quinta-feira, 25 de setembro de 2014

"Sexo e as negas” : reforça os estereótipos sobre a mulher negra?

Mesmo antes de estrear em uma das emissoras de televisão comerciais mais poderosas da América Latina, a brasileira Rede Globo, no último dia 16 de setembro, a série "Sexo e as negas” já começou a gerar uma ampla repercussão negativa entre os movimentos sociais e pela igualdade racial.

Isso porque o programa televisivo estaria reforçando a arraigada e preconceituosa forma como os meios de comunicação de massa retratam a mulher negra brasileira, baseando-se em estereótipos de hipersexualização, racismo, machismo e marginalização social.

Militantes do Coletivo Nacional de Juventude Negra (Enegrecer) Moara Correa e Bruna Rocha assinam um artigo no qual ressaltam que não se trata de questão moral, mas, sim, de reconhecer a mulher negra como parte da sociedade brasileira em seus mais diversos aspectos, distanciando-se de construções historicamente opressoras. Elas iniciam pelo título, em que a expressão "as nêgas” soaria como fala de senhores de engenho referentes às escravas que estupravam diariamente no período colonial do país — prática atualizada no assédio de patrões e seus filhos às empregadas domésticas, a maioria negras.

"Esse fato, pelo menos no Brasil, é também responsável direto pelos discursos construídos em torno do corpo da mulher negra no imaginário social brasileiro — fenômeno o qual chamamos de sexualização”, apontam as articulistas. "O discurso da sexualização é a base simbólica para diversas formas de violência sofridas pelas mulheres negras. É o nosso corpo colocado a partir do ponto de vista dos homens brancos, reproduzido por homens negros e toda a sociedade”, acrescentam.


Para elas, enquanto mulheres brancas têm sua sexualidade castrada e imaculada, o corpo negro, construído como "maculado, quente e pecaminoso”, seria bode expiatório de toda a libido violenta, machista e racista, universalizada através da mídia e de suas megaproduções. Além disso, apontam uma tentativa midiática de cooptação desse segmento social em recente ascensão econômica, sendo audiência de forte interesse comercial para a Globo. "Mesmo sendo uma ascensão ainda muito lenta, a população negra passou a ser uma parte relevante do público consumidor de ‘produtos culturais’”, indica.

Em entrevista ao Portal Fórum, a feminista negra Aline Djokic, que é estudante de Literatura Portuguesa e Espanhola e de Pedagogia na Universidade de Hamburgo, na Alemanha, avalia que a população feminina negra é retratada a partir de uma visão exterior, de maneira recorrente. "Até quando a branquitude brasileira vai falar por nós? Até quando a nossa sociedade racial ‘igualitária’ vai se contentar com a visão que a branquitude tem de nós e dos espaços que a exclusão social previu para nós?”, questiona.


As "Blogueiras negras”, comunidade virtual que difunde textos sobre negritude e feminismo, em contraponto à série global, criou o programa chamado #AsNegaReal, disponível na Internet e que pretende discutir "Sexo e as negas”. No primeiro vídeo, publicado no último dia 06 de setembro, a feminista Gabi Porfírio, mestranda em Linguagens pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e especialista em Língua Portuguesa, articulista do "Blogueiras negras”, afirma que a série reforça pelo menos três estereótipos: associação do negro à pobreza, a hipersexualização da mulher negra e associação da mulher negra a empregos mal remunerados e informais.

"Na série, que se pretende uma paródia de ‘Sex and the city’ [série estadunidense protagonizada por atrizes brancas na década passada], nenhuma das quatro protagonistas é colunista, relações públicas, advogada ou comerciante de arte de classe média alta [como ocorre na série dos EUA]”, avalia. "A hashtag #AsNegaReal não rejeita que mulheres negras moradoras de comunidades — camareiras, costureiras, operárias, cozinheiras — não sejam reais. A gente sabe que a mulher negra está na base da pirâmide social. Mas, além disso, nós também somos advogadas, professoras, jornalistas, arquitetas. E a gente quer mostrar que a realidade da mulher negra vai além”, acrescenta.

Para Djamila Ribeiro, mestre em Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), articulista do Blogueiras negras e da revista Carta Capital, a série representa uma violência simbólica, reduzindo a mulher negra a uma única possibilidade. "Nós, como seres humanos, como pessoas complexas, temos diversas possibilidades de existência. Mas esse racismo à brasileira teima em nos reduzir sempre a essa condição de objeto — não fomos colocadas na categoria de pessoas, ainda”, afirma, no vídeo #AsNegaReal.

"Nossas meninas estão crescendo num país em que a mulher negra não é bem representada. Como as meninas negras vão ter uma imagem positiva de si mesmas se, neste país, a gente é sempre colocada nesse papel?”, questiona Djamila.

Em entrevista à Adital, Aby Rodrigues, membro do Instituto Negra do Ceará (Inegra) — organização social de mulheres negras, que promove valores étnicos, políticos, sociais e culturais das populações negras —, destaca que a programação preocupa, especialmente, quando se sabe que muitas gerações são formadas na frente da TV, sendo esse grande espaço de difusão de valores e sentidos.

Para ela, não só a Rede Globo, como a mídia comercial brasileira como um todo, amplia o espaço de mídia ao segmento, considerado o mais novo nicho de mercado, mas não muda o discurso. "É uma estratégia que vê o sujeito na visão do capital, não como pessoa humana. Não acredito que haja um esforço de adentrar as minorias no seu cotidiano real. Ainda é cheio de caricaturas; um destaque sempre no âmbito do exótico”, analisa.


O programa já foi motivo de três denúncias de racismo feitas à Ouvidoria da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, vinculada à Presidência da República. A Secretaria afirma que está avaliando as queixas e pode pedir providências à emissora. Além disso, organizações sociais, especialmente do movimento negro e de mulheres, realizam na Internet campanhas de crítica e boicote à nova produção.

Fonte: Adital

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