sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Feminismo muçulmano. O que o Islã realmente diz sobre as mulheres

Alaa Murabit, jovem médica e ativista em prol da paz e dos direitos das mulheres
 Jovem médica e ativista de causas humanitárias, sobretudo as que lutam pelos direitos das mulheres no mundo islâmico, Alaa Murabit explica como tem alcançado resultados tão bons: Usando os próprios ensinamentos de igualdade de gênero contidos no islamismo original.


Alaa Murabit é ativista em vários processos para a implementação da paz e para a mediação de conflitos. Sua família foi do Canadá para a Líbia quando ela tinha 15 anos. Nascida e criada num ambiente familiar muçulmano no qual ela era igual a seus irmãos, para ela foi uma experiência chocante perceber a maneira como as mulheres eram consideradas e tratadas na sua nova terra. Alaa se inscreveu numa faculdade de medicina, mas logo se sentiu frustrada devido a discriminação de gênero que experimentou .
Alaa Murabit em poucos anos de ativismo feminista tornou-se uma líder no mundo islâmico.


Quando ela cursava o quinto ano da faculdade, aconteceu a revolução na Líbia. Alaa se sentiu revigorada ao perceber que as mulheres logo passaram a tomar decisões e a exercerem funções de comando no interior do movimento. Ela fundou então o grupo The Voice of Libyan Women (VLW) focado na discussão dos desafios das normas culturais e sociais vigentes. Muitos programas desenvolvidos pela VLW – como a Noor Campaign, que usa ensinamentos islâmicos para combater a violência contra as mulheres – foram replicados internacionalmente.

Alaa Murabit é agora conselheira de várias organizações, inclusive da Women Global Civil Society Advisory Group, da ONU, e da Harvard’s Everywoman Everywhere Coalition.

Vídeo:


 Tradução integral da palestra de Alaa Murabit no TED Mulher:

No meu caminho até aqui, o passageiro ao meu lado e eu tivemos uma conversa interessante durante o voo. Ele me disse: “Parece que os EUA estão ficando sem empregos, porque estão inventando alguns: psicólogo de gatos, encantador de cães, caçador de tornados.”
Alguns momentos depois, ele me perguntou: “E o que você faz?”
E eu pensei: “Pacificadora?”
Eu trabalho todos os dias para amplificar as vozes das mulheres e ressaltar suas experiências e participação em processos de paz e resolução de conflitos. E devido ao meu trabalho, entendi que a única maneira de assegurar a participação de mulheres, globalmente, é envolvendo a religião.

Essa questão é vitalmente importante para mim. Como uma jovem mulher muçulmana, tenho muito orgulho da minha fé. Ela me dá a força e convicção para trabalhar todos os dias. É o motivo de eu estar aqui na frente de vocês. Mas não posso negligenciar todo o estrago que foi feito em nome da religião, não só da minha, mas de todas as maiores religiões do mundo. A deturpação, uso indevido e manipulação das escrituras religiosas influenciou nossas normas sociais e culturais, nossas leis, nosso dia a dia, até um ponto em que nós mesmos deixamos de reconhecê-las.

Meu pais se mudaram da Líbia, na África do Norte, para o Canadá no início dos anos 1980. E eu sou a filha do meio de 11 irmãos. Sim, 11! Durante meu crescimento, vi meus pais, ambos devotos da religião e pessoas espirituais, rezarem e agradecerem à Deus por suas bênçãos, obviamente eu, mas também outras. Eles eram bondosos, engraçados e pacientes, com uma paciência ilimitada, do tipo que ter 11 filhos te força a ter. E eles eram justos. Eu nunca fui submetida à religião sob qualquer lente cultural. Eu era tratada como todos, e o mesmo era esperado de mim. Nunca me ensinaram que Deus julga as pessoas de acordo com o gênero. E o entendimento de meus pais sobre Deus, como um amigo misericordioso e benéfico e pai, moldou a maneira pela qual eu via o mundo.
E, é claro, minha educação teve outros benefícios adicionais. Ser uma de 11 irmãos é como a Diplomacia 101. Até hoje, me perguntam em qual escola eu estudei como: “Você estudou na Escola Kennedy?” e respondo: “Não, estudei na Escola de Assuntos Internacionais Murabit.” É extremamente exclusiva. Você precisaria conversar com minha mãe para entrar. Sorte a sua que ela está aqui. Mas ser uma de 11 filhos e ter 10 irmãos te ensina muito sobre estruturas de poder e alianças. Te ensina a ter foco: a falar mais rápido ou menos porque você sempre será cortado. Te ensina a importância de passar a mensagem, a fazer perguntas da maneira correta para conseguir as respostas que deseja, e você precisa dizer não da maneira correta para manter a paz.


Mas a lição mais importante que aprendi durante meu crescimento foi a importância de estar à mesa. Quando a luminária favorita da minha mãe quebrou, precisei estar lá quando ela tentou descobrir como e quem foi, porque eu tinha que me defender. Se você não estiver lá, o dedo será apontado para você. E antes que você saiba, já estará de castigo. Não estou falando por experiência própria, claro.
Quando eu tinha 15 anos, em 2005, completei o ensino médio e me mudei do Canadá – Saskatoon – para Zawiya, a cidade natal de meus pais na Líbia, uma cidade muito tradicional. Eu só havia ido para a Líbia antes em minhas férias, e, para uma menina de 7 anos, era mágico! Sorvete, viagens para a praia e parentes muito entusiasmados.

