sexta-feira, 18 de março de 2011

A mutilação genital feminina constitui uma prática intolerável

A globalização colocou não apenas as pessoas e os povos em contato uns com os outros. Propagou também seus vírus e bactérias, plantas e frutas, culinárias e modas, visões de mundo e religiões, inclusive valores e antivalores. É da natureza humana e da história, não como defeito, mas como marca evolucionária, o fato de sermos sapientes e dementes, por isso, surgirmos como seres contraditórios.

Junto com as dimensões que mostram o lado melhor do ser humano, por onde nos enriquecemos mutuamente, comparecem também as sombrias, tradições seculares que penalizam porções enormes da população. Por isso, devemos ser críticos para identificar práticas desumanas que não são toleráveis.

Nós, ocidentais, por exemplo, somos individualistas e dualistas, tão centrados em nossa identidade, a ponto de termos grande dificuldade em aceitar os diferentes de nós. Tendemos a tratar os diferentes como inferiores. Isso fornece a base ideológica ao nosso espírito colonialista e imperialista, impondo a todo o mundo nossos valores e visão de mundo.

Semelhantes limitações encontramos em todas as culturas. Mas há limitações e limitações. Algumas violam todos os parâmetros da decência. Parecem-se antes a violações e crimes que a tradições culturais por mais ancestrais que se apresentem. E não adianta antropólogos e sociólogos da cultura saírem a campo defendendo-as em nome do respeito às diferenças. O que é cruel é cruel em qualquer cultura e em qualquer parte do mundo. A crueldade, por ser desumana, não tem direito de existir.

Refiro-me especificamente à mutilação genital feminina. Ela é praticada secularmente em 28 países da África, no Oriente Médio e no Sudeste da Ásia e em vários países europeus onde há imigrantes desses países. Calcula-se que atualmente existam no mundo entre 115 e 130 milhões de mulheres genitalmente mutiladas. Outros 3 milhões são ainda anualmente submetidos a tais horrores, incluindo 500 mil na Europa.

De que se trata? Trata-se da remoção do clitóris e dos lábios vaginais e até, em alguns locais, da suturação dos dois lados da vulva em meninas com idade entre 4 e 14 anos. Isso é feito sem qualquer preocupação higiênica e até com pedaços de vidro. São inimagináveis a dor e o horror, as hemorragias e as infecções, os choques emocionais e os padecimentos sem conta, comprovados em alguns "youtubes" da internet.

Na Europa, tais práticas são criminalizadas. As mães levam, então, as filhas aos países de origem, a pretexto de conhecerem os parentes. Mais que uma prática cultural, é uma agressão e grave violação dos direitos humanos. Por detrás funciona o mais primitivo machismo, que quer impedir que a mulher tenha acesso ao prazer sexual e a transforma em objeto para o prazer exclusivo do homem. Não sem razão a OMS denunciou tal prática como tortura.

Vejo duas razões que desqualificam certas tradições culturais e que nos levam a combatê-las. A primeira é o sofrimento do outro. Lá onde a diferença cultural implica mutilação do outro, aí ela deve ser coibida. Ninguém tem direito de impor sofrimento ao outro. A segunda razão é a Carta dos Direitos Humanos da ONU de 1948. Práticas que comportam violação da dignidade humana devem ser proibidas e até criminalizadas. A lei suprema é tratar humanamente os seres humanos.

Daí se entende a instauração do dia 6 de fevereiro como o Dia Internacional de Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina
Leonardo Boff



Fonte: http://www.otempo.com.br/

Nenhum comentário: