terça-feira, 19 de março de 2013

Mulher morta após denunciar cafetão


Local onde Letícia Peres Mourão foi assassinada em bar no Lúcio Costa
A novela Salve Jorge, da TV Globo, trouxe à sala de estar dos brasileiros o drama de mulheres brasileiras mantidas como escravas sexuais no exterior. Na trama, a personagem principal é levada à Turquia. História baseada no mundo real, em que há inúmeras estrangeiras atraídas à Europa com promessas de trabalho e uma vida melhor, mas que acabam sendo forçadas a se prostituir para saldar dívidas impagáveis. Não raramente, o enredo acaba em tragédia, como o protagonizado pela moradora de Brasília Letícia Peres Mourão.

Após uma temporada na Espanha, ela retornou ao Brasil em 2008. Aos 31 anos, queria retomar o contato com o filho adolescente e ficar longe do país onde sofria ameaças. Em um caso raro, a mulher denunciou o cafetão à polícia. Contou ser obrigada a fazer até 40 programas sexuais por dia, sem poder sair do quarto. Conseguiu fugir, mas acabou executada com um tiro na cabeça.
Agentes brasilienses descobriram o assassino. Em seguida, a polícia espanhola desmontou uma rede de tráfico internacional de mulheres comandada por mafiosos do leste europeu. Investigação iniciada com o testemunho de Letícia. Dela vieram as peças que faltavam para policiais civis de Brasília desvendarem o seu assassinato. No entanto, um dos envolvidos continua livre, impune.
A PROSTITUIÇÃO
Letícia nasceu em Goiânia, em 5 de junho de 1977. Mas ela passou boa parte da vida no DF e na Europa. Aos 17 anos, apenas com o ensino fundamental, conheceu o homem que viria a ser o pai do seu único filho. A goiana e o mineiro de São João Del Rey, morador do DF e então com 32 anos, viram-se pela primeira vez na casa da avó dela, em Hidrolândia (GO). Um ano depois, estavam morando juntos, no Núcleo Bandeirante.
Em outubro de 1995, já com o relacionamento desgastado, Letícia descobriu estar grávida e avisou ao ex-companheiro que tentaria a vida no Rio de Janeiro. Um mês depois, o homem descobriu que ela passava dificuldades na capital carioca e decidiu buscá-la. Morando juntos novamente, viram o filho nascer em um hospital público do DF, em junho de 1996.
O rompimento definitivo do mineiro com a goiana ocorreu em 1999. Ela o deixou com o garoto e foi morar em Taguatinga Sul, onde fez amizade com uma mulher conhecida somente como Simara. Desconfiado do sumiço de Letícia e das pessoas com quem ela era vista por amigos, o ex-marido contratou um detetive particular. Logo, ele descobriu que Letícia se prostituía na Asa Norte.
Preocupado, seu ex-companheiro pediu na Justiça a posse do filho. A decisão favorável a ele saiu em 2001. A mãe se conformava com visitas esporádicas ao menino. Ainda naquele ano, morando em Boston (EUA), a mãe de Letícia telefonou desesperada ao pai do seu neto. Implorou a ele para tirar Letícia do Brasil. Contou que a filha vinha apanhando e sendo ameaçada de morte pelo namorado, morador de Sobradinho.

