Nunca houve tantas pessoas no mundo em situação de escravidão. Não há
nação inocente: se uma vende, outra compra. A rota do tráfico é a da grana, ou
seja, das regiões pobres do planeta para as ricas. O pano de fundo de tudo isso
é o processo injusto de concentração de riqueza. Temos que desmanchar tabus se
quisermos enfrentar a situação.
Em audiência pública realizada
nesta quarta-feira (2), a OAB Nacional apresentou a grave situação do tráfico
de pessoas e órgãos, problema que atinge principalmente populações mais
vulneráveis e pobres. O evento reuniu especialistas no assunto para debater as
principais dificuldades no enfrentamento deste crime e propor soluções.
A primeira etapa da audiência,
que lotou o Salão Nobre da entidade, apresentou casos concretos em várias
frentes. Segundo o presidente da Comissão Nacional de Direitos Sociais da OAB,
Nilton Correia, este é um tema que agride as pessoas, mas é necessário
enfrentá-lo.
“O tráfico de pessoas torna o ser
humano um produto em mercado sem dignidade, valores éticos e afeto, provocado
por sistema que só produz pobreza e fragilidade. Temos que atuar para acabar
com isso”, afirmou.
O advogado defendeu a necessidade
de maior participação social no combate a este tipo de crime e sugeriu até
mesmo que o Exame de Ordem passe a abordar o tema em suas questões, engajando
futuros profissionais nesta luta já no início de suas carreiras.
Depois de Correia, o evento
contou com a participação da jornalista Priscila Siqueira, que acompanha o
assunto há mais de 20 anos. Ela apresentou dados sobre o tráfico de mulheres e
garotas no Brasil. Segundo a pesquisadora, o país, juntamente com a Colômbia, é
o maior exportador das Américas de meninas para a indústria do sexo. A maioria
das vítimas tem entre 13 e 25 anos, são afrodescendentes e baixa escolaridade.
“Nunca houve tantas pessoas no
mundo em situação de escravidão. Não há nação inocente: se uma vende, outra
compra. A rota do tráfico é a da grana, ou seja, das regiões pobres do planeta
para as ricas. O pano de fundo de tudo isso é o processo injusto de
concentração de riqueza. Temos que desmanchar tabus se quisermos enfrentar a
situação”, alertou.
Promotora do Ministério Público
de São Paulo, Eliana Vendramini apresentou as dificuldades de reconhecer e de
punir o tráfico interno de pessoas, pois o tipo penal pode variar em cada caso,
muitas vezes faltando leis específicas para o crime.
O traficante de pessoas, de
acordo com a especialista, é alguém sedutor, muitas vezes difícil de ser
identificado. A operação também é dividida, tornando o diagnóstico complexo.
Outro problema é o julgamento social das vítimas, muitas vezes vista como
alguém que “merece” o que está passando.
“Apesar de não estar previsto na
lei penal, é comum presumir que o tráfico tem de ter violência ou grave ameaça.
O crime, na verdade, é traficar, sendo essas condições agravantes. Precisamos
mudar nosso olhar sobre a situação. Enquanto isso não ocorrer, vamos deixar os
traficantes passarem a passos largos”, asseverou.
O advogado Barry Michael Wolfe
discorreu sobre o problema do tráfico de travestis e transexuais, tanto
internamente quanto para o exterior. Segundo o especialista da ONG SOS
Dignidade, essa modalidade é diferente das mulheres, pois, geralmente, não
existe coação ou outros tipos de ameaça. Há um tipo de “consenso”, apesar de
vários outros crimes estarem envolvidos.
“Muitas pessoas trans vivem em
submundo com violência, sem sonhos e esperanças, apenas ir para a Europa
trabalhar com prostituição. São vulneráveis a ofertas mascaradas como
oportunidades, se expondo a, por exemplo, servidão por dívida, financiamento a
juros altos para transformação do corpo, drogas e ameaças constantes. A solução
para o problema é o trabalho de prevenção para que não haja esse ‘consenso’”,
explica.
Também jornalista, Natália Suzuki
fechou a primeira parte da audiência pública. Coordenadora do projeto Escravo
Nem Pensar!, a especialista apresentou casos emblemáticos de escravidão moderna
no Brasil, diferenciando a prática do tráfico de pessoas. Os casos foram nas
indústrias têxtil, pecuária e de construção civil.
“Houve melhora no debate público
do tema no Brasil. Temos um plano nacional de enfrentamento do problema, o que
é uma grande conquista. No entanto, os casos ainda são muito frequentes, com as
mesmas características. Nos últimos 20 anos, 49 mil pessoas foram libertadas no
país”, esclareceu.
De acordo com Natália, os casos
de trabalho escravo apresentam em comum as etapas do aliciamento, com
adiantamento de valores, fraude e exploração de vulnerabilidade. Depois, há o
deslocamento, envolvendo muitas vezes rapto, migração e contrabando. Por fim, a
exploração, com dívidas ilegais, coação e a retenção de documentos.
Fonte: OAB
Nenhum comentário:
Postar um comentário