sexta-feira, 7 de março de 2014

A nossa responsabilidade pelo tráfico de pessoas

E você, que veste roupas feitas por tantos Josés, saberia responder onde está teu irmão?


Por Leonardo Sakamoto e Xavier Plassat*

Filho do patriarca Jacó, José é a primeira figura bíblica vítima do tráfico humano. José ainda pode ser encontrado em qualquer esquina do nosso mundo global. Seu nome é Sikandar, Miriam, Juan, Pedrito, Luizinha, Jerry. Seu exílio (ou inferno) chama-se Doha, Belo Monte, Dacca, Brás, Codó, Barcelona, General Carneiro, Guarulhos, Lampedusa.

José está vivo. Escondido, invisível, traficado feito mercadoria, acorrentado pelo medo, instrumentalizado para o lucro fácil, preso nos tentáculos de um velho-novo crime. Tráfico e escravidão permaneceram vivos, transformando-se e ganhando novas características que os diferenciam do passado. A finalidade é a mesma: alguém lucra, alguém é explorado.


Intermediários viabilizam o sistema. Cúmplices garantem sua sustentabilidade. As modalidades são variadas: exploração sexual, trabalho análogo ao de escravo, servidão, remoção ilegal de órgãos, casamento forçado, entre outras.

A escravidão tem na atualidade um peso nunca visto na história da humanidade. Não por acaso: aprendemos a transformar tudo em mercadoria e nos conectamos globalmente, transformando o mundo em um único e grande supermercado. A Organização Internacional do Trabalho estima em 21 milhões o número de vítimas, tanto homens como mulheres, um em cada quatro com menos de 18 anos.

No Brasil, para onde foram traficados 5 milhões de africanos, com o amparo da lei e a bênção da religião, a forma mais visível deste tráfico ainda é o trabalho escravo, presente sob as modalidades do trabalho forçado, da servidão por dívida, da jornada exaustiva e do trabalho em condições degradantes. As vítimas são aliciadas em bolsões de pobreza, dentro e fora do país. Nos últimos 20 anos foram libertadas 47 mil delas, em dois mil estabelecimentos de mais de 600 municípios. No campo, destaque para a pecuária, as lavouras do agronegócio e carvoarias. Nas cidades, a construção civil e oficinas de confecção. Para a exploração sexual, as informações quantitativas são precárias. O Brasil é tido como um dos grandes exportadores de mulheres a serem exploradas sexualmente, particularmente na Europa.


No Brasil, a mobilização contra a escravidão contemporânea iniciou-se nos anos 1970, destacando-se a figura do bispo Pedro Casaldáliga e a atuação incansável da Comissão Pastoral da Terra. Acolheram fugitivos e tornaram públicas denúncias de trabalhadores escravizados em plena floresta amazônica. A pressão em fóruns nacionais e internacionais acabou obrigando o Estado a assumir, em 1995, a causa da erradicação. A partir da ratificação do Protocolo de Palermo, tratado internacional sobre o tráfico de pessoas, em 2004, o Brasil adotou uma política nacional de enfrentamento a esse crime.

A invisibilidade das práticas do tráfico e a cegueira de muitos são algumas das dificuldades para avançar no combate a esse crime. Há quem teime em negar sua realidade, a exemplo de ruralistas em sua busca para esvaziar o conceito legal e a política nacional de combate ao trabalho escravo.

Face à idolatria que sacrifica a dignidade e a liberdade no altar do lucro, ressoa a pergunta feita a Caim: “Onde está teu irmão?” Sim, o escândalo ainda perdura, com o José bíblico renascido sob outros nomes. De nós depende que ele possa sair da invisibilidade, levantar-se, conquistar seus direitos. Oportunamente este é o desafio proposto à sociedade pela Campanha da Fraternidade lançada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. "Tráfico humano e Fraternidade" é seu lema.


E, você, que veste as roupas produzidas por tantos Josés, come o fruto de seu trabalho e mora em residências erguidas por suas mãos, saberia responder onde, neste momento, está teu irmão?

Fonte: Dom Total

Gazeta do Povo, 05-03-2014.

* Leonardo Sakamoto é jornalista, cientista político e coordenador da ONG Repórter Brasil. Xavier Plassat é frei dominicano e coordenador da campanha pela erradicação do trabalho escravo da Comissão Pastoral da Terra.

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