Vinte e um anos de uma batalha
cujo fim ninguém arrisca prever. Ao completar a maioridade nas ruas de Belo
Horizonte desde que a rede de saúde registrou os primeiros casos de uso, em
1996, o crack se tornou uma droga que escancara feridas e uma doença de
desfecho incerto, tanto do ponto de vista de cada usuário quanto sob a ótica da
sociedade. Um desafio que, de forma diferente de outros tipos de dependência,
não faz questão de se esconder. Pelo contrário: suas vítimas, em trapos, vagam
à luz do dia em busca da próxima pedra, que será consumida avidamente à vista
de quem se interessar em prestar a atenção. A realidade da dependência é
esfregada na cara de cidadãos e autoridades a cada grupo de usuários que brota
nas cidades e a cada município que entra no mapa da epidemia, sem que se possa
apostar em uma solução. Todas as tentativas, das mais tolerantes às mais
repressivas, passando pelas mais pirotécnicas, fracassaram.
De um lado dessa batalha em que
só se observam vitórias isoladas estão os usuários, imersos em uma dura rotina
de consumo, com consequências físicas, neurológicas, psicológicas e sociais. Em
outra ponta – aquela que deveria ser a do apoio ao dependente –, a rede de
acolhimento e tratamento, que tem dado resposta positiva dentro da sua
capacidade, mas ainda está distante de se mostrar como solução. Não tem o
tamanho adequado e necessário para cobrir as dimensões do estado, nem tampouco
todos os equipamentos da política de atenção psicossocial. Como resultado,
deixa muitos vazios assistenciais, não só nas metrópoles como BH, mas
especialmente no Vale do Jequitinhonha, Norte e Noroeste de Minas, para onde o
flagelo avança em velocidade atordoante.
Autoridades e especialistas destacam
os fatores que levam à dificuldade de lidar com a droga, especialmente porque
não há tratamento público para a maior parte dos dependentes químicos e muitos
casos vão se transformar em ações na Justiça. A lista inclui pelo menos quatro
grandes desafios: o alto poder viciante do crack; a insuficiência de equipes
especializadas para abordagem a usuários; o déficit de equipamentos de saúde e
assistência específicos para acolhimento e tratamento, que chegam a exigir mais
de um ano; além da falta de unidades para reinserção social dos dependentes.
Dados da Coordenadoria de Saúde
Mental da Secretaria de Estado de Saúde (SES) dão a dimensão do problema. Do
total de atendimentos por dependência química na rede, metade está relacionada
a drogas e a outra metade ao álcool. Na fatia que representa o consumo de
entorpecentes, o crack é responsável por 20%. A pasta não tem uma estimativa do
número de usuários, mas pelo tamanho do estado é possível ter noção do desafio:
são 853 municípios, mas apenas 60 Centros de Atenção Psicossocial Álcool e
Drogas (Caps AD), especializados nesse tipo de atendimento. “Esse é um número
muito pequeno. Precisaria, no mínimo, triplicar para atender a toda a população
de dependentes”, afirma o coordenador de Saúde Mental da SES, Humberto Verona.
O Caps AD é a política do Sistema
Único de Saúde (SUS) de atendimento integral a pessoas de todas as faixas
etárias que apresentam intenso sofrimento psíquico decorrente do uso de crack,
álcool e outras drogas. Humberto Verona ressalta a importância dessas
estruturas para a assistência a dependentes químicos. “São serviços de atenção
contínua, com funcionamento 24 horas por dia, incluindo feriados e fins de
semana, ofertando retaguarda clínica e acolhimento noturno”, explica.
Outro obstáculo é o baixo número
de Consultórios de Rua – grupos multidisciplinares que reúnem médicos,
enfermeiros, assistentes de enfermagem e psicólogos, entre outros profissionais
– para atendimento itinerante à população em situação de rua, com vistas a
ampliar o acesso aos serviços de saúde. Atualmente, são apenas 15 equipes,
distribuídas em 11 municípios mineiros, quatro delas em Belo Horizonte. “Esse é
um número baixíssimo para o enfrentamento de um problema que vem crescendo no
estado”, afirma Humberto Verona.
