segunda-feira, 19 de junho de 2017

Aumento do consumo de drogas no centro de BH

Sob a lente de uma câmera do serviço público de monitoramento, usuários se aglomeram à luz do dia nas proximidades da Pedreira Prado Lopes: flagelo que não faz questão de se esconder (foto: Leandro Couri/EM/D.A.Press)
 Número de usuários se alastra, tímida rede de suporte não o acompanha demanda e abordagens de combate à dependência se revelaram insuficientes ou fracassadas.

  
Vinte e um anos de uma batalha cujo fim ninguém arrisca prever. Ao completar a maioridade nas ruas de Belo Horizonte desde que a rede de saúde registrou os primeiros casos de uso, em 1996, o crack se tornou uma droga que escancara feridas e uma doença de desfecho incerto, tanto do ponto de vista de cada usuário quanto sob a ótica da sociedade. Um desafio que, de forma diferente de outros tipos de dependência, não faz questão de se esconder. Pelo contrário: suas vítimas, em trapos, vagam à luz do dia em busca da próxima pedra, que será consumida avidamente à vista de quem se interessar em prestar a atenção. A realidade da dependência é esfregada na cara de cidadãos e autoridades a cada grupo de usuários que brota nas cidades e a cada município que entra no mapa da epidemia, sem que se possa apostar em uma solução. Todas as tentativas, das mais tolerantes às mais repressivas, passando pelas mais pirotécnicas, fracassaram.


De um lado dessa batalha em que só se observam vitórias isoladas estão os usuários, imersos em uma dura rotina de consumo, com consequências físicas, neurológicas, psicológicas e sociais. Em outra ponta – aquela que deveria ser a do apoio ao dependente –, a rede de acolhimento e tratamento, que tem dado resposta positiva dentro da sua capacidade, mas ainda está distante de se mostrar como solução. Não tem o tamanho adequado e necessário para cobrir as dimensões do estado, nem tampouco todos os equipamentos da política de atenção psicossocial. Como resultado, deixa muitos vazios assistenciais, não só nas metrópoles como BH, mas especialmente no Vale do Jequitinhonha, Norte e Noroeste de Minas, para onde o flagelo avança em velocidade atordoante.

Autoridades e especialistas destacam os fatores que levam à dificuldade de lidar com a droga, especialmente porque não há tratamento público para a maior parte dos dependentes químicos e muitos casos vão se transformar em ações na Justiça. A lista inclui pelo menos quatro grandes desafios: o alto poder viciante do crack; a insuficiência de equipes especializadas para abordagem a usuários; o déficit de equipamentos de saúde e assistência específicos para acolhimento e tratamento, que chegam a exigir mais de um ano; além da falta de unidades para reinserção social dos dependentes.

Dados da Coordenadoria de Saúde Mental da Secretaria de Estado de Saúde (SES) dão a dimensão do problema. Do total de atendimentos por dependência química na rede, metade está relacionada a drogas e a outra metade ao álcool. Na fatia que representa o consumo de entorpecentes, o crack é responsável por 20%. A pasta não tem uma estimativa do número de usuários, mas pelo tamanho do estado é possível ter noção do desafio: são 853 municípios, mas apenas 60 Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD), especializados nesse tipo de atendimento. “Esse é um número muito pequeno. Precisaria, no mínimo, triplicar para atender a toda a população de dependentes”, afirma o coordenador de Saúde Mental da SES, Humberto Verona.

O Caps AD é a política do Sistema Único de Saúde (SUS) de atendimento integral a pessoas de todas as faixas etárias que apresentam intenso sofrimento psíquico decorrente do uso de crack, álcool e outras drogas. Humberto Verona ressalta a importância dessas estruturas para a assistência a dependentes químicos. “São serviços de atenção contínua, com funcionamento 24 horas por dia, incluindo feriados e fins de semana, ofertando retaguarda clínica e acolhimento noturno”, explica.

