Alaa Murabit, jovem médica e
ativista em prol da paz e dos direitos das mulheres
Alaa Murabit é ativista em vários
processos para a implementação da paz e para a mediação de conflitos. Sua
família foi do Canadá para a Líbia quando ela tinha 15 anos. Nascida e criada
num ambiente familiar muçulmano no qual ela era igual a seus irmãos, para ela
foi uma experiência chocante perceber a maneira como as mulheres eram
consideradas e tratadas na sua nova terra. Alaa se inscreveu numa faculdade de
medicina, mas logo se sentiu frustrada devido a discriminação de gênero que
experimentou .
Alaa Murabit em poucos anos de
ativismo feminista tornou-se uma líder no mundo islâmico.
Quando ela cursava o quinto ano
da faculdade, aconteceu a revolução na Líbia. Alaa se sentiu revigorada ao
perceber que as mulheres logo passaram a tomar decisões e a exercerem funções
de comando no interior do movimento. Ela fundou então o grupo The Voice of
Libyan Women (VLW) focado na discussão dos desafios das normas culturais e
sociais vigentes. Muitos programas desenvolvidos pela VLW – como a Noor
Campaign, que usa ensinamentos islâmicos para combater a violência contra as
mulheres – foram replicados internacionalmente.
Alaa Murabit é agora conselheira
de várias organizações, inclusive da Women Global Civil Society Advisory Group,
da ONU, e da Harvard’s Everywoman Everywhere Coalition.
Vídeo:
No meu caminho até aqui, o
passageiro ao meu lado e eu tivemos uma conversa interessante durante o voo.
Ele me disse: “Parece que os EUA estão ficando sem empregos, porque estão
inventando alguns: psicólogo de gatos, encantador de cães, caçador de
tornados.”
Alguns momentos depois, ele me
perguntou: “E o que você faz?”
E eu pensei: “Pacificadora?”
Eu trabalho todos os dias para
amplificar as vozes das mulheres e ressaltar suas experiências e participação
em processos de paz e resolução de conflitos. E devido ao meu trabalho, entendi
que a única maneira de assegurar a participação de mulheres, globalmente, é
envolvendo a religião.
Essa questão é vitalmente
importante para mim. Como uma jovem mulher muçulmana, tenho muito orgulho da
minha fé. Ela me dá a força e convicção para trabalhar todos os dias. É o
motivo de eu estar aqui na frente de vocês. Mas não posso negligenciar todo o
estrago que foi feito em nome da religião, não só da minha, mas de todas as
maiores religiões do mundo. A deturpação, uso indevido e manipulação das
escrituras religiosas influenciou nossas normas sociais e culturais, nossas
leis, nosso dia a dia, até um ponto em que nós mesmos deixamos de
reconhecê-las.
Meu pais se mudaram da Líbia, na
África do Norte, para o Canadá no início dos anos 1980. E eu sou a filha do
meio de 11 irmãos. Sim, 11! Durante meu crescimento, vi meus pais, ambos
devotos da religião e pessoas espirituais, rezarem e agradecerem à Deus por
suas bênçãos, obviamente eu, mas também outras. Eles eram bondosos, engraçados
e pacientes, com uma paciência ilimitada, do tipo que ter 11 filhos te força a
ter. E eles eram justos. Eu nunca fui submetida à religião sob qualquer lente
cultural. Eu era tratada como todos, e o mesmo era esperado de mim. Nunca me
ensinaram que Deus julga as pessoas de acordo com o gênero. E o entendimento de
meus pais sobre Deus, como um amigo misericordioso e benéfico e pai, moldou a
maneira pela qual eu via o mundo.
E, é claro, minha educação teve
outros benefícios adicionais. Ser uma de 11 irmãos é como a Diplomacia 101. Até
hoje, me perguntam em qual escola eu estudei como: “Você estudou na Escola
Kennedy?” e respondo: “Não, estudei na Escola de Assuntos Internacionais
Murabit.” É extremamente exclusiva. Você precisaria conversar com minha mãe
para entrar. Sorte a sua que ela está aqui. Mas ser uma de 11 filhos e ter 10 irmãos
te ensina muito sobre estruturas de poder e alianças. Te ensina a ter foco: a
falar mais rápido ou menos porque você sempre será cortado. Te ensina a
importância de passar a mensagem, a fazer perguntas da maneira correta para
conseguir as respostas que deseja, e você precisa dizer não da maneira correta
para manter a paz.
Mas a lição mais importante que
aprendi durante meu crescimento foi a importância de estar à mesa. Quando a
luminária favorita da minha mãe quebrou, precisei estar lá quando ela tentou
descobrir como e quem foi, porque eu tinha que me defender. Se você não estiver
lá, o dedo será apontado para você. E antes que você saiba, já estará de
castigo. Não estou falando por experiência própria, claro.
Quando eu tinha 15 anos, em 2005,
completei o ensino médio e me mudei do Canadá – Saskatoon – para Zawiya, a
cidade natal de meus pais na Líbia, uma cidade muito tradicional. Eu só havia
ido para a Líbia antes em minhas férias, e, para uma menina de 7 anos, era
mágico! Sorvete, viagens para a praia e parentes muito entusiasmados.
Então descobri que não era o
mesmo para uma jovem de 15 anos. Muito rapidamente fui apresentada ao aspecto
cultural da religião. As palavras “haram” – que significa proibido pela
religião – e “aib” – que significa culturalmente inapropriado – eram trocadas
sem nenhum cuidado, como se elas significassem a mesma coisa, e tivessem as
mesmas consequências. E me encontrei em debates com vários colegas de turma,
professores, amigos e até mesmo parentes, que começaram a questionar o meu
papel e minhas próprias aspirações. E mesmo com a base que meus pais me deram,
acabei questionando o papel da mulher em minha religião.