O pai do filho de Letícia concordou em ajudá-la. A ex-sogra enviou, então, R$ 3,1 mil dos Estados Unidos. Dinheiro suficiente para a passagem aérea para Espanha e uma pequena reserva. Ele escolheu o país por ter lá uma irmã morando. A intenção era ela ajudar Letícia a se esconder e começar uma nova vida.
A ESCRAVIDÃO
A ex-cunhada recebeu Letícia no Aeroporto Internacional de Bajaras, em Madrid, ainda em 2001. Mas, dias depois, ela partiu para Barcelona, com amigas brasileiras que também a haviam recebido no terminal aéreo de Madrid. Eram prostitutas que conhecera nas ruas de Brasília. Sem contar à família como se mantinha na Europa, a goiana telefonava poucas vezes ao filho brasiliense, a quem mandava presentes regularmente.
Ilegal na Espanha, Letícia começou a vender o corpo para sobreviver e pagar seus “vícios”, segundo relatos de amigas à polícia espanhola. Dividia um pequeno apartamento com uma garota de programa no número 48 da Avenida de Paral-lel de Barcelona. Mas viajava frequentemente, passando dias ou semanas em bordéis de diferentes pontos do país.
Ela começou a namorar um colombiano, conhecido como Germán, morador da capital catalã. Em outubro de 2005, uma colega lhe falou de um certo Antonio. Dono de vários prostíbulos em Tarragona e Barcelona, ele procurava garotas novas. Acreditando que poderia aumentar a clientela e a renda, Letícia telefonou a Antonio. Ele, porém, omitiu a carga puxada, as punições e a vigilância permanente.
Toda prostituta sob o comando de Antonio tinha de estar disponível 24 horas por dia, aceitar qualquer cliente e pagar 200 euros de garantia que só teria de volta se trabalhasse ao menos 21 dias no bordel. Teria apenas duas horas por dia para dormir. E, só quando estivesse muito cansada, poderia ir ao andar de baixo, para descansar mais cinco horas. Letícia descreveu a rotina à polícia espanhola, meses após o primeiro contato com o cafetão.
Sem saber das condições, Letícia disse ter aceito a proposta de cara e partido para Tarragona, a cerca de 90km de Barcelona. Começou a trabalhar no segundo andar do número 38-2 da Rua do Gasômetro, no centro da cidade de 135 mil habitantes. Cobrava 25 euros por 15 minutos de sexo. Ficava com 15 euros e dava os outros 10 a Antonio. No mesmo prédio, moravam e se prostituíam outras nove brasileiras, clandestinas no país.
A fachada do prédio ostentava a placa da Andando Sin Fronteras, uma ONG fictícia. Conhecida como Ana, a nigeriana Evelyn Odigie, 25 anos, punia as mulheres com multas, caso não rendessem o exigido ou quebrassem alguma regra, como a saída da casa por no máximo 45 minutos ao dia. A cada minuto além, as prostitutas pagavam 20 euros. Mesma quantia caso recusassem um cliente, dormissem ou descessem até a lanchonete.
Enquanto Ana cuidava das mulheres, um espanhol controlava a entrada e a saída dos homens dos quartos e do deslocamento das prostitutas no prédio. Vários romenos faziam o serviço de segurança. Eles instruíam as mulheres a saírem pela janela e saltarem para o quintal do primeiro andar a cada batida policial. Antonio aparecia na casa duas vezes ao dia para pegar a sua parte na quantia levantada pelas meninas.

"Soube que poderia descansar de quatro a cinco horas, e logo isso não ocorreu, trabalhando praticamente 24 horas por dia.”
Letícia Peres Mourão, em depoimento à polícia espanhola

"Convença ela (Letícia) a desistir da denúncia. Senão, tenho poder para acabar com ela. Os dois guarda-costas aqui vão se livrar dela. Sei de seu filho, que vive no Brasil.”
Cafetão ameaçando o namorado da brasileira assassinada

"Nenhuma garota pode anotar o serviço de outra, vocês têm de ser autônomas. Assim não poderão nos acusar de delitos de proxenetismo”
Mensagem datilografada em cartazes pregados nos apartamentos dos bordéis da máfia


Letícia Peres Mourão
Nascida em Goiânia, em 5 de junho de 1977
Casou no DF, em 1994
Separou em 1995, grávida
Começou a se prostituir na Asa Norte em 1999
Perdeu a guarda do filho em 2001
Ainda em 2001, mudou-se para a Espanha, onde também se prostituía
Em outubro de 2005, foi trabalhar em um bordel de Tarragona
Dez dias depois, fugiu da casa e denunciou maus-tratos à polícia espanhola
Ameaçada, voltou ao DF e, em 6 de março de 2009, morreu com um tiro na nuca

Perseguida até a morte Líder da quadrilha de tráfico de mulheres acionou michê em Guarapari (ES) para monitorar prostituta que fugiu de seu bordel e contratar um pistoleiro. Vítima foi localizada por meio de rede social, e seu caso desencadeou megaoperação na Espanha


Após 10 dias ininterruptos de trabalho no bordel, Letícia Peres Mourão decidiu fugir. Pediu a Antonio os 200 euros dados como garantia. Como não ficou os mínimos 21 dias no bordel, ele apenas a propôs mudar de casa. Antonio mantinha ao menos mais três prostíbulos em outras ruas vizinhas de Tarragona, na Espanha. Ele tinha um quarto prostíbulo em Barcelona. Tudo, no entanto, só seria descoberto após a morte da mulher.