Outro obstáculo é o baixo número de Consultórios de Rua – grupos multidisciplinares que reúnem médicos, enfermeiros, assistentes de enfermagem e psicólogos, entre outros profissionais – para atendimento itinerante à população em situação de rua, com vistas a ampliar o acesso aos serviços de saúde. Atualmente, são apenas 15 equipes, distribuídas em 11 municípios mineiros, quatro delas em Belo Horizonte. “Esse é um número baixíssimo para o enfrentamento de um problema que vem crescendo no estado”, afirma Humberto Verona.

O desafio chama ainda mais a atenção depois que a Prefeitura de São Paulo passou a adotar a estratégia de retirar usuários da droga da Praça Princesa Izabel, no Centro da cidade, e a defender o encaminhamento forçado de dependentes para internação. Durante a ação policial, ordenada pelo governador Geraldo Alkimin (PSDB) e pelo prefeito João Doria (PSDB), houve uso de força, bombas de gás lacrimogênio e de jatos de água para dispersão das pessoas. O grupo, no entanto, se aglomerou em um novo local, a 400 metros da praça, onde as operações de “limpeza” continuam ocorrendo.

Em Belo Horizonte, a concentração de usuários, que já foi intensa no entorno da Pedreira Prado Lopes, na Região Noroeste, vive um momento de dispersão pela cidade, o que, segundo Humberto Verona, é resultado de repressão policial, mas também de políticas públicas. Atualmente, 320 usuários de crack que se mantêm especialmente no entorno da rodoviária, no Centro, e no Bairro Lagoinha, têm sido acompanhados por equipes do Consultório de Rua. Questionada sobre a evolução da quantidade de usuários na cidade, a Prefeitura de Belo Horizonte não soube informar esse dado. Basta caminhar pela cidade, porém, para perceber que o número se multiplica a cada dia, em uma velocidade que as estruturas de suporte nem de longe ameaçam alcançar.

Diário de quem desceu ao inferno

Refém da pedra durante quatro anos, a depiladora e manicure I.C., de 36, já passou muitas vezes pelas bocas de crack de Belo Horizonte. Depois de conhecer a maconha, aos 15 anos, e a cocaína, aos 18, foi aos 22 anos que foi apresentada ao efeito devastador da pedra. “Quando adolescente, eu ficava muito sozinha e meus amigos iam para minha casa para usarmos qualquer coisa que nos tirasse do ar. Com o crack, uma amiga ficou dependente primeiro. Comecei a usar com ela e me viciei muito rápido”, conta.

A mulher de cabelos pretos, olhar forte e corpo esguio conta os prejuízos que se seguiram ao primeiro trago. “Só coisa ruim aconteceu. Comecei a namorar um traficante. Quando assustei, estava grávida. Fumei crack até a hora de entrar em trabalho de parto”, relata. Após o nascimento do filho veio a decisão de parar. Depois de duas semanas, a recaída. “Voltei à favela, fumei, e quando cheguei em casa pedi para minha mãe me internar. Fiquei em uma clínica particular, mas só por dois meses, porque ela não tinha dinheiro para me manter lá”, disse.

Na saída “começou tudo de novo”. “Vendi todas as minhas roupas e objetos de casa. Dormi na rua. Minha mãe não me aceitava mais em casa. Eu dormia no portão do prédio, porque, se entrasse, na fissura, ia vender tudo o que pudesse para fumar mais ainda”, lembra.

A interrupção do uso veio após a segunda internação e, posteriormente, a mudança para o Norte de Minas, onde I.C. se casou. De lá, se mudou novamente para Igarapé, na Região Metropolitana de Belo Horizonte e há oito anos está livre do crack, o que descreve como uma libertação. “Cheguei a achar que não ia sobreviver. Um amigo morreu na minha frente, de tiro. Outra se prostituía. Foi queimada com álcool no Centro da cidade. Por muito tempo eu quis entender por que isso aconteceu na minha vida, mas sei que foi uma escolha errada que fiz. Graças a Deus, passou.”



