sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Confissões de uma freira moderna

Ilia Delio, O.S.F
A vida religiosa entre as mulheres está sofrendo mudanças evolutivas enormes que só podem ser descritas como um cataclismo.



A visita apostólica vaticana a diversas congregações femininas nos Estados Unidos e a recente pesquisa da Conferência de Lideranças de Mulheres Religiosas indicam que Roma não está contente com as chamadas freiras pós-Vaticano II que se vestem com roupas seculares e abandonaram a vida comunitária tradicional. As estatísticas atuais mostram uma tendência. Em 1965, havia cerca de 180.000 religiosas e freiras de claustro nos Estados Unidos. De acordo com o Centro de Investigação Aplicada no Apostolado da Universidade de Georgetown, em 2009, são um pouco mais de 59.000. Uma constante queda no número de religiosas, além do fato de terem uma média de idade de 75 anos, dão o sinal de que a vida religiosa nos Estados Unidos é uma instituição moribunda. No entanto, surgiram novas comunidades nas quais as religiosas vestem hábito e continuam um esquema diário de oração e serviço. Estas comunidades estão atraindo vocações jovens e vibrantes. Superfícialmente, pareceria ser o futuro da vida religiosa.
Aquelas que abandonaram o hábito religioso e as que estão usando marcam dois caminhos diferentes na vida religiosa atual. O que está acontecendo? Será que a maioria das religiosas interpretaram mal os documentos do Concílio Vaticano II? Será que o que alguns vêem como uma veta rebelde está tendo suas conseqüências? As mulheres estão desafiando a Igreja? Alguns interpretam os noviciados vazios e o envelhecimento das freiras como evidência de que as religiosas tomaram a opção errônea –a secularização–. Outros afirmam que sua intenção era viver sua vida religiosa de maneira mais autêntica num mundo que está mudando.
O abismo entre a vida religiosa tradicional e a progressiva ficou em evidência em 1992 com a publicação de The Transformation of the American Catholic Sisterhood, de Lora Ann Quiñonez, C.D.P. e Mary Daniel Turner, S.N.D. de N. O livro urgia o Cardeal James Hickey, na época Bispo de Washington D.C., a viajar a Roma, para lutar pelo estabelecimento de uma congregação de religiosas que fosse mais fiel à Igreja. Daí surgiu a Conferência de Superiores Maiores das Congregações Religiosas, e entre os requisitos que exigem está o uso do hábito, a oração comunitária, a adoração eucarística e fidelidade à Igreja. No entanto, a Conferência de Lideranças de Mulheres Religiosas continuou com o espírito do Vaticano II de abertura diante do mundo, exploração das avenidas da teologia da libertação, a teologia feminista e a apremiante situação dos pobres, entre outros. Apesar de ter procurado um diálogo entre o L.C.W.R. (ao qual ainda pertence a maioria das comunidades religiosas femininas) e o C.M.S.W.R., este afã de diálogo não foi compartilhado. Roma ficou do lado da C.M.S.W.R., outorgando aos seus membros posições eclesiásticas de alto nível.
Embora os dois grupos de religiosas pareçam estar em lados opostos, são parte do que Timothy Radcliffe, ex- Mestre Geral dos Dominicanos, em seu livro What is the Point of Christian Life? (Qual é o objeto da vida cristã?) denomina duas teologias diferentes baseadas em diferentes interpretações do Vaticano II . Os membros da Conferência de Liderança adotam a modernidade e vêem no trabalho do Concílio a nova vida que o Espírito Santo da à Igreja. Elas caem dentro do que o Padre Radcliffe identifica como o grupo Concilium, que se centram na Encarnação como o ponto central de renovação. Em compensação, os membros do Conselho de Superioras Religiosas, católicas Communio, que enfatizam a comunhão através da proclamação da fé, uma clara identidade católica e a centralidade da cruz. (Concilium e Communio eram os nomes de duas publicações periódicas fundadas na era pós-conciliar. A primeira se centrava nas reformas conciliares; a segunda dava importância à continuidade dos documentos do concílio com a comunhão dos fiéis através dos séculos). Desta maneira, um grupo se baseava na doxología e adoração (Communio), o outro na prática e na experiência (Concilium). Uma vê Cristo como uma reunião de pessoas em comunidade (Communio); a outra vê Cristo como aquele que cruza fronteiras (Concilium). Recentemente o C.M.S.W.R. teve seu congresso eucarístico sob o título "O sacrifício do amor eterno", enquanto a L.C.W.R. continua trabalhando na mudança sistêmica. As primeiras vêem a vida religiosa como as esponsais divinas de Cristo; as segundas vêem um Cristo solidário com os pobres e procurando justiça para os oprimidos.
