Valeryah Rodriguez, vítima de
violência doméstica durante quatro anos. / VICTOR MORIYAMA
Lei quer acabar com "dupla
vulnerabilidade" das pessoas transgêneras vítimas de violência.
Em 2011, a juíza Ana Cláudia
Veloso Magalhães, à época da 1ª Vara Criminal de Anápolis, em Goiás, tinha em
mãos um caso de violência doméstica. O processo se referia a uma transexual
agredida pelo ex-companheiro, que tentava afastá-lo de suas investidas.
Magalhães se deparou com a falta de amparo legal para um caso do gênero. Por
isso, recorreu à lei Maria da Penha, de proteção às mulheres e aplicou a
legislação, criada em 2006. “O artigo é claro quando diz que tanto homens como
mulheres são iguais. Não pode haver qualquer tipo de discriminação”, manifestou-se
à época a juíza. “Independentemente de
sua classe social, de sua raça, de sua orientação sexual, renda, cultura, nível
educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à
pessoa humana", descreveu na sentença, que proibiu o ex-companheiro de se
aproximar da vítima.
Assim como no caso de Anápolis,
alguns juízes no Brasil passaram a aplicar a Lei Maria da Penha em casos de
violência doméstica que envolvem transexuais ou travestis, por reconhecer a
vulnerabilidade das vítimas e entender que a legislação não se aplica apenas às
mulheres cisgênero, termo adotado para descrever as mulheres que se identificam
com o gênero que lhes é atribuído em seu nascimento, ao contrário das trans.
Um projeto de lei tenta deixar a
legislação mais clara a favor da igualdade. Apresentado em outubro de 2014 pela
deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), o PL 8032/2014 prevê a aplicação da Lei
Maria da Penha "às pessoas transexuais e transgêneros que se identifiquem
como mulheres”. No último dia 17 de agosto, o texto obteve sua primeira
vitória: a deputada Professora Dorinha Seabra Rezende (DEM-TO), relatora da
proposta na Comissão de Direitos Humanos, votou pela sua aprovação. Mas embora
o projeto tramite com certa velocidade, ainda há algumas pedras no caminho até
a sua aprovação, considerando o caráter ultraconservador da atual legislatura,
que tem imposto derrotas expressivas a pautas progressistas.
"O quadro é muito adverso
para esse tipo de pauta na Câmara hoje. Mas trata-se de uma proposta que
corrige uma limitação da lei. É uma questão de amparar vítimas de violência,
então estamos trabalhando muito para que ela passe", disse a deputada
Jandira, ao EL PAÍS.
Não faltam argumentos para
embasar a proposta. Um deles é o de que a inclusão dos termos transexuais e
transgêneros não só ampliaria o direito das vítimas à proteção familiar, como
ajudaria a diminuir o preconceito que muitas pessoas relatam sofrer nas
delegacias quando procuram ajuda, embora a orientação da polícia seja pelo seu
atendimento irrestrito.
"Recebemos muitas denúncias
de pessoas que não foram atendidas adequadamente [nas delegacias], sejam
relatos de recusa do atendimento ou da recusa de tratá-las pelo nome que não o
de registro. A lei Maria da Penha já fala em gênero, mas talvez uma
clarificação mais específica ajude nesse sentido, por não deixar o tema tão
aberto a interpretações", avalia Vanessa Vieira, coordenadora do Núcleo de
Combate à Discriminação, Racismo e Preconceito da Defensoria Pública de São
Paulo, que desde agosto busca formalmente informações com a polícia do Estado
sobre o atendimento às pessoas trans. Para Larissa Barone, acadêmica de Direito
e ativista feminista, autora do estudo sobre mulheres transexuais e a lei Maria
da Penha, a inclusão dos termos na lei ajudaria a pôr fim à situação de
"dupla vulnerabilidade" que se encontram as vítimas de violência
doméstica dessa comunidade.
A travesti Valeryah Rodriguez, de
35 anos, conhece bem essa realidade. Embora nunca tenha sido vítima de um crime
de ódio, como ocorre com tantas outras travestis e transexuais alvo de
preconceito, foi agredida com socos e pontapés, espancada com uma panela de
ferro e atingida com um botijão de gás pelo ex-companheiro, com quem conviveu
por 10 anos. Nos quatro anos finais do relacionamento amoroso, pensou várias
vezes que não sobreviveria aos espancamentos. Registrou oito boletins de
ocorrência, mas não levou nenhum dos processos adiante, por temer pela vida do
ex-marido, de quem sentia pena. "A violência que eu nunca sofri na rua eu
sofri com o meu marido", diz.
Valeryah diz ter sido
"maravilhosamente" atendida todas as vezes que procurou socorro em
uma delegacia de Caieiras (município da Grande São Paulo), onde acabou se
tornando conhecida. Mas nem sempre foi assim. Antes de encontrar amparo neste
local, ela conta já ter sido alvo de deboche de policiais que, acionados para
socorrê-la em sua casa, a ridicularizaram ao notarem que se tratava de uma
travesti - pouco importando o fato de estar ferida e desesperada. Valeryah
sobreviveu aos espancamentos e se separou do seu agressor. Hoje, é uma das
beneficiadas pelo programa Transcidadania, da Prefeitura de São Paulo, e recebe
uma bolsa de estudos para completar o ensino fundamental. Sonha um dia se
tornar assistente social.
Procurada pela reportagem, a
Secretaria de Políticas para as Mulheres, do Governo Federal, disse por meio de
nota ser favorável à aplicação da Lei Maria da Penha para transexuais e
transgêneros, endossando o projeto de lei em tramitação. "Quando a lei
menciona que a proteção deve ser dada às mulheres, não restringe sua aplicação
às mulheres cisgêneros, isto é, aquelas que se identificam com o gênero que lhe
fora atribuído no momento de seu nascimento. É possível, portanto, que a Lei
Maria da Penha seja aplicada para a proteção das mulheres transexuais e
transgêneros".
Fonte: El Pais
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