Pontos de uso de crack se confundem com 'bocas' de venda da droga na capital


Grupo nas proximidades da Pedreira Prado Lopes, na Região Noroeste de BH. Área de tráfico em torno da qual gravitam várias comunidades de usuários (foto: Leandro Couri/EM/D.A.Press)

Os olhares vão vasculhando o chão à procura de tocos de cigarros, mas principalmente na esperança de achar pequenas pedras de crack eventualmente perdidas. As mãos carregam latas ou cachimbo artesanais, normalmente feitos com pedaços de caneta ou de canudos de ferro. Os corpos perambulam, de um lado para o outro, sem rumo. Esse vaivém que gira em torno da droga é cena  comum em pontos de Belo Horizonte onde fica claro o consumo do crack e a degradação que ele causa. São muitas as histórias e vidas espalhadas em “bocas” como o entorno da Rua Araribá, no Bairro Lagoinha, na Rua Conselheiro Rocha, no Bairro Floresta, no entorno da rodoviária, no Centro, embaixo de viadutos e em outras áreas em Belo Horizonte.

Um desses enredos é o de Carlos, de 39 anos, cuja trajetória de dependência se construiu em torno da Pedreira Prado Lopes, na Lagoinha, conhecida pela sigla PPL. Tentando se livrar do vício que o aprisiona desde 2006, o desempregado está há três semanas sem consumir a droga, o que já é tratado por ele como uma vitória. Natural de Januária, no Norte de Minas, ele partiu para Belo Horizonte para tentar emprego, mas não conseguiu. Foi aí que se jogou de vez no mundo das drogas. “No interior, eu era usuário de maconha e cocaína, e não quis encarar meu pai, que era muito autoritário. Quando vim para BH e não consegui emprego, comecei a usar crack”, contou. A primeira vez que experimentou a pedra foi com um amigo que morava com ele em Sabará, na Grande BH.

Segundo Carlos, a droga virou sua vida ao avesso. Para manter a dependência, chegou a se desfazer de geladeira, de suas roupas e até das lâmpadas de casa. “Por causa da droga, fiquei 19 anos sem visitar meus pais. Quando fui, meu pai tinha morrido e nem fiquei sabendo”, comentou. Em setembro do ano passado ele começou a frequentar uma clínica de reabilitação.

Seu relato é um testemunho da dificuldade da recuperação, mas também da importância da persistência. “Hoje eu estou lutando para ser um ex-usuário. Se a pessoa buscar ajuda, pode ser que tenha apoio, mas nunca vai saber se vai conseguir, pois há poucos lugares para isso. Mas digo a quem está nessa situação para não desistir, que continue lutando. Somente nós, usuários, podemos começar”, afirmou.

Superar o obstáculo da pedra também é um desafio para o morador de rua William, que vive na região da Lagoinha. Ele partiu de Itajubá, no Sul de Minas, à procura de trabalho na capital. No interior, começou a usar drogas ainda aos 16 anos. Como não tinha o crack na forma que existe hoje, esquentava cocaína na colher para fumar. “Cheguei a vender o marmitex que ia comer para comprar droga. Quando recebia qualquer quantia em dinheiro, até mesmo 10 centavos, já fazia as contas de quanto ia precisar para comprar mais. Precisava preencher o vazio que tinha dentro de mim, e fazia isso com a droga. Mas ele voltava logo depois da saída do ‘trago’”, comentou.


SUSTO Em BH, o vício se intensificou e Willian passou a viver na rua. Agora, dá os primeiros passos na batalha contra a dependência. “Tomei um choque quando vi os moradores de rua todos sujos e nesta vida. Eu me vi na mesma situação, ficava do mesmo jeito. Resolvi parar e comecei a frequentar alguns programas de ressocialização. Desde o início do mês passado não uso”, contou.

É mais uma etapa da luta de quem já passou por vários centros terapêuticos, mas não conseguiu se livrar das drogas. “Para alguns adianta, para outros não. Eu não queria estar lá. Ia para os centros só para descansar o corpo. Só isso”, contou. “Hoje fico na luta diária. O dia é muito extenso, vai da 0h de hoje até a 0h de amanhã. Quando mudamos a rotina, as amizades são a melhor forma de parar”, definiu.