Como diz o Padre Radcliffe, este não é um conflito entre aqueles que são leais ao concílio e os que querem voltar à Igreja pré-conciliar nem entre aqueles que são fiéis à tradição e os que sucumbiram ao mundo moderno. Em vez disso, o conflito radica em duas maneiras diferentes de interpretar o concílio e de como efetuar seu trabalho. Embora eu entenda as diferenças stabelecidas pelo Padre Radcliffe, minha própria experiência com as religiosas me diz que a raiz das diferenças entre estas associações é o medo à mudança. Não digo isto como um julgamento, mas considerando minha experiência pessoal.
 MINHA VIAGEM A UMA NOVA TEOLOGIA
Quando ingressei à vida religiosa (1984), acabava de terminar um doutorado em farmacologia e tinha a oportunidade de uma bolsa de pesquisa pós-doutorado na Escola de Medicina Johns Hopkins. Mas descobrira The Seven Storey Mountain, de Thomas Merton e não podia abandonar meu desejo de renunciar ao mundo e viver para Cristo. Meus conhecimentos de teologia, a Igreja e a vida religiosa eram bem rudimentários. Nos anos 70 eu era uma ativa cientista que publicava manifestos sobre a libertação. Apesar de ir à missa regularmente todas as semanas, as mudanças litúrgicas do Vaticano II não me entusiasmavam. Em vez disso, sentia falta do ritual místico da missa em latim que conheci quando era menina, apesar de nunca ter entendido uma só palavra do que dizia o sacerdote. Quando tomei a decisão de entrar à vida religiosa, procurei uma comunidade austera onde pudesse efetuar o sacrifício de uma vida dedicada inteiramente a Deus. Usar o hábito era importante para mim porque este representava a santidade e a identidade religiosa. Ingressei a um claustro de freiras carmelitas que usavam o hábito longo tradicional e tinham um esquema estabelecido de oração diária, silêncio, adoração e o terço.
Minha visão idealizada da vida religiosa começou a colapsar no claustro. Pouco a pouco fui percebendo o quão distante estava de qualquer nobre aspiração de santidade. Vivia com mulheres que padeciam transtornos maníaco-depressivos, vinham de famílias de alcoólatras ou haviam enviudado muito jovem. Compartilhava-se pouco no pessoal e havia escasso contato com o mundo. O Deus, ao qual em algum momento me havia sentido tão próxima começou a desvanecer-se na escuridão. Eu havia escolhido esse confinamento solitário. Pedi uma licença para discernir meu caminho e me enviaram a uma comunidade Franciscana perto de uma universidade onde pude retomar minha pesquisa. A comunidade também vestia hábito e tinham um esquema diário similar, mas a abertura das irmãs para o mundo era liberadora. Estudei teologia na Fordham University usando o hábito e me senti separada do resto de meus colegas. Durante a semana vivia no Bronx com as irmãs Ursulinas.
Minha primeira conversão na vida religiosa se centrou no exame final num curso sobre o Novo Testamento. Eu não tinha um computador ou um lugar onde trabalhar até que uma irmã Ursulina me ofereceu seu escritório e seu computador além de comida caseira. A preocupação da irmã Jeanne por minhas necessidades, que incluíam esperar-me em pé até depois da meia-noite, abriu meus olhos ao significado da Encarnação. Pela primeira vez vi Deus humildemente presente em jeans e camiseta. Depois vi Deus na frágil irmã Catherine, encarregada das grandes instalações de ajuda aos pobres da comunidade, e a irmã Lucy, cujos 40 anos como missionária no Alaska me proporcionaram muita diversão com suas fascinantes histórias durante as refeições. Na simples vida diária das irmãs Ursulinas, vi o Deus vivo. Vi o mesmo Deus entre as Franciscanas de Allegany, que me ofereceram um lugar onde pude fazer minha tese de doutorado. Elas me tiraram de minha cela de estudante, levaram-me ao parque e me levaram para comer, além de escutar minhas tristezas. Quando me graduei já havia vivido em três diferentes casas generalicias entre irmãs cujas congregações eram membros da Conferência de Lideranças de mulheres Religiosas.
