sexta-feira, 15 de novembro de 2013

As mulheres na Igreja, de Martini ao Papa Francisco

“Por que identificar a imagem de Deus com aquela que nos foi transmitida por uma cultura machista”? Que anúncio kerigmático para ela, não encerrado numa visão moralista? 


Hoje, mais do que nunca, as reflexões de Martini estão à nossa disposição, com a força de uma imutada tensão criativa, se quisermos levar a sério as palavras do Papa Francisco quando de retorno do Brasil, e recentemente reformuladas na entrevista a Civiltà Cattolica sobre as mulheres.
 A repetição do argumento assinala uma atenção que deixa de fato esperar", escreve Nicoletta Dentico em artigo publicado na revista “Rocca” n. 20, 15-10-2013. A tradução é de Benno Dischinger.

Eis o artigo. 

Das mulheres emergem solicitações sofridas e sinceras. Falava, assim, em 1981, o Cardeal Martini à convenção “A mulher na Igreja hoje”, procurando interpretar o mal-estar de um mundo feminino plural diante da iconografia da “mulher cristã”, na qual as mulheres tem dificuldade de serem respeitadas e reconhecidas. E exibia uma série de questões decisivas para o futuro da Igreja:


“Por que identificar a imagem de Deus com aquela que nos foi transmitida por uma cultura machista”? Que anúncio kerigmático para ela, não encerrado numa visão moralista? Que indicações para um caminho espiritual e de santidade que estimulem a mulher adequadamente? Que indicações para uma renovada práxis pastoral, para um caminho vocacional para o matrimônio, para a consagração religiosa, a família, em consideração da nova consciência de si que a mulher adquiriu?

Que indicações para uma linguagem global, também litúrgica, que não faça sentir-se excluída, em sua elaboração, a mulher? Por que tão poucas e inadequadas respostas à valorização do próprio corpo, do amor físico, dos problemas da maternidade responsável? Por que a maior presença da mulher na Igreja não incidiu em suas estruturas: E na práxis pastoral por que atribuir à mulher somente aquelas tarefas que o esquema ideológico e cultural da sociedade lhe atribuía, e por que não explicitar os seus carismas como “obra do Espírito Santo”?

Ler, à distância de trinta anos, o insistente catálogo das interrogações de Martini, com sua solicitação à Igreja de por-se à escuta e deixar as mulheres exprimir-se como protagonistas, de desenvolver uma urgente e atenta releitura dos ministérios, dos carismas e dos serviços, ilumina e desencoraja ao mesmo tempo. Nós mulheres temos sido consideradas por longo tempo as fiadoras da doutrina, aquelas que durante o processo de secularização asseguraram o enraizamento da tradição cristã na infância, nas famílias, na sociedade. Frequentemente o temos feito com o limite de dever encarnar algo transmitido, um limite que é em ampla medida a debitar a uma ordem eclesial que voluntariamente manteve as mulheres fora. Percorremos linguagens na maioria dos casos já codificadas, e ainda não nos sentimos de todo legitimadas a fazer agir, em nosso presente e no de nossas igrejas, aquela força que transforma e arrasta, escandaliza e provoca, tornando possíveis novos horizontes.

Hoje, mais do que nunca, as reflexões de Martini estão à nossa disposição, com a força de uma imutada tensão criativa, se quisermos levar a sério as palavras do Papa Francisco quando de retorno do Brasil, e recentemente reformuladas na entrevista a Civiltà Cattolica sobre as mulheres. A repetição do argumento assinala uma atenção que deixa de fato esperar.

A explosiva parábola do pontificado do Papa Francisco – os audazes apelos à paz contra todo vulgar interesse guerreiro, a exigente pastoral missionária que evita a “imensidão de doutrinas a impor com insistência”, o desejo de uma justiça reconhecível na redistribuição das riquezas (sugestiva a imagem da “teologia do descarte” cunhada por Raniero La Valle), a postura de proximidade física aos últimos, estejam eles nos cárceres, em Lampedusa ou entre os desempregados da Sardenha, a partir das mesmas formas de uma nova pobreza da Igreja – arrasta consigo uma onda de entusiasmo incrédulo e contagioso. A inusitada simbologia dos gestos e as mensagens do centro ultra-milenar de Roma provêm realmente “da outra parte do mundo”, como uma brisa que refresca o ar e abre indispensáveis horizontes.

Num mundo desfigurado pela desigualdade e pela idolatria do lucro, numa Igreja sobrecarregada de contradições e décadas de clericalismo, só Deus sabe quão benéfica seja esta rajada de vento novo: uma teologia sobre as mulheres e para as mulheres.