O desafio chama ainda mais a
atenção depois que a Prefeitura de São Paulo passou a adotar a estratégia de
retirar usuários da droga da Praça Princesa Izabel, no Centro da cidade, e a
defender o encaminhamento forçado de dependentes para internação. Durante a
ação policial, ordenada pelo governador Geraldo Alkimin (PSDB) e pelo prefeito
João Doria (PSDB), houve uso de força, bombas de gás lacrimogênio e de jatos de
água para dispersão das pessoas. O grupo, no entanto, se aglomerou em um novo local,
a 400 metros da praça, onde as operações de “limpeza” continuam ocorrendo.
Em Belo Horizonte, a concentração
de usuários, que já foi intensa no entorno da Pedreira Prado Lopes, na Região
Noroeste, vive um momento de dispersão pela cidade, o que, segundo Humberto
Verona, é resultado de repressão policial, mas também de políticas públicas.
Atualmente, 320 usuários de crack que se mantêm especialmente no entorno da
rodoviária, no Centro, e no Bairro Lagoinha, têm sido acompanhados por equipes
do Consultório de Rua. Questionada sobre a evolução da quantidade de usuários
na cidade, a Prefeitura de Belo Horizonte não soube informar esse dado. Basta
caminhar pela cidade, porém, para perceber que o número se multiplica a cada
dia, em uma velocidade que as estruturas de suporte nem de longe ameaçam
alcançar.
Diário de quem desceu ao inferno
Refém da pedra durante quatro
anos, a depiladora e manicure I.C., de 36, já passou muitas vezes pelas bocas
de crack de Belo Horizonte. Depois de conhecer a maconha, aos 15 anos, e a
cocaína, aos 18, foi aos 22 anos que foi apresentada ao efeito devastador da
pedra. “Quando adolescente, eu ficava muito sozinha e meus amigos iam para
minha casa para usarmos qualquer coisa que nos tirasse do ar. Com o crack, uma
amiga ficou dependente primeiro. Comecei a usar com ela e me viciei muito
rápido”, conta.
A mulher de cabelos pretos, olhar
forte e corpo esguio conta os prejuízos que se seguiram ao primeiro trago. “Só
coisa ruim aconteceu. Comecei a namorar um traficante. Quando assustei, estava
grávida. Fumei crack até a hora de entrar em trabalho de parto”, relata. Após o
nascimento do filho veio a decisão de parar. Depois de duas semanas, a recaída.
“Voltei à favela, fumei, e quando cheguei em casa pedi para minha mãe me
internar. Fiquei em uma clínica particular, mas só por dois meses, porque ela
não tinha dinheiro para me manter lá”, disse.
Na saída “começou tudo de novo”.
“Vendi todas as minhas roupas e objetos de casa. Dormi na rua. Minha mãe não me
aceitava mais em casa. Eu dormia no portão do prédio, porque, se entrasse, na
fissura, ia vender tudo o que pudesse para fumar mais ainda”, lembra.
A interrupção do uso veio após a
segunda internação e, posteriormente, a mudança para o Norte de Minas, onde
I.C. se casou. De lá, se mudou novamente para Igarapé, na Região Metropolitana
de Belo Horizonte e há oito anos está livre do crack, o que descreve como uma
libertação. “Cheguei a achar que não ia sobreviver. Um amigo morreu na minha
frente, de tiro. Outra se prostituía. Foi queimada com álcool no Centro da
cidade. Por muito tempo eu quis entender por que isso aconteceu na minha vida,
mas sei que foi uma escolha errada que fiz. Graças a Deus, passou.”
