terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Padre Libânio, o teólogo mineiro que 'comia pelas beiradas'

Perguntado por que a sua teologia, até então, não fora denunciada e nem condenada pelo ex-Santo Ofício, Libanio deu uma resposta ao mesmo tempo magistral, simples, jocosa e irônica: “É porque sou um teólogo mineiro e faço teologia sempre comendo pelas beiradas!”... Ao fazer sua análise, ia denunciando situações e estilos de Igreja marcados pelo autoritarismo, pelo culto à personalidade, pela busca da superficialidade revelada no colorido das vestes clericais e nas cerimônias pomposas.


Por José Lisboa Moreira de Oliveira*

Fui surpreendido pela notícia da morte do teólogo jesuíta brasileiro João Batista Libanio. Mesmo aos 81 anos, estava na ativa e tinha ainda muito a nos oferecer. Mas a dinâmica da vida é assim e cada um de nós terá a sua hora de passar deste mundo para o seio do Pai. Morrer para transcender é o nosso destino, é a nossa vocação.

No início de setembro de 1999. Libanio fez uma palestra durante o 1º Congresso Vocacional, realizado na Vila Kostka no Bairro de Itaici, no município de Indaiatuba (SP). Local muito conhecido, uma vez que nesta casa dos jesuítas foram realizadas inúmeras assembleias dos bispos do Brasil e produzidos os melhores documentos do nosso episcopado. Nesta palestra Libanio falou dos cenários da Igreja e o conteúdo de sua fala foi depois transformado em livro publicado por Edições Loyola (1999). Após a palestra, perguntado por que a sua teologia, até então, não fora denunciada e nem condenada pelo ex-Santo Ofício, Libanio deu uma resposta ao mesmo tempo magistral, simples, jocosa e irônica: “É porque sou um teólogo mineiro e faço teologia sempre comendo pelas beiradas!”.

Com certeza Libanio tinha o seu jeito próprio de dizer as coisas e que, nesta ocasião, ele atribuiu ao fato de ser mineiro. Porém, o que mais me chamava a atenção neste teólogo eram a sua lucidez e sua capacidade de ler atentamente os sinais dos tempos. Seria impossível num breve artigo apresentar estas suas características, mas me arrisco a mencionar alguns exemplos, tirados de seus livros ou de palestras que assisti.

Começo com o diagnóstico eclesial que ele fez no livro A volta à grande disciplina, publicado em 1983, cinco anos depois do início do pontificado de João Paulo II. Neste texto Libanio alertava para um retrocesso que estava se instaurando dentro da Igreja e, no seu jeito mineiro de escrever, mostrava os riscos de tal retrocesso. Para fundamentar a sua análise ele fazia uma resenha do que significou uma Igreja organizada no estilo tridentino, detalhando os fracassos e as crises pelas quais ela passou. Fracassos e crises que só foram superados com a chegada do Concílio Vaticano II. Libanio salientava sobretudo a incapacidade desse modelo de Igreja de dialogar com a humanidade e de propor a Boa Notícia, ou seja, o Evangelho. A Igreja dos anátemas, das excomunhões, do Santo Ofício, do índice de livros proibidos, da condenação da liberdade e da fidelidade à própria consciência, das fogueiras para queimar hereges não conseguiu dar conta da sua missão e chegou à época do Concílio Vaticano II num verdadeiro impasse.

Libanio foi preciso no seu diagnóstico. Vimos no que deu esse retrocesso e esse recuo da Igreja Católica Romana nos últimos trinta e cinco anos. Lembrou-nos recentemente o papa Francisco na exortação apostólica Evangelii Gaudium: cristãos “que parecem ter escolhido viver uma Quaresma sem Páscoa” (nº 6) e se apresentam constantemente com “cara de funeral” (nº 10). Portanto, cristãos fixados em rigorismos, em normas rígidas e em leis, incapazes de comunicar a alegria do seguimento de Jesus. Além de viverem em permanente Quaresma e com cara de quem está em velório, estes cristãos agiram como “controladores da graça divina” (nº 47) e espantaram as pessoas das comunidades católicas e as forçaram a migrar para outros espaços. De modo particular as pessoas portadoras de senso crítico e que não mais aceitavam um modelo de Igreja esclerosado.