Tráfico e consumo desafiam autoridades

Os pontos de uso de crack em Belo Horizonte se misturam às “bocas” de venda da droga. Em torno delas os usuários se reúnem durante todo o dia, sem distinção de horário. E consomem a pedra em grupos ou sozinhos, sem se preocupar com a passagem de carros e pedestres.

A Pedreira Prado Lopes se tornou um ponto de atração de dependentes pela concentração da droga. Na Rua Araribá, nas imediações, dezenas de usuários se espalham pela calçada. Sujos, a maioria anda em trapos, pois só conserva consigo coisas que não têm qualquer valor para a venda. O resto vira moeda para a pedra. O consumo é intenso e o cachimbo passa de mão em mão.

Apesar de tudo isso ocorrer à luz do dia, inclusive diante de câmeras do sistema público de videomonitoramento, o consumo transcorre livremente, e naturalmente a pedra não “brota” nesses espaços. Por eles transitam com certa tranquilidade traficantes, que passam a droga a todo instante para um público consumidor ávido pelo próximo trago.

Um desafio para as ações da Polícia Militar. De acordo com o major Flávio Santiago, chefe da Sala de Imprensa da corporação, a PM tem feito ações de orientação, de condução de usuários pegos em flagrante e também de traficantes. “A PM tem agido em frentes importantes de trabalho. Primeiro, a prevenção, na essência com o Programa Educacional de Resistência a Drogas (Proerd), que tem mais de 3 milhões de jovens formados. O segundo ponto importante é o combate ao tráfico de forma sistemática. Por semana, uma tonelada de drogas é apreendida”, explicou.


ENXUGAR GELO Segundo o major, na maioria das vezes, os usuários presos em flagrante consumindo a droga são encaminhados à delegacia, mas acabam sendo soltos e voltando para os mesmos locais. “Nos últimos cinco anos, a PM vai mantendo a condução, apesar do fato de o usuário não ficar preso. Mas, pelos efeitos da fissura, eles se envolvem muito em roubos e furtos”, afirma. Mas o militar chama a atenção para a necessidade de interação com outros órgãos, de assistência social e saúde pública, para enfrentar o problema.

Sobre os locais de consumo em BH, o major reconhece que os usuários se reúnem próximo a pontos onde a oferta de droga é maior. “Eles tangenciam alguns aglomerados, pela proximidade com alguns pontos onde há tráfico. Nesses pontos, como a Lagoinha e as proximidades da Pedreira Prado Lopes, fazemos vários conduções. Mas precisamos de outras ações que não são da polícia, como acompanhamento, redução de danos, acolhimento, monitoramento, entre outros”, completou.

Palavra de especialista
Robson Sávio, cientista social, integrante do Núcleo de Estudos Sociopolíticos da Pontifícia Universidade Católica (PUC Minas) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

A lógica dos grupos e a maquiagem da cidade
“O número de usuários de crack no país é muito grande. Essas pessoas se aglomeram para a manutenção do próprio vício e porque se sentem mais seguras juntas, já que, se o grupo é muito pequeno, está mais vulnerável à repressão policial. Portanto, dispersá-los da cracolândia só vai espalhá-los pela cidade. A estratégia adotada pelo prefeito João Doria de São Paulo de ‘dispersar’ os usuários de crack é uma tática antiga, usada em todo o mundo desde o século 18. A ideia é ter uma cidade ‘limpa’, ou seja, retirar tudo o que incomoda. Hoje, o que incomoda é o usuário de droga, o pedinte, o morador de rua, mas, principalmente, o usuário de crack. Doria aplicou a estratégia característica de pessoas que pensam na cidade como um berço para a classe média. Trata-se de uma medida totalmente ineficiente, que não soluciona o problema da desigualdade, apenas tenta mascará-lo. A presença desses dependentes de crack nas ruas evidencia um problema social e não um problema de segurança pública.”











Fonte: Estado de Minas

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