Pontos de uso de crack se
confundem com 'bocas' de venda da droga na capital
Grupo nas proximidades da
Pedreira Prado Lopes, na Região Noroeste de BH. Área de tráfico em torno da
qual gravitam várias comunidades de usuários (foto: Leandro Couri/EM/D.A.Press)
Os olhares vão vasculhando o chão
à procura de tocos de cigarros, mas principalmente na esperança de achar
pequenas pedras de crack eventualmente perdidas. As mãos carregam latas ou
cachimbo artesanais, normalmente feitos com pedaços de caneta ou de canudos de
ferro. Os corpos perambulam, de um lado para o outro, sem rumo. Esse vaivém que
gira em torno da droga é cena comum em
pontos de Belo Horizonte onde fica claro o consumo do crack e a degradação que ele
causa. São muitas as histórias e vidas espalhadas em “bocas” como o entorno da
Rua Araribá, no Bairro Lagoinha, na Rua Conselheiro Rocha, no Bairro Floresta,
no entorno da rodoviária, no Centro, embaixo de viadutos e em outras áreas em
Belo Horizonte.
Um desses enredos é o de Carlos,
de 39 anos, cuja trajetória de dependência se construiu em torno da Pedreira
Prado Lopes, na Lagoinha, conhecida pela sigla PPL. Tentando se livrar do vício
que o aprisiona desde 2006, o desempregado está há três semanas sem consumir a
droga, o que já é tratado por ele como uma vitória. Natural de Januária, no
Norte de Minas, ele partiu para Belo Horizonte para tentar emprego, mas não
conseguiu. Foi aí que se jogou de vez no mundo das drogas. “No interior, eu era
usuário de maconha e cocaína, e não quis encarar meu pai, que era muito
autoritário. Quando vim para BH e não consegui emprego, comecei a usar crack”,
contou. A primeira vez que experimentou a pedra foi com um amigo que morava com
ele em Sabará, na Grande BH.
Segundo Carlos, a droga virou sua
vida ao avesso. Para manter a dependência, chegou a se desfazer de geladeira,
de suas roupas e até das lâmpadas de casa. “Por causa da droga, fiquei 19 anos
sem visitar meus pais. Quando fui, meu pai tinha morrido e nem fiquei sabendo”,
comentou. Em setembro do ano passado ele começou a frequentar uma clínica de
reabilitação.
Seu relato é um testemunho da
dificuldade da recuperação, mas também da importância da persistência. “Hoje eu
estou lutando para ser um ex-usuário. Se a pessoa buscar ajuda, pode ser que
tenha apoio, mas nunca vai saber se vai conseguir, pois há poucos lugares para
isso. Mas digo a quem está nessa situação para não desistir, que continue
lutando. Somente nós, usuários, podemos começar”, afirmou.
Superar o obstáculo da pedra
também é um desafio para o morador de rua William, que vive na região da Lagoinha.
Ele partiu de Itajubá, no Sul de Minas, à procura de trabalho na capital. No
interior, começou a usar drogas ainda aos 16 anos. Como não tinha o crack na
forma que existe hoje, esquentava cocaína na colher para fumar. “Cheguei a
vender o marmitex que ia comer para comprar droga. Quando recebia qualquer
quantia em dinheiro, até mesmo 10 centavos, já fazia as contas de quanto ia
precisar para comprar mais. Precisava preencher o vazio que tinha dentro de
mim, e fazia isso com a droga. Mas ele voltava logo depois da saída do
‘trago’”, comentou.
SUSTO Em BH, o vício se
intensificou e Willian passou a viver na rua. Agora, dá os primeiros passos na
batalha contra a dependência. “Tomei um choque quando vi os moradores de rua
todos sujos e nesta vida. Eu me vi na mesma situação, ficava do mesmo jeito.
Resolvi parar e comecei a frequentar alguns programas de ressocialização. Desde
o início do mês passado não uso”, contou.
É mais uma etapa da luta de quem
já passou por vários centros terapêuticos, mas não conseguiu se livrar das
drogas. “Para alguns adianta, para outros não. Eu não queria estar lá. Ia para
os centros só para descansar o corpo. Só isso”, contou. “Hoje fico na luta
diária. O dia é muito extenso, vai da 0h de hoje até a 0h de amanhã. Quando
mudamos a rotina, as amizades são a melhor forma de parar”, definiu.