À brasileira, Antonio sugeriu a mudança para o bordel da capital catalã. Ela disse concordar e pediu para ir comprar cigarros. Mas aproveitou a liberdade momentânea e acabou em uma delegacia. Denunciou Antonio em 15 de novembro de 2005 por cafetinagem e trabalho escravo. Ainda forneceu nomes, endereços e telefones de outros da quadrilha. Repetiu as declarações ao Tribunal de Instrução nº 5 de Tarragona, que abriu processo.

Após a denúncia, Letícia retornou à Barcelona. Continuou se prostituindo e namorando o colombiano. Ele acabou preso no fim de 2008 acusado de maltratá-la. Depois, ambos denunciaram Antonio à polícia, diversas vezes, por coação. De acordo com depoimento do colombiano, um dia, Antonio apareceu em sua casa com dois capangas. “Convença ela (Letícia) a desistir da denúncia. Senão, tenho poder para acabar com ela. Os dois guarda-costas aqui vão se livrar dela. Sei de seu filho, que vive no Brasil”, teria ameaçado o chefão.

Letícia não se intimidou, e o tribunal de Tarragona notificou a polícia da Catalunha que Letícia era uma testemunha-chave no processo por prostituição contra Antonio. “Oferecemos a ela acesso a um abrigo, e ela recusou, porque ali o ambiente era muito ruim. Disse que procuraria um apartamento para alugar e voltaria a se dedicar à prostituição para ganhar dinheiro”, relataram policiais em documento enviado à Justiça espanhola.

Processos por ameaças e coações seguiram no tribunal, mas Antonio acabou absolvido por falta de prova. Ainda preso por maus tratos, o ex-namorado de Letícia mudou sua declaração perante o juiz. Negou até ter mantido qualquer relação amorosa com a goiana e disse jamais ter visto o acusado. Mentiu por medo, como comprovariam as investigações da polícia espanhola.

O ASSASSINATO
Em meio às denúncias, Letícia desembarcou em Brasília em 2007 para visitar o filho na escola. Ficou por apenas 15 dias. Um ano depois, ligou para o ex-marido e avisou que voltaria ao DF para ficar perto do garoto, que ia mal na escola. Prometeu permanecer ao menos seis meses. Ela vinha sofrendo perseguição na Espanha por causa da investigação contra o antigo cafetão.

Letícia chegou a Brasília em 16 de dezembro de 2008. Pediu ao ex-marido para alugar um apartamento no Guará, onde ele morava com o filho. Ele a ofereceu uma quitinete no Núcleo Bandeirante. Ela concordou e, dizendo ao ex-companheiro ter trazido R$ 20 mil em economias, pagou R$ 2.838 adiantados por seis meses de aluguel.

Na noite de 4 de março de 2009, Letícia fez o último contato com o namorado colombiano. Ao telefone, prometeu visitá-lo em breve. Havia comprado passagem aérea para Barcelona, marcada para 14 de junho. Na mesma data, conversou com uma de suas amigas brasileiras na Espanha. Dois dias depois, por volta das 22h, morreu com um tiro na cabeça, em um bar do Setor Habitacional Lucio Costa, no Guará.

Agentes e delegados da 4ª Delegacia de Polícia (Guará) começaram a investigar a morte de Letícia ainda na noite do crime, mas levaram quatro meses para localizar o principal suspeito do crime em uma favela de Guarapari (ES), a 1,3 mil km de Brasília. Iniciaram as buscas por Lúcio Flávio Barbosa, 20 anos, a partir de uma mensagem encontrada no celular da vítima. Ao prendê-lo, três agentes e um delegado conseguiram a confissão.
O atirador disse ter sido procurado por Clênio Otacílio da Silva, em 28 de fevereiro de 2009. O amigo queria alguém para matar uma brasileira, a mando de um espanhol. No dia seguinte, Lúcio ligou de volta para Clênio e se propôs a fazer o “serviço”, pelo qual ganharia R$ 40 mil. Clênio soube que Letícia, o alvo, estava morando em Brasília, por meio do Orkut dela, a então rede social mais acessada no Brasil.
Clênio havia passado três dias no DF, em janeiro de 2009, seguindo os passos de Letícia. Passou os dados, como fotos, número de telefone e endereço, a Lúcio. Este desembarcou na antiga Rodoferroviária na manhã de 6 de março, com R$ 900 no bolso e um revólver calibre .38. Entrou em contato com Letícia por meio de mensagens de texto de celular. Fingindo ser um cliente, disse-lhe que era muito bonita e que queria lhe propor um negócio.
Ambos se encontraram em um bar do Lucio Costa. Tomaram três cervejas e ele lhe ofereceu uma massagem nos ombros. Colocou-se atrás dela e deu-lhe um tiro na nuca. Depois fugiu em uma moto pilotada por um motoboy, que o levou ao local do crime e o esperou na EPTG. Em troca, ganhou R$ 500, um relógio e um celular.