Através do estudo da teologia, comecei a refletir sobre a Encarnação e as duas formas diferentes de vida religiosa que vivera. Percebi que Jesus efetuava costumes e rituais judeus, que viveu a vida de um humilde carpinteiro e sentiu o chamado de seu ministério, ao redor de seus 30 anos, mas não se diferenciou dos demais por suas roupas ou seus costumes. Comprometido com as lutas sócio-políticas e econômicas de seu tempo, aproximou-se dos pobres e mostrou compaixão pelos enfermos e os moribundos. Jesus proclamou o reino de Deus e deu sua vida como depoimento da fidelidade do amor de Deus. Por isso sofreu publicamente a morte de um criminoso, sem honra nem glória. Os primeiros cristãos que foram testemunhas da elevação do Senhor tinham o poder de proclamá-lo. Tinha que ser assim: até a conversão de Constantino, viver como cristão era o caminho seguro ao martírio. Hoje também, a vida do evangelho significa dar depoimento da bondade de Deus em Cristo. Em 2005, Dorothy Stang, das Irmãs de Notre Dame de Namur, deu sua vida como mártir pelos pobres do Amazonas.
Os dois grupos contemporâneos de mulheres religiosas –a Conferência de Superiores Maiores das Congregações Religiosas e a Conferência de Liderança de Religiosas- testemunham o Evangelho revelado em Jesus Cristo, mas suas trajetórias diferem. O primeiro grupo procura unir-sr espiritualmente com Cristo, sua ênfase está numa união nupcial divina. O segundo grupo segue principalmente o Cristo liberador, testemunhando Cristo entre as lutas da história. Em ambos grupos podemos encontrar ídolos, segredos e disfunções, assim como santos, profetas e místicos. Ambos grupos são pecadores e perdoados. Ambos seguem o direito canônico, ambos têm seguro médico, seguro automotriz, planos de retiro e sepulturas.
A VISÃO EVOLUTIVA DE TEILHARD
Em que a vida religiosa influi no mundo? Teilhard de Chardin, S.J., esclareceu esta pergunta, ao compreender o cristianismo dentro de um universo evolutivo. O que nós fizermos e as decisões históricas que forem tomadas, diz ele, influenciarão na gênese de Cristo. Cristo é o objetivo do universo, a nova criação, o futuro do que chegaremos a ser. Todos os que forem batizados em Cristo devemos nos abandonar em amor e descermos para a solidariedade com a terra. Chardin observou que não há nada profano no mundo para aqueles que sabem olhar. O universo é santo porque se baseia na Palavra de Deus. É Cristo, o que vive, quem chegará a ser.
Durante muitos anos eu me perguntei se as religiosas teriam lido mal os sinais dos tempos. No entanto, à medida que refleti sobre o mistério de Deus, cheguei a acreditar que o universo evolutivo se move para frente parcialmente, porque as religiosas estão trabalhando nas trincheiras da humanidade, entre os pobres, os oprimidos, os marginalizados. Hoje em dia as religiões do mundo estão tendo um papel mais ativo na síntese de uma nova consciência religiosa. As mulheres do L.C.W.R. arriscaram suas vidas na consecução da autêntica Encarnação e proclamaram profeticamente que o amor de Deus não pode exterminar nem terminar. Continuam lutando pela mudança de sistema em benefício dos oprimidos. As congregações poderão desaparecer, mas os caminhos inscritos na história pelas mulheres religiosas do Vaticano II são nada menos que os surtos evolucionários de um novo futuro.
Tal como observou Teilhard, o sofrimento e o sacrifício são partes do processo de evolução. As estruturas isoladas têm que dar lugar a uniões mais complexas. Viver com um espírito evolutivo significa renunciar às velhas estruturas e comprometer-se com novas estruturas quando chegar o momento. A terra e o céu novos prometidos por Deus não virão a nós se nos isolarmos do mundo ou formarmos guetos católicos. Não se abrirá com o triunfo do poder eclesiástico. Chegará quando seguirmos as pisadas do Crucificado, descendo para as escuridões da humanidade e elevando-se ao poder do amor. Este é o caminho para uma nova criação, simbolizada por Cristo.
Cremos que o que aconteceu entre Deus e o mundo em Cristo aponta para o futuro do cosmos. Esse futuro implica uma transformação radical de realidade criada através do poder unificador do amor de Deus. Ser um portador de Cristo significa concentrar-se na profundidade interna do amor. É o amor que põe carne no rosto de Deus, é o amor o que faz o Cristo viver; o amor é o poder do futuro e o desenvolvimento de Cristo. A História não recordará o que Ele escreveu, onde morou ou como rezou, mas sim como um católico concilium ou communio. No ocaso da vida seremos julgados somente por amor.

Fonte: Mirada Global
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 Ilia Delio, O.S.F., das Irmãs Franciscanas de Washington, é professora e decana do departamento de estudos espirituais na Washington Theological Union. Publicado na revista America, www.americamagazine.org

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