Na Escola de Assuntos
Internacionais Murabit, nós fazemos debates intensos, e a primeira regra é fazer
sua pesquisa. Então foi o que eu fiz, e me surpreendeu como foi fácil encontrar
mulheres da minha religião que foram líderes, que foram inovadoras, que foram
fortes na política, na economia e até mesmo nas forças armadas. Kadija
financiou o movimento islâmico durante o seu crescimento. Nós não estaríamos
aqui, se não fosse por ela. Então por que não estávamos escutando sobre ela?
Por que não ouvimos nada sobre essas mulheres? Por que as mulheres estão sendo
relegadas a posições anteriores aos ensinamentos de nossa fé? E por que, se
somos iguais aos olhos de Deus, não somos iguais aos olhos dos homens?
Para mim, tudo se resume às
lições que aprendi quando criança. A pessoa que toma as decisões, aquela que
deve passar a mensagem, está sentada à mesa, e infelizmente, em cada uma das
religiões do mundo, elas não são mulheres. Instituições religiosas são
dominadas por homens, e lideradas por homens, e eles criam políticas à sua
semelhança. E até que possamos mudar o sistema totalmente, não podemos ter
esperanças reais de ter plena participação econômica e política das mulheres.
Nossa base está falida. Minha mãe diz que não se pode construir uma casa reta
se a base está torta.
Em 2011, a Revolução Líbia
eclodiu, e minha família estava na linha de frente. E uma coisa incrível
acontece durante os combates, quase uma mudança cultural, muito temporária. E
foi a primeira vez que senti que meu envolvimento não era apenas aceito, mas
encorajado. Era exigido. Eu e outras mulheres tínhamos um lugar à mesa. Não
estávamos de mãos dadas, nem éramos intermediárias. Nós éramos parte da tomada
de decisão. Compartilhávamos informações. Éramos cruciais. E eu queria e
necessitava que essa mudança fosse permanente.
Acontece que isso não é tão
fácil. Em poucas semanas, as mulheres que trabalharam comigo estavam voltando a
seus papéis habituais, e a maioria delas era guiada por palavras de
encorajamento de líderes religiosos e políticos, a maioria dos quais citava as
escrituras religiosas em sua defesa. É assim que conseguem apoio popular sobre
suas opiniões.
Inicialmente, foquei o
empoderamento político e econômico de mulheres. Eu achei que isso levaria a uma
mudança cultural e social. Acontece que isso gera uma pequena mudança, mas não
grande. Eu decidi usar a defesa deles como minha ofensiva, e comecei a também
citar e destacar as escrituras Islâmicas.
Em 2012 e 2013, minha organização
liderou a maior e mais difundida campanha na Líbia. Nós fomos a casas, a
escolas, a universidades e até a mesquitas. Nós conversamos diretamente com 50
mil pessoas, e centenas de milhares mais através de letreiros e comerciais na
TV, comerciais na rádio e cartazes.
Vocês devem estar se questionando
como uma ONG de direitos da mulher conseguiu isso em comunidades que
anteriormente se opuseram à nossa simples existência. Eu usei as escrituras
religiosas. Usei versos do Alcorão e falas do Profeta, “Hadiths” – falas que
são, por exemplo, “O melhor de você é o melhor para a sua família”. “Não deixe
seus irmãos oprimirem uns aos outros.” Pela primeira vez, os sermões de sexta,
feitos pelos imãs das comunidades, promoveram os direitos das mulheres. Eles
discutiram assuntos tabu, como a violência doméstica. Políticas foram
alteradas. Em algumas comunidades, tivemos que chegar ao ponto de dizer que os
princípios da Declaração Internacional dos Direitos Humanos, aos quais se
opunham por não terem sido escritos por estudiosos da religião, estão no nosso
livro. Então, a ONU apenas nos copiou.
Mudando a mensagem, pudemos criar
uma nova narrativa que promovia o direito das mulheres na Líbia, e que agora já
foi replicada internacionalmente, E não estou dizendo que é fácil, podem
acreditar, não é. Liberais vão dizer que você está usando religião e vão te
chamar de conservador. Conservadores vão te chamar de várias coisas coloridas.
Eu já ouvi de tudo, desde: “Seus pais devem estar envergonhados de você”,
errado, eles são meus maiores fãs, até: “Você não viverá até o seu próximo
aniversário”, errado novamente, porque eu vivi. E eu continuo crendo que
direitos das mulheres e religião não são mutualmente excludentes. Mas nós
precisamos estar à mesa. Temos que parar de desistir da nossa posição, porque
continuando em silêncio nós permitimos que a perseguição e o abuso de mulheres
no mundo todo continue. Quando dizemos que vamos lutar pelos direitos das mulheres
e lutamos contra o extremismo com bombas e guerras, nós incapacitamos as
comunidades locais, que precisam abordar estas questões, para que elas sejam
sustentáveis.
Não é fácil lutar contra as
distorções das mensagens religiosas. Você terá uma boa dose de insultos,
ridicularizações e ameaças. Mas nós precisamos fazê-lo. Não temos outra opção a
não ser evocar a mensagem dos direitos humanos, os princípios da nossa fé, não
por nós, nem pelas mulheres de nossas famílias, nem pelas mulheres dessa sala, nem
mesmo pelas mulheres lá fora, mas pelas sociedades que seriam transformadas com
a participação das mulheres. E a única maneira de fazermos isso, nossa única
opção, é estando e permanecendo à mesa.
Obrigada.
Fonte: Brasil 247
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