A Anistia Internacional
apresentou uma nova resolução para descriminalizar o comércio sexual
consensual. A proposta foi acolhida por reações diversas. Muitos dos debates da
Anistia Internacional sobre a proposta de proteção dos direitos humanos de
trabalhadores sexuais não tiveram a participação dos principais interessados.
Alguns grupos de mulheres,
colunistas e personalidades, dentre elas Lena Dunham, Meryl Streep e Kate Winslet,
se posicionaram contra a proposta e assinaram uma petição, argumentando que a
descriminalização permitiria que traficantes de pessoas e cafetões ficassem
impunes. Outros usaram as redes sociais para expressar apoio, surpresa e
revolta. Acredita-se que as pessoas que expressaram revolta não têm
envolvimento com trabalho sexual e que seu posicionamento seja influenciado por
crenças morais. Esse posicionamento causou a ira de trabalhadores sexuais.
A despeito das negativas, a
Anistia Internacional aprovou a adoção da resolução durante sua última Reunião
do Conselho Internacional em Dublin, na terça-feira, por defender firmemente a
crença — baseada em pesquisas conclusivas — de que o modelo de redução de
riscos é a melhor alternativa para proteger os direitos de mulheres e homens
envolvidos com comércio sexual consensual.
A Vocativ falou com uma
ex-acompanhante que trabalhou por cinco anos na França, na Alemanha e nos
Estados Unidos para ouvir a opinião dela sobre a proposta. Karen Hodes, que
decidiu usar um nome fictício, é atualmente uma representante do Sex Workers
Outreach Project (Projeto de Inclusão dos Trabalhadores Sexuais), uma
organização de direitos humanos que advoga em defesa dos trabalhadores sexuais.
Qual foi sua reação ao saber que
a Anistia Internacional estava discutindo uma proposta de descriminalização do
trabalho sexual?
Fiquei animada porque a Anistia
Internacional tem ampla base de apoio entre liberais moderados, principalmente,
de liberais moderados interessados em direitos humanos. O fato que essa
entidade de direitos humanos tão renomada apoiaria a segurança e o bem estar
das pessoas envolvidas no trabalho sexual me deixou extremamente feliz. Eu
estava olhando a correspondência e o tio do meu namorado havia recebido uma
carta com a vela da Anistia Internacional. Esse tio do meu namorado é um
cinqüentão típico que apóia o discurso político da corrente principal, um pouco
liberal e um pouco conservador — só de pensar que pessoas com perfil similar ao
dele seriam expostas a isso é fenomenal!
Por que você acha que algumas
pessoas, em alguns casos celebridades, são contra a proposta?
Acredito que exista uma campanha
muito forte e amplamente financiada que dissemina informações errôneas. Eles
usam estudos e relatórios distorcidos que transformam a prostituição e o
tráfico de pessoas no mesmo problema. Se você só é exposto a esse discurso e
fica sabendo que a Anistia está prestes a apoiar direitos para cafetões e
homens que pagam por sexo, você vai pensar “Claro que vou rejeitar essa proposta”.
Além das pessoas que se encaixam no grupo descrito acima, há outras que não têm
o mínimo conhecimento de como a indústria do sexo funciona e há também quem
seja muito bem de vida e só seja capaz de ver os casos de exploração sexual. As
pessoas não sabem como a indústria funciona, nunca tiveram uma situação
econômica em que não pudessem fazer escolhas. Então, eles dizem “Pare de se
prostituir – para pessoas que ganhariam um salário de fome e se matariam de
trabalhar se tivessem um emprego fora da indústria do sexo. É muita falta de
informação, é analisar o trabalho sexual sob a perspectiva de uma pessoa
financeiramente privilegiada que desconhece as nuances e diferenças.
Parece que as pessoas que têm uma
reação imediata contra a proposta possivelmente não leram a resolução. O que a
Anistia está propondo?
Na verdade, a Anistia apresenta
uma proposta bem ampla e completa. Ela apóia a descriminalização, é contra a
estigmatização dos trabalhadores sexuais e apóia a criação de iniciativas
voluntárias e não-coercitivas direcionadas a pessoas que querem abandonar o
trabalho sexual. Além disso, a Anistia apóia melhorias mais amplas e
sistemáticas para grupos que possam sofrer pressão para iniciar trabalho sexual
— combatendo a discriminação contra mulheres transgênero e grupos de
imigrantes. Por fim, a Anistia também apóia a descriminalização como melhor
política para proteger os direitos humanos das pessoas envolvidas no trabalho
sexual.
