A TV, e particularmente as novelas,
não inventam comportamentos e valores, mas reproduzem os que lhes convém focar.
E, com isso, amplificam o seu alcance – transformando-os em moda ou contribuem
fortemente para a sua naturalização e multiplicação na cultura.
Por Rachel Moreno
Não deve ser fácil escrever uma
novela.
Além de todo o talento necessário
à empreita, há que se garantir a audiência da emissora que bancar o projeto.
Para isso, alguns capítulos estão
prontos na estreia e, depois de acompanhar o índice de audiência, fazem-se
pesquisas qualitativas.
Grupos representando a
diversidade da audiência são convidados por um instituto a dar a sua opinião
sobre a novela, as situações mais relevantes, as personagens. E, baseado na
análise dessas avaliações, o/a autor/a dá mais, ou menos espaço a determinados
temas e personagens.
Babilônia, novela de Gilberto
Braga, Ricardo Linhares e João Ximenes Braga das nove horas da TV Globo acabou
recentemente.
Ousada em algumas de suas
propostas, onde a diversidade a orientação sexual existente e reconhecida
culturalmente e que, inclusive pode contabilizar algumas vitórias (como o reconhecimento
da união homoafetiva, a possibilidade de adoção de crianças), foi uma dessas
“ousadias”.
Ousadia, entenda-se bem, não
porque a novela propusesse nada de novo – afinal, refletia a nova aceitação de
uma diversidade maior de tendências em nossa sociedade – mas provavelmente
porque, com a migração de um segmento de telespectadores – particularmente os
jovens, habitualmente mais abertos às novidades e talvez menos preconceituosos
– para a internet, deixando frente à tela da TV um segmento de mais idade e
mais conservador.
Afinal, a grande mídia não
inventa valores e situações, mas reflete – talvez de forma bastante seletiva,
segundo os seus critérios e valores – o comportamento (ou, melhor dizendo,
alguns dos comportamentos) que percebe na sociedade. Que ela seleciona,
desterritorializa, resignifica e termina por transformar em moda.
E foi justamente o que os autores
apresentaram no primeiro capítulo, com personagens vilãs (Gloria Pires e
Adriana Esteves) com excelente performance e um beijo carinhoso entre as
lésbicas vividas por Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg.
Além disso, tivemos cenas de
violência doméstica e assassinato. Com direito a filha esbofeteando mãe, e
filho ameaçando pai, a audiência foi despencando.
E, como aponta Nilson Xavier, em
matéria publicada no dia 28/08/2015 , para piorar, a mocinha, vivida por Camila
Pitanga, ganhou a pecha de chata e a antipatia do público.
“Uma ala mais conservadora da
sociedade”, que aliás se manifestou em vários momentos e episódios políticos
recentes (como na derrota da inclusão de questões de gênero, em diversos Planos
Municipais de Educação, que propunha a discussão crítica das diversas formas de
preconceito na escola, para desnaturalizá-las) iniciou uma campanha
anti-Babilônia.
Como resultado, os autores
mudaram uma série de aspectos e perfil de personagens da novela.
A grande vilã Beatriz (Glória Pires), uma mulher fria e calculista,
ávida por sexo e poder, se revelou uma romântica boboca ao se apaixonar pelo
nadador Diogo (Thiago Martins), num romance pouco crível. Alice (Sophie
Charlotte) e sua mãe Inês (Adriana Esteves), que se odiavam, se reconciliaram e
viraram melhores amigas da noite para o dia. Alice, que era para ser uma
prostituta de luxo, se tornou uma mocinha chorosa. O cafetão Murilo (Bruno
Gagliasso) só não perdeu a função na novela porque, nas últimas semanas, os
autores o pegaram para ser a vítima do “quem matou”. O romance entre Alice e
Evandro (Cássio Gabus Mendes), meloso e forçado, foi outra mudança drástica, já
que ele havia sido apresentado como um machista mau caráter no início. Ficou
claro o foco nos romances para tentar fisgar o telespectador. Os autores também
investiram mais no humor do triângulo cômico (mas pouco engraçado) envolvendo
Norberto, Valeska e Clóvis (Marcos Veras, Juliana Alves eIgor Angelkorte). E
diminuíram o foco nos personagens gays. O romance estre as lésbicas, que
prometia ser uma abordagem interessante, praticamente sumiu da história, sem
mais beijos. Outro personagem descaracterizado foi Carlos Alberto (Marcos
Pasquim), que seria um gay enrustido de caso com Ivan (Marcello Melo Jr.), mas
que acabou envolvendo-se com Regina.