Então descobri que não era o mesmo para uma jovem de 15 anos. Muito rapidamente fui apresentada ao aspecto cultural da religião. As palavras “haram” – que significa proibido pela religião – e “aib” – que significa culturalmente inapropriado – eram trocadas sem nenhum cuidado, como se elas significassem a mesma coisa, e tivessem as mesmas consequências. E me encontrei em debates com vários colegas de turma, professores, amigos e até mesmo parentes, que começaram a questionar o meu papel e minhas próprias aspirações. E mesmo com a base que meus pais me deram, acabei questionando o papel da mulher em minha religião.
Na Escola de Assuntos Internacionais Murabit, nós fazemos debates intensos, e a primeira regra é fazer sua pesquisa. Então foi o que eu fiz, e me surpreendeu como foi fácil encontrar mulheres da minha religião que foram líderes, que foram inovadoras, que foram fortes na política, na economia e até mesmo nas forças armadas. Kadija financiou o movimento islâmico durante o seu crescimento. Nós não estaríamos aqui, se não fosse por ela. Então por que não estávamos escutando sobre ela? Por que não ouvimos nada sobre essas mulheres? Por que as mulheres estão sendo relegadas a posições anteriores aos ensinamentos de nossa fé? E por que, se somos iguais aos olhos de Deus, não somos iguais aos olhos dos homens?
Para mim, tudo se resume às lições que aprendi quando criança. A pessoa que toma as decisões, aquela que deve passar a mensagem, está sentada à mesa, e infelizmente, em cada uma das religiões do mundo, elas não são mulheres. Instituições religiosas são dominadas por homens, e lideradas por homens, e eles criam políticas à sua semelhança. E até que possamos mudar o sistema totalmente, não podemos ter esperanças reais de ter plena participação econômica e política das mulheres. Nossa base está falida. Minha mãe diz que não se pode construir uma casa reta se a base está torta.
Em 2011, a Revolução Líbia eclodiu, e minha família estava na linha de frente. E uma coisa incrível acontece durante os combates, quase uma mudança cultural, muito temporária. E foi a primeira vez que senti que meu envolvimento não era apenas aceito, mas encorajado. Era exigido. Eu e outras mulheres tínhamos um lugar à mesa. Não estávamos de mãos dadas, nem éramos intermediárias. Nós éramos parte da tomada de decisão. Compartilhávamos informações. Éramos cruciais. E eu queria e necessitava que essa mudança fosse permanente.

Acontece que isso não é tão fácil. Em poucas semanas, as mulheres que trabalharam comigo estavam voltando a seus papéis habituais, e a maioria delas era guiada por palavras de encorajamento de líderes religiosos e políticos, a maioria dos quais citava as escrituras religiosas em sua defesa. É assim que conseguem apoio popular sobre suas opiniões.
Inicialmente, foquei o empoderamento político e econômico de mulheres. Eu achei que isso levaria a uma mudança cultural e social. Acontece que isso gera uma pequena mudança, mas não grande. Eu decidi usar a defesa deles como minha ofensiva, e comecei a também citar e destacar as escrituras Islâmicas.
Em 2012 e 2013, minha organização liderou a maior e mais difundida campanha na Líbia. Nós fomos a casas, a escolas, a universidades e até a mesquitas. Nós conversamos diretamente com 50 mil pessoas, e centenas de milhares mais através de letreiros e comerciais na TV, comerciais na rádio e cartazes.
Vocês devem estar se questionando como uma ONG de direitos da mulher conseguiu isso em comunidades que anteriormente se opuseram à nossa simples existência. Eu usei as escrituras religiosas. Usei versos do Alcorão e falas do Profeta, “Hadiths” – falas que são, por exemplo, “O melhor de você é o melhor para a sua família”. “Não deixe seus irmãos oprimirem uns aos outros.” Pela primeira vez, os sermões de sexta, feitos pelos imãs das comunidades, promoveram os direitos das mulheres. Eles discutiram assuntos tabu, como a violência doméstica. Políticas foram alteradas. Em algumas comunidades, tivemos que chegar ao ponto de dizer que os princípios da Declaração Internacional dos Direitos Humanos, aos quais se opunham por não terem sido escritos por estudiosos da religião, estão no nosso livro. Então, a ONU apenas nos copiou.
Mudando a mensagem, pudemos criar uma nova narrativa que promovia o direito das mulheres na Líbia, e que agora já foi replicada internacionalmente, E não estou dizendo que é fácil, podem acreditar, não é. Liberais vão dizer que você está usando religião e vão te chamar de conservador. Conservadores vão te chamar de várias coisas coloridas. Eu já ouvi de tudo, desde: “Seus pais devem estar envergonhados de você”, errado, eles são meus maiores fãs, até: “Você não viverá até o seu próximo aniversário”, errado novamente, porque eu vivi. E eu continuo crendo que direitos das mulheres e religião não são mutualmente excludentes. Mas nós precisamos estar à mesa. Temos que parar de desistir da nossa posição, porque continuando em silêncio nós permitimos que a perseguição e o abuso de mulheres no mundo todo continue. Quando dizemos que vamos lutar pelos direitos das mulheres e lutamos contra o extremismo com bombas e guerras, nós incapacitamos as comunidades locais, que precisam abordar estas questões, para que elas sejam sustentáveis.
Não é fácil lutar contra as distorções das mensagens religiosas. Você terá uma boa dose de insultos, ridicularizações e ameaças. Mas nós precisamos fazê-lo. Não temos outra opção a não ser evocar a mensagem dos direitos humanos, os princípios da nossa fé, não por nós, nem pelas mulheres de nossas famílias, nem pelas mulheres dessa sala, nem mesmo pelas mulheres lá fora, mas pelas sociedades que seriam transformadas com a participação das mulheres. E a única maneira de fazermos isso, nossa única opção, é estando e permanecendo à mesa.
Obrigada.


Fonte: Brasil 247

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