As coisas não vai ficar mais
fáceis para traficantes de trabalhadores sexuais?
De jeito nenhum! Muitas
organizações e redes importantes contra o tráfico de pessoas se pronunciaram em
apoio à proposta da Anistia: a Global Alliance Against Traffic in Women
(Aliança Global contra o Tráfico de Mulheres), a La Strada International, que é
a principal rede contra o tráfico de seres humanos da Europa, e a New York
Anti-Trafficking Network (Rede contra o Tráfico de Seres Humanos de Nova
Iorque). Essas instituições também afirmaram que a criminalização empurra os
problemas para debaixo do tapete. Segundo essas organizações, criminalizar os
clientes faz com que eles deixem de denunciar situações de tráfico humano. Na
verdade, a criminalização aumenta o tráfico de pessoas e muitas entidades
importantes contra o tráfico já deixaram isso claro. A falta de informação
coloca os direitos das vítimas de tráfico de pessoas contra os direitos humanos
dos trabalhadores sexuais. Esse conflito simplesmente não existe.
A Anistia Internacional defende a
descriminalização do trabalho sexual. Você poderia explicar a diferença entre
legalização e descriminalização?
A legalização significa que o
trabalho sexual seria lícito em contextos muito específicos. Em Nevada, nos
EUA, o trabalho sexual é uma atividade legalizada através de bordéis
registrados ou de outros locais onde o trabalho sexual é permitido se você for
certificado. A descriminalização, no entanto, significa a revogação de todas as
leis criminais relacionadas à prostituição e ao trabalho sexual e, em algumas
situações, estimula grupos de trabalhadores sexuais a criar leis de regulação
da atividade, leis civis em detrimento de leis criminais, para promover
direitos trabalhistas e de acesso à saúde.
Como isso funciona na vida real?
A legalização criminaliza os
tipos de trabalhos sexuais que pessoas mais vulneráveis e passíveis de sofrer
violência ou exploração podem vir a desempenhar, como a prostituição de rua,
por exemplo. Geralmente, os regimentos jurídicos criminalizam trabalhadores
sexuais estrangeiros. Isso é um problema sério, principalmente, em lugares como
a Alemanha e a França, onde cerca de 70 a 80 por cento dos trabalhadores
sexuais são imigrantes. Apesar de o trabalho sexual ser “entre aspas”
legalizado nesses países, 80 por cento das pessoas que trabalham nesses
mercados exercem a atividade ilegalmente. Eu diria que a legalização enquanto
sistema regulatório mantém a discriminação de trabalhadores sexuais que atuam
nas ruas, de trabalhadores do sexo imigrantes e de pessoas que não se encaixam
nos requisitos da legislação. No final das contas, isso é muito problemático
porque, mais uma vez, os grupos de pessoas mais vulneráveis continuam sendo
criminalizados. Todos os problemas associados com a criminalização continuam a existir
para as pessoas mais vulneráveis ao tráfico humano, à violência, à infecção por
HIV, e tudo mais.
Que tipo de impacto a
descriminalização teria nos trabalhadores do sexo?
Considerando minhas experiências
em lugares legalizados em contraste com os EUA – não experimentei a
descriminalização, porém a legalização é melhor que a criminalização – a
principal diferença é que encontrar bons lugares para trabalhar com boa
administração é muito mais fácil na Europa. Eu trabalhei para agências de
acompanhantes e tive experiências ótimas! Na Alemanha, principalmente, existe
até mesmo centros de trabalho para trabalhadores do sexo onde você pode entrar
e perguntar “Vocês poderiam me dar dicas de locais para trabalhar ou onde eu
posso trabalhar?” Você não pode fazer isso nos EUA. Mesmo as instituições
voltadas à redução de danos e riscos e que se propõem a ajudar trabalhadores do
sexo estariam cometendo crimes graves em alguns estados americanos se eles
recomendassem bons locais para o trabalho sexual. Não há informação alguma!