Mas todas as concessões feitas à opinião pública do segmento mais
conservador da audiência à telenovela, além de descaracterizar, apresentaram
mudanças de alguma forma artificiais, que nem a tornaram mais palatável, nem
reapresentaram as propostas mais inovadoras numa embalagem mais aceitável.
No fim, com finais felizes para
todos os casais e punição das principais vilãs Inês (Adriana Esteves) e Beatriz
(Gloria Pires) jogadas de um precipício, embora dando uma audiência mais razoável
(32,2 pontos), não a salvaram do despencamento de 18 pontos com relação ao
final da última novela (Império).
A FUNÇÃO SOCIAL DA MÍDIA
A TV, e particularmente as
novelas, não inventam comportamentos e valores, mas reproduzem os que lhes
convém focar. E, com isso, amplificam o seu alcance – transformando-os em moda
ou contribuem fortemente para a sua naturalização e multiplicação na cultura.
Assim, numa cena que foi ao ar no
dia 26/08, a mando de Beatriz (Gloria Pires), Osvaldo (Werner Schünemann) vai
sequestrar a advogada Inês (Adriana Esteves), e levá-la até o alto do morro
Babilônia, onde ele vai torturá-la para que ela deixe a presidência da
construtora Souza Rangel. Osvaldo coloca a advogada dentro de uma pilha de
pneus, em que joga gasolina e ameaçar atear fogo.
Uma conversa flagrada num bar de
São Paulo, numa mesa grande onde as pessoas prestaram atenção ao capítulo da
novela que a TV exibia, pode-se perceber o efeito imediato desta cena –
aprovação, e votos de que as duas personagens femininas que ousaram se beijar,
merecessem destino igual.
É precisamente isso que cansamos
de apontar, quando falamos da influência na cultura, e na formação da
subjetividade da população, pelo conteúdo da mídia.
Tudo bem que este procedimento
não foi inventado pela Globo, nem pelos autores da novela, que reproduziram uma
cena de violência que deve ter ocorrido em algum lugar do país, e que lhes
pareceu forte o bastante para, quem sabe, resgatar a audiência nos capítulos
finais.
Mas, mais do que a audiência de
uma novela, cabe pensar no que deveria ser (mas infelizmente não é) a função e
responsabilidade social da mídia – e, particularmente, quando falamos de uma
mídia de massas, que também é uma concessão pública.
A novela terminou, e não há
resgate possível, nela, com relação ao episódio em questão. Mas também não
podemos deixá-lo passar em branco e, no mínimo, alertar os autores de novela,
os decisores da mídia, e as autoridades governamentais, sobre o prejuízo que
esta inconsequência pode trazer para a nossa sociedade, naturalizando assim
mais este episódio de violência de gênero, e de violência em geral.
Ainda mais num tempo em que
parece estar se legitimando o “fazer a justiça com as próprias mãos”, como relatado
em dois episódios recentes, cobertos pela mídia.
No primeiro, a população agarra
um moleque que roubou algo do supermercado, amarra o menino num poste, e bate
nele até matá-lo, em São Luiz do Maranhão
(http://extra.globo.com/casos-de-policia/assaltante-amarrado-em-poste-espancado-ate-morte-por-pedestres-em-sao-luis-16686215.html).
E, mais recentemente, um final trágico similar teria sido corajosamente sustado
pela intervenção de Joel Rufino, historiador, que impede o linchamento de um
ladrão, ensanguentado, que levava porrada de saradões, mulheres, velhos, em
Copacabana, no sábado passado, enquanto um policial civil armado assistia a
tudo sem se meter. (Mamapress, no site Geledés – fonte:
http://joelrufinodossantos.com.br/paginas/biografia.asp)
Precisamos veicular este nosso
alerta. E, mais do que isso, precisamos de uma manifestação impactante dos
órgão que combatem a violência de gênero, que traçam políticas públicas de
interesse das mulheres, e que, ao menos teoricamente, podem inclusive impactar em
algum alerta institucional a ser encaminhado à Globo, com repercussão pública,
para que tais situações não se repitam e, se possível, tenham algum espaço de
resgate, de modo a contrabalançar o seu efeito nocivo.
Fonte: Agência Patrícia Galvão
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