Na esteira da espera de novidades futuras, a questão feminina espera em sua andança o bispo de Roma como um desfiladeiro iniludível, sabe-o muito bem Francisco. “A Igreja não pode ser ela mesma sem a mulher e sua função”, disse ele a Civiltà Cattolica, quase a querer indicar uma das razões da crise atual. Também sabe que se trata de um terreno acidentado: a valorização do significado evangélico da diferença de gênero na vida eclesial não é fácil de ser cumprida. O machismo do ambiente obscurece a visibilidade e a importância da presença das mulheres numa linha de proporcional continuidade com o passado do Novo Testamento (“como testemunhas da Ressurreição são recordados somente homens, os Apóstolos, mas não as mulheres”). Entrementes, as mulheres tem transformado radicalmente a sociedade com sua subjetividade, resgatando-se de uma atávica escravidão ligada à maternidade e à família.

“Com o feminismo, escreve Luísa Muraro, “veio à luz um desnível entre o sentido de si e a identidade humana representada pelo homem, desnível que não pode mais ser aceito porque a política das mulheres, em qualquer parte do mundo, obteve o lugar da liberdade feminina”. Este desnível germinou longamente também nas igrejas – a “Frauenfrage” [questão das mulheres], as novas questões da fé que vinham das mulheres, começou a tomar forma entre os fins do século XIX e inícios do século XX – e por fim ficou a descoberto.

Graças ao Concílio Vaticano II, a práxis teológica ainda ferreamente aficionada aos estereótipos, deve hoje fazer as contas com a presença, no palco, de uma vivaz comunidade de estudiosas, protagonistas de intensas e ricas reflexões endereçadas à elaboração de uma teologia sobre as mulheres e para as mulheres. Essas inspiraram um notável repensamento dos âmbitos disciplinares, contextualizando traduções, símbolos, imagens, linguagens.

A Igreja esposa e mãe

“Uma Igreja sem as mulheres é como o Colégio Apostólico sem Maria. O papel da mulher na Igreja não é somente a maternidade, a mamãe de família, mas é mais forte: é precisamente o ícone da Virgem, de Nossa Senhora [Madonna]; aquela que ajuda a Igreja a crescer! Mas, pensai que a ‘Madonna’ é mais importante que os Apóstolos! E muito mais importante! A Igreja é feminina: é Igreja, é esposa, é mãe”. Na contínua tensão entre autoridade e criatividade, entre identidade e mudança, as frases de Francisco, ao retornar da Jornada Mundial da Juventude, deixam entender uma sincera tensão para novas vias de reconhecimento da ação das mulheres, e esta é uma boa notícia, uma boa nova.

Mas, gostaria de entender de que mulheres estamos falando, a cinquenta anos do Concílio. As palavras do Papa configuram, ainda uma vez, a mulher como uma categoria antropológica em si mesma, inserida na função “natural” que lhe fixa deterministicamente papéis e identidades: os de ser custódia de uma humanidade a acudir e a salvar. A modelização da mulher sobre a figura de Maria Vigem, tão cara a Francisco (e retomada na entrevista a Civiltá Cattolica), talvez seja inevitável após décadas de “uma mariologia que não procede da Revelação, mas tem o apoio dos textos pontifícios” – para dizê-lo com o cardeal Congar. É lastimável que esta interpretação não produza sentido de identificação entre as mulheres e, menos ainda, as assegure quanto ao respeito da parte de padres e bispos do fermento teológico e pastoral da qual estes, hoje, são capazes dentre da Igreja.

Com bem outro horizonte João XXIII, na Pacem in Terris (1963) se referia à mulher como “sinal dos tempos”, presença histórica no novo cenário mundial que fazia seu ingresso na vida pública, “com uma influência, uma irradiação, um poder até agora jamais atingido”, e uma consciência sempre mais clara e operante de sua dignidade. Aquela consciência de si, embora sob constante assédio, é um dado sociológico já consolidado pela experiência de gerações, e não se pode não ter dele conta na crise do modelo antropocêntrico.

A ênfase sobre a maior importância de Maria em relação aos apóstolos – mulher que gerou Jesus, Miriam/Maria desenvolveu uma tarefa obviamente não declinável ao macho – e a declarada preeminência do gênero feminino (“A mulher, na Igreja, é mais importante do que os bispos e os padres”) sempre mais se afadigam a coexistir com a iteração do “não” categórico ao sacerdócio feminino: “uma porta fechada”. Tem razão Marinella Perroni quando faz notar que não se pode cair na armadilha de considerar e fazer considerar o sacerdócio feminino como a única questão relevante para a pesquisa teológica das mulheres. No entanto, a recusa autoritária de toda perspectiva de diálogo sobre a conferição da ordem sagrada às mulheres – a décadas de distância da comissão de estudo querida por Paulo VI – permanece um incompreensível enigma.

A ideia de nomear uma mulher cardeal – voltou-se a falar disso nos últimos dias como de uma via possível para incidir sobre a fidedignidade das mulheres na Igreja sem arranhar o espinhoso ‘diktat’ sobre o sacerdócio feminino – pode ter um valor simbólico, mas parece ser uma hipótese insuficiente se o intento último é aquele de sacudir o desinteresse e a suspeita que grande número do clero nutre perante as mulheres. A superação da exclusão das mulheres no exercício da autoridade na Igreja requer outra estrada mestra, feita de bem outras abordagens estruturais e de novas capacidades dialógicas.


Fonte: Ihu

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