Outro texto emblemático da lucidez e da sensibilidade aos sinais dos tempos, típicas de Libanio, foi o já mencionado estudo sobre os cenários da Igreja. Lembro-me bem da palestra pronunciada por ele no âmbito do 1º Congresso Vocacional do Brasil em setembro de 1999. Libanio traçou o perfil do contexto eclesial daquele final de milênio, apresentando os diversos cenários de Igreja que se visibilizavam naquele momento. Analisou com objetividade o comportamento das diferentes forças dominantes no interior de cada cenário, oferecendo elementos bastantes críticos para uma avaliação teológico-pastoral de cada cenário. Na edição mais recente do livro (julho de 2009) acrescentou um quinto cenário que ele chamou de “igreja plural fragmentada pós-moderna”.

Esta análise da realidade eclesial foi muito significativa num momento em que se mantinha a ilusão de uma Igreja compacta, uniformizada, caminhando sob o pulso firme de João Paulo II. Libanio, com sua análise, foi “comendo pelas beiradas” e jogando farinha no ventilador dos ilustres guardiões da “alfândega eclesiástica” (papa Francisco), revelando uma Igreja esfacelada, que fugia do controle destes ilustres senhores. Ao fazer sua análise, ia denunciando situações e estilos de Igreja marcados pelo autoritarismo, pelo culto à personalidade, pela busca da superficialidade revelada no colorido das vestes clericais e nas cerimônias pomposas. Não deixou de expressar sua preferência pelos cenários da pregação e da libertação, que ele considerava mais evangélicos e mais desejáveis. Com realismo dizia que as análises que ele fazia deveriam ajudar “a elaborar as estratégias de resistência, caso triunfe um cenário adverso. Ou a organizar as próprias forças vitoriosas” (2009, p. 14).

Fui testemunha de outro exemplo de lucidez e de capacidade de ler os sinais dos tempos por parte de Libanio. Por ocasião dos 50 anos da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB) organizou-se, no início da década passada, um Seminário em Belo Horizonte (MG), na Casa de Encontros Santíssima Trindade. Libanio refletiu sobre a conjuntura eclesial daquele momento. Alguns frades e freiras presentes manifestaram certo entusiasmo com o crescimento de grupos e comunidades de vida, ligados a movimentos, e expressavam certo desencanto pela diminuição do número de religiosos e de religiosas em suas congregações. Libanio, novamente “comendo pelas beiradas”, lembrou que a refundação tão discutida pela vida religiosa no final do segundo milênio teria que ser efetivada. Mas insistiu em que se evitasse certa empolgação barata com as novas comunidades, pois, segundo ele, citando, se não me engano, a socióloga da religião francesa Danièle Hervieu-Léger, muitas dessas comunidades funcionavam como verdadeiros “ônibus circulares”, com gente entrando e saindo de forma permanente. Por não terem início consistente e rumo bem definido poderiam terminar em nada. Os escândalos recentes envolvendo alguns desses grupos, especialmente seus fundadores, comprovam que Libanio enxergava longe.

Poderíamos multiplicar os exemplos, mas estes são suficientes para provar que Libanio, no seu jeito mineiro de fazer teologia, sabia ler com lucidez e precisão os sinais dos tempos. E essa sua competência e perspicácia eram derivadas de uma sólida espiritualidade e da sua inserção no meio do povo. Prova disso é o fato de que, mesmo sendo um grande teólogo, com uma vastíssima produção, Libanio sempre encontrou tempo para estar no meio do povo. Ao morrer ainda era pároco de uma comunidade em Belo Horizonte. Libanio não foi teólogo de corte e nem de escrivaninha. Ele, na sua missão de refletir sobre a fé, soube assumir “a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo” (Papa Francisco. Evangelii Gaudium, nº 24). Libanio escreveu de forma magistral sobre as realidades últimas da vida humana, a escatologia. Estou convencido de que, a partir do momento de sua morte, ele se encontra plenamente transfigurado, ressuscitado, no seio da Trindade.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos
*José Lisboa Moreira de Oliveira é filósofo, teólogo, escritor, conferencista e professor universitário.


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