estar num momento de integração local e não nacional.

2. Conservadorismo e despolitização.

Com o Congresso mais conservador dos últimos anos aprovando de financiamento de empresas para campanhas políticas até mais isenção de impostos para instituições religiosas, o movimento feminista luta mais para não perder conquistas do que conseguir aliados nas batalhas diárias. Vimos as jornadas de junho de 2013 levarem milhares as ruas, estariam essas pessoas dispostas a marchar contra a violência de gênero? Os movimentos anticorrupção tem feito muito barulho, mas até que ponto há propostas concretas para mudar a situação do país?
O que vemos na maioria das vezes são respostas fast food que sempre agradam o pensamento unilateral. Transformar a corrupção em crime hediondo. Reduzir a maioridade penal. Criminalizar o porte de arma branca. Para cada crime que choca a população a solução apresentada resolve o espaço vazio de indignação. De que adianta transformar corrupção em crime hediondo se os legisladores atuam para garantir os interesses das grandes empresas que os financiam? De que adianta reduzir a maioridade penal se as escolas com classes lotadas são usadas hoje como depósito de crianças e adolescentes em que professores são carcereiros? De que adianta criminalizar armas brancas se pode-se matar alguém com um saca rolha ou um saco plástico?
Vejo feministas defenderem o projeto de castração química para estupradores proposto pelo deputado federal Jair Bolsonaro como solução. De que adianta castrar quimicamente alguém se qualquer pessoa pode estuprar de inúmeras maneiras? Passamos anos repetindo que estupro não é sexo, estupro é poder, para voltarmos atrás e dizer que estupro ocorre porque o desejo sexual de um pênis é incontrolável? As soluções fast food angariam apoio facilmente, pois são apresentadas em momentos de comoção, existem para se dizer que algo está sendo feito, mas quase sempre se perdem nas limitações de quem acha que o culpado é sempre o outro, de que o inimigo está lá fora.

3. Banalização da violência e a vítima perfeita.

Quando falamos de comoção pública há o fator emocional, um elemento imprevisível. O que choca a população brasileira hoje? Infelizmente, vemos se repetir muitas vezes o estereótipo da vítima perfeita.
Por exemplo, o menino Eduardo que morreu no Complexo do Alemão nunca gerará a mesma comoção que o menino João Hélio, que morreu vítima de um assalto. Isso porque na sociedade brasileira não se espera que um menino como João Hélio vá morrer de forma brutal. Eduardo, mesmo tendo imagens explícitas de sua morte divulgadas em vídeo nas redes sociais, causou comoção mas hoje as pessoas não tem seu nome na memória como tem o de João Hélio, o garoto morto arrastado por bandidos. Isso ocorre porque Eduardo morava numa comunidade do Rio de Janeiro e na “guerra contra as drogas” a morte de uma criança pela polícia é tratada como contingência.
Ao comparar esses dois casos vemos que no Brasil as vidas tem diferentes valores. Mas, passados oito anos da morte de João Hélio, a banalização da violência é cada vez maior. Talvez, mesmo sabendo que a América Latina tem índices altíssimos de violência contra a mulher, Argentina, Chile e México ainda sejam capazes de se indignar com a violência, enquanto no Brasil nada mais parece nos chocar.
A própria Lei Maria da Penha perde força quando 15 mulheres são mortas por dia no Brasil. Até hoje não temos sua ampla implementação. As ações de prisão são divulgadas mas faltam casas-abrigo, centros de referência e delegacias especializadas. Não há instrumentos de proteção efetiva ou soluções para as mulheres que na maioria das vezes são obrigadas a abandonarem suas casas e empregos. Que outras propostas temos para pensar e garantir a proteção efetiva dessas mulheres que não se resumam ao encarceramento do agressor?
É surpreendente que na internet se divulgue tão pouco iniciativas como a campanha “Flores Para Elas”, que pretende prestar auxílio as quatro adolescentes vítimas do estupro coletivo no Piauí. Por mais que o crime seja de uma brutalidade nauseante e que muitas de nós não consigam nem mesmo ler sobre o assunto, o espaço da internet é mais profícuo em discutir sobre personalidades e suas vidas pessoais. A fulanização do debate nas redes sociais parece muitas vezes nos fazer esquecer das mulheres anônimas, das mulheres de nossos bairros, mas também é consequência direta da maneira como enxergamos a violência banalizada e das nossas limitações em avançar além do punitivismo.

4. Violência contra a mulher é culpa apenas do agressor.

Por mais que tenhamos avançado em estabelecer medidas para combater a violência de gênero nos últimos anos como: a Lei Maria da Penha, o Disque 180 e nesse ano a abertura das unidades daCasa da Mulher Brasileira; percebo que as pessoas ainda não reconhecem essa violência como um problema estrutural presente e praticado por toda sociedade brasileira. As soluções apresentadas na maioria das vezes focam apenas na punição do agressor e não observam as imensas complexidades que envolvem os relacionamentos interpessoais. De outro lado, o conservadorismo caminha barrando iniciativas educativas para crianças e jovens discutirem a questão de gênero nas escolas.
As denuncias de violência feitas por mulheres ainda são desacreditadas e não há receptividade nem acolhimento em instituições públicas como delegacias de polícia e órgãos de saúde. Não há incentivo nem divulgação massiva de propostas de conscientização e reeducação de agressores. Não há debate sobre que outras medidas podemos tomar, além da criação de leis, para resolver o problema. Não há responsabilização da sociedade por cada mulher que morre, não há debate sobre o que nós, pessoas comuns, poderíamos ter feito para evitar sua morte.
É evidente que não conseguiremos evitar todas as mortes de mulheres. Porém, ao ler sobre osquatro adolescentes acusados do estupro coletivo no Piauí, descobrimos que não estudavam, tinham envolvimento com drogas, passagens na polícia, famílias desestruturadas e nenhum amparo do Estado além do bolsa-família. Absolutamente nada justifica o crime que cometeram, mas até que ponto poderíamos ter exigido que tivessem direitos básicos garantidos pela Constituição? Reduzir a maioridade penal tem que impacto na vida de um jovem que não considera uma mulher da sua idade digna de respeito e liberdade?
E por que você não propõe uma Marcha?
É claro que eu, junto com as mulheres que coordenam esse blog, podemos lançar uma campanha e uma marcha contra o feminicídio no Brasil. Por que não o fazemos? Por que não levantamos da cadeira em frente o computador e vamos as ruas? Porque temos nossas limitações, nossas vidas, nossos compromissos e nossos privilégios. Porque não há desculpas, mas há também o sentimento de que essa marcha seria muito pequena, que teríamos que lidar dias com a violência que invade nossas redes sociais sempre que uma pauta feminista ganha destaque para ter um resultado pífio. Essa sensação de que estamos cada vez mais distantes de ver mudanças concretas na sociedade é extremamente imobilizadora e reconheço essa incapacidade de colocar em prática algo que precisaria da ajuda e mobilização de muitas pessoas.
As pessoas de Castelo do Piauí foram as ruas. Esse ano, estão previstas duas grandes marchas de mulheres: a Marcha das Margaridas (dias 11 e 12 de agosto) e a Marcha das Mulheres Negras (18 de novembro). São movimentos de mulheres que não costumam ser a voz mais amplificada do feminismo no Brasil, mas creio que há grandes chances delas mostrarem que não só as mulheres, mas especialmente cada brasileira e brasileiro precisa se envolver e se enxergar como parte importante para mudarmos a forma como tratamos a violência no país.



Fonte: Geledes

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