Além disso, o tipo de pessoa que assume cargo de gerência na Europa é bem
diferente do perfil das pessoas que acabam assumindo esses cargos nos EUA. A
criminalização faz com que pessoas obedientes às leis ou ciosas de suas
obrigações perante a justiça deixem de assumir cargos que possam trazer riscos
legais.
Como as coisas funcionam nos EUA?
Ouço histórias horríveis de
pessoas que estão trabalhando para agências que tiveram experiências muito
ruins: cortes salariais – a agência fica com no mínimo 50 por cento, os agentes
não avaliam os clientes direito, os donos de agências passam dos limites em
termos sexuais e emocionais, forçando trabalhadores a aceitarem clientes ou a
participar de atividades que eles não queriam. Tudo isso acontece mais nesse
contexto, em que o trabalho sexual é criminalizado porque não fica claro quais
agências são boas ou ruins.
Alguns defensores da proposta
dizem que o projeto ajudará a proteger trabalhadores do sexo do assédio e abuso
policial.
Há ótimos exemplos em que a
polícia atua como parceira dos trabalhadores sexuais em contextos de
descriminalização ou de legalização, como o Ugly Mugs scheme, (Cadastro de
Babacas Escrotos) uma iniciativa do Reino Unido em que trabalhadores sociais, a
polícia e as comunidades de trabalhadores do sexo podem trabalhar em parceria
para divulgar informações sobre atendimentos ruins [clientes potencialmente
perigosos]. Uma iniciativa louvável — isso jamais seria feito nos EUA.
O que acontece se um trabalhador
do sexo chamar a polícia nos EUA? Qual é a reação da polícia?
Uma amiga muito íntima estava
sendo perseguida e assediada. Ela ligou para a polícia e eles disseram que
seria muito difícil provar que o homem estava perseguindo ou assediando ela,
mas que seria muito fácil provar que ela estava fazendo algo ilegal; portanto,
ela deveria desistir da queixa. Esse é apenas um exemplo. Outros exemplos: se
as pessoas ligam para a polícia, se as pessoas têm filhos e são divorciadas do
pai das crianças, quaisquer documentos provando envolvimento com trabalho
sexual podem ser usados em disputas pela guarda das crianças; isso já
aconteceu. Conheço pessoas na Costa Leste que foram presas algumas vezes, que
já trocaram favores sexuais para evitar a detenção ou que transaram com um
policial e foram presas em seguida.
Você já teve alguma experiência
com a polícia?
A criminalização permite que o
criminoso finja ser um braço da lei. Minha única experiência ruim no mercado de
trabalho sexual aconteceu quando não avaliei bem um cliente novo. Aquela pessoa
apareceu no meu apartamento e, após o atendimento, pegou o dinheiro de volta e
disse “Sou policial. É melhor você não reclamar de nada” e saiu da minha casa.
Depois desse incidente, ele ficou me mandando mensagens SMS com o seguinte tom
“Olha, só quero avisar que a delegacia de polícia da região sabe o que você
faz. Acho que você deveria parar”. Nem sei se ele era policial mesmo, mas
aquela situação me deixou muito assustada. Qualquer estuprador pode se passar
por policial para violar alguém. Um incidente similar aconteceu recentemente na
minha cidade. Um cara apareceu no apartamento de alguém e disse “Sou policial.
Você está presa.” Ela foi algemada e estuprada por ele e mais três homens. Ele
não era policial, porém a criminalização do trabalho sexual abre espaço para
que esse tipo de coisa aconteça.
Agora que a Anistia ratificou o
compromisso de defender a proposta, quais são as chances de que ela seja
realmente implementada?
Temos uma batalha longa e difícil
pela frente. Os trabalhadores do sexo e as instituições que defendem nossos
direitos precisarão fazer um grande esforço para que a proposta seja
implementada. Não vejo isso como uma realidade nos EUA nos próximos 15 anos,
talvez com muito trabalho seja possível que isso se torne uma realidade lá
daqui a 20 ou 25 anos. Vejo essa proposta como um recurso de defesa poderoso…
que fará com que leis prejudiciais a trabalhadores do sexo não sejam
implementadas e, que, no final das contas, ajudará a trazer mudanças nas
políticas que beneficiarão as comunidades de trabalhadores do sexo.
Fonte: http://www.mundoinvisivel.org/
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