A OPERAÇÃO
Em depoimento, Lúcio Flávio afirmou que Clênio e Letícia trabalharam para o tal espanhol como garotos de programa. A polícia brasiliense desconfiou que Clênio agisse como uma espécie de elo da quadrilha espanhola no Brasil. Atuaria, assim, como aliciador de mulheres interessadas em viver da prostituição no exterior.
Por meio dos depoimentos de Letícia e outras prostitutas à polícia espanhola, agentes e promotores de Justiça do DF ficaram convencidos de que o assassinato de Letícia havia sido comandado da Espanha. Um processo na Justiça espanhola revelou o que ocorreu antes de alguém encomendar a morte dela.
Com esses dados, além das investigações após a execução de Letícia, a polícia e a promotoria brasileira se depararam com um nome que se encaixava em todos os dados fornecidos pelo matador. Tratava-se de Miguel Arufe Martinez, um homem nascido em Tarragona, então com 40 anos, conhecido como Antonio, dono de vários bordéis. A mesmapessoa denunciada por Letícia e outras sete mulheres pelas condições impostas às prostitutas.
Um ano após o assassinato de Letícia, a Polícia Federal espanhola deflagrou uma megaoperação contra a prostituição internacional em seu país. Na manhã de 15 de março de 2010, agentes do Grupo de Operações Especiais surpreenderam Miguel Arufe Martinez em um dos prostíbulos da quadrilha, no centro de Tarragona. Além dele, os federais espanhóis prenderam 22 pessoas em flagrante, todos de origem lituana.
Os agentes ainda libertaram 30 mulheres. A maioria saiu da Lituânia, mas também havia brasileiras confinadas nas casas de prostituição gerenciadas pela quadrilha. Chamaram a atenção dos agentes às condições das garotas. Muitas carregavam nos corpos marcas de espancamentos e do regime de escravidão sexual imposto pela rotina nos prostíbulos das três cidades espanholas. Tudo como Letícia havia denunciado.
Lúcio Flávio, no entanto, nunca recebeu pelo assassinato. Aos policiais e no julgamento, contou que Clênio apenas alegou que o tal espanhol estava tendo problemas com a Justiça do seu país. Já a Justiça do DF condenou Lúcio a 12 anos e seis meses de prisão pelo assassinato de Letícia. O capixaba Clênio da Silva, porém, nunca foi a julgamento, porque está foragido. Policiais acreditam que ele, hoje com 36 anos, esteja escondido na Europa.
Clênio tinha uma passagem comprada para 30 de julho de 2010, com destino à Espanha. “Há contra ele um mandado de prisão. Se tentar entrar em nosso país, certamente será reconhecido pela Polícia Federal”, afirma o delegado Jefferson Lisboa, chefe da 4ªDP, que investigou a morte de Letícia. A mãe dela continua em Boston. O ex-marido e o filho se mudaram para o Entorno, por medo.

Na praia
Lúcio confessou ter comprado a arma do crime por R$ 400, em uma praia de Guarapari, de um homem conhecido como Reizinho. Identificado como Reinaldo Oliveira Santos, 20 anos, ele havia sido preso pela polícia capixaba antes de Lúcio, com quatro armas. Mais tarde, confessou a venda do revólver ao assassino de Letícia.


Absolvição
A polícia do DF identificou e prendeu o motoboy. Então com 29 anos, o morador de Vicente Pires, evangélico, confessou ter guiado o assassino. Disse que o conheceu na empresa de entregas em que trabalhava e foi procurado para dar fuga em assalto e não em um homicídio. Ele acabou absolvido pela Justiça.


Acusações
Um promotor espanhol pediu 28 anos de prisão para Miguel Arufe e Carolina Jiménez; nove para Evelyn Odigie (a gerente conhecida como Ana), que também é acusada de agressões e ameaças infligidas a uma das meninas; três anos para Adiae Patiente e seis para Vanilda Rodrigues Pimentel, outras duas das gerentes.
Fonte: Correio Braziliense

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