segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Todo dia é dia da criança

Elaine Tavares
Dois homens, os quais amo muito, disseram coisas muito semelhantes sobre a criança. Um deles foi Jesus. Ao verem o mestre, numa de suas paradas, entre os caminhos poeirentos das estradas da Palestina, ser rodeado pelos pequenos barulhentos, os seus companheiros decidiram enxotá-los, acreditando que era isso que Jesus desejava. Mas, o Rabi fez foi enxotar os apóstolos. "Deixai vir a mim as criancinhas, porque é delas o reino do meu pai”. Daquela cena fala Lucas, em seu evangelho: "O reino de Deus é dos que se parecem com as crianças. O que não receber o reino como uma criança, não entrará nele”, ( Lucas.18:15).

 Bem mais tarde, Nietzsche, na Alemanha, vai oferecer ao mundo sua visão de super-homem. Para ele, o super-homem é, justamente, a criança. No seu lindo livro "Assim falava Zaratustra”, Friedrich diz: "Dizei-me irmãos: que poderá a criança fazer de que o próprio leão tenha sido incapaz? Para que será preciso que o altivo leão tenha de se mudar ainda em criança?” A resposta é a chave para a idéia de super-homem. Diz Zaratustra que a criança é a inocência, o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira sobre si. "Para jogar o jogo dos criadores é preciso ser uma santa afirmação. O espírito quer agora a sua própria vontade, tendo perdido o mundo, conquista seu próprio mundo”.
 A criança não sabe das maldades do mundo, não foi domesticada pela sociedade onde está inserida. Nela não há bem, nem mal, apenas o viver, a descoberta. A surpreendente descoberta de um dedo que se move, de um pé, de coisas que a rodeiam e sobre as quais ela nada sabe. É por isso que um bebê pode sorrir diante de um lobo, ele não sabe do mal, está cheio de encantamento pela vida que passeia diante de seus olhos. É isso que o profeta Zaratustra, de Nietzsche, vem dizer quando propõe a "terceira transformação”. Nenhum mal, nenhum bem, só esse encantamento, esse brilho no olhar, essa sede de descobrir.
É na criança que se vê, inteira, a coragem, a nobreza, a aceitação da diferença, a força que desloca para frente, destemida. Percebe-se aqui o amor imenso de Nietzsche pelo ideal pré-socrático. A criança de Nietzsche é um pouco o herói homérico, guerreiro que vai para a luta pensando em nada. Só a vontade de lutar o impulsiona e, se sai vivo da batalha, celebra a vida que continua. Nem bem, nem mal.
Por isso, esses homens tão desiguais se encontram em mim, porque também acredito que é preciso que a gente nunca perca de vista a criança em nós. Porque só assim entraremos no "reino” (a vida boa e bonita), porque só assim nos tornaremos aquele que podendo fazer tudo, só faz o que é nobre (o super-homem).
 Nesses dias que antecedem o dia da criança observei muitas coisas estranhas. Na internet rolou um movimento de colocar desenhos para denunciar a violência contra a criança, e coisas do tipo. Acredito que isso pode ser válido, mas não é suficiente. A violência contra as crianças começa dentro da gente. Todo o drama da violência que vimos expressado cotidianamente nos programas televisivos de desgraças e nas páginas policiais é fruto da ação de adultos que perderam sua criancice. Seja pela desgraça da miséria e da dor que pode ter sido tão grande que os endureceu, seja pela violência de um sistema que tem por premissa básica o lema: para que um viva, outro tem de morrer.
Fonte: alainet.org

Quando vejo por aí essas caminhadas pela paz, ou esses movimento virtuais, isso me desconforta. Não basta pedir paz aos "bandidos”. Essas criaturas que andam pelos caminhos roubando e matando não são sensíveis a isso. Elas querem é ver mudanças concretas nas suas vidas. Por que raios dariam paz a uma classe que as oprime e destrói? E aí o círculo da violência segue girando.

O concreto da luta pela paz é a mudança real de cada ser humano. Viver como criança, sentir como criança, brincar como criança, amar como criança. Gratuidade, alegria, partilha. Caminhar nessa beleza é o primeiro passo. Depois, já impregnados dessa ternura infantil, a gente sai para a vida, para mudar o mundo. No partido, no sindicato, no movimento, na luta real, concreta, nas estradas secundárias. Mudar o sistema, o modo de organizar a vida. Atuar no sentido de tornar todos crianças, capazes da nobreza, do bem-viver.

Nestes dias em que a televisão ideologiza e bestifica a infância induzindo ao consumo desenfreado, eu busco Jesus e Nietzsche, esses meus amigos, para tentar soprar algum segredo mágico nos ouvidos que sabem ouvir: ouvidos de criança.

Assim, quem sabe, em vez de comprar presentes de plástico, a gente não sai por aí dando cambalhota, pulando amarelinha, brincado de esconde-esconde, cantando cantigas de roda, passando rasteira nos vilões do amor? Precisamos ser crianças, todos nós... Só assim, quem sabe, essa coisa egoísta e fútil que se tornou o mundo, começa a mudar.

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