Tráfico e consumo desafiam autoridades
Os pontos de uso de crack em Belo
Horizonte se misturam às “bocas” de venda da droga. Em torno delas os usuários
se reúnem durante todo o dia, sem distinção de horário. E consomem a pedra em
grupos ou sozinhos, sem se preocupar com a passagem de carros e pedestres.
A Pedreira Prado Lopes se tornou
um ponto de atração de dependentes pela concentração da droga. Na Rua Araribá,
nas imediações, dezenas de usuários se espalham pela calçada. Sujos, a maioria
anda em trapos, pois só conserva consigo coisas que não têm qualquer valor para
a venda. O resto vira moeda para a pedra. O consumo é intenso e o cachimbo
passa de mão em mão.
Apesar de tudo isso ocorrer à luz
do dia, inclusive diante de câmeras do sistema público de videomonitoramento, o
consumo transcorre livremente, e naturalmente a pedra não “brota” nesses
espaços. Por eles transitam com certa tranquilidade traficantes, que passam a
droga a todo instante para um público consumidor ávido pelo próximo trago.
Um desafio para as ações da
Polícia Militar. De acordo com o major Flávio Santiago, chefe da Sala de
Imprensa da corporação, a PM tem feito ações de orientação, de condução de
usuários pegos em flagrante e também de traficantes. “A PM tem agido em frentes
importantes de trabalho. Primeiro, a prevenção, na essência com o Programa
Educacional de Resistência a Drogas (Proerd), que tem mais de 3 milhões de
jovens formados. O segundo ponto importante é o combate ao tráfico de forma
sistemática. Por semana, uma tonelada de drogas é apreendida”, explicou.
ENXUGAR GELO Segundo o major, na maioria das vezes, os usuários
presos em flagrante consumindo a droga são encaminhados à delegacia, mas acabam
sendo soltos e voltando para os mesmos locais. “Nos últimos cinco anos, a PM
vai mantendo a condução, apesar do fato de o usuário não ficar preso. Mas,
pelos efeitos da fissura, eles se envolvem muito em roubos e furtos”, afirma.
Mas o militar chama a atenção para a necessidade de interação com outros
órgãos, de assistência social e saúde pública, para enfrentar o problema.
Sobre os locais de consumo em BH,
o major reconhece que os usuários se reúnem próximo a pontos onde a oferta de
droga é maior. “Eles tangenciam alguns aglomerados, pela proximidade com alguns
pontos onde há tráfico. Nesses pontos, como a Lagoinha e as proximidades da
Pedreira Prado Lopes, fazemos vários conduções. Mas precisamos de outras ações
que não são da polícia, como acompanhamento, redução de danos, acolhimento,
monitoramento, entre outros”, completou.
Palavra de especialista
Robson Sávio, cientista social,
integrante do Núcleo de Estudos Sociopolíticos da Pontifícia Universidade
Católica (PUC Minas) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
A lógica dos grupos e a maquiagem da cidade
“O número de usuários de crack no
país é muito grande. Essas pessoas se aglomeram para a manutenção do próprio
vício e porque se sentem mais seguras juntas, já que, se o grupo é muito
pequeno, está mais vulnerável à repressão policial. Portanto, dispersá-los da cracolândia
só vai espalhá-los pela cidade. A estratégia adotada pelo prefeito João Doria
de São Paulo de ‘dispersar’ os usuários de crack é uma tática antiga, usada em
todo o mundo desde o século 18. A ideia é ter uma cidade ‘limpa’, ou seja,
retirar tudo o que incomoda. Hoje, o que incomoda é o usuário de droga, o
pedinte, o morador de rua, mas, principalmente, o usuário de crack. Doria
aplicou a estratégia característica de pessoas que pensam na cidade como um
berço para a classe média. Trata-se de uma medida totalmente ineficiente, que
não soluciona o problema da desigualdade, apenas tenta mascará-lo. A presença
desses dependentes de crack nas ruas evidencia um problema social e não um
problema de segurança pública.”
Fonte: Estado de Minas
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