Nenhum garoto nasce com ganas de
violar. O comportamento não pode ser atribuído à natureza masculina, ao
instinto primitivo, à força da biologia. Ou todos os homens, sem exceção,
estuprariam. Um estuprador é fabricado.
Vi isso, mais uma vez, ao escrever a
reportagem “Estupro na Faculdade”, publicada na edição de setembro de CLAUDIA.
O texto mostra que nas melhores universidades brasileiras os alunos estupram
suas colegas como parte da vida recreativa estudantil. E as instituições fingem
não ver o “abatedouro” de mulheres funcionando em suas dependências. Fingiam. O
escândalo atingiu primeiro a Universidade de São Paulo (USP), a mais influente
instituição de ensino superior da América Latina, onde alunas da tradicional
Faculdade de Medicina denunciaram abusos, de que foram vítimas, em festas
ocorridas às barbas da diretoria. Uma CPI instalada na Assembleia Legislativa
de São Paulo apurou esses casos e ainda racismo e homofobia praticados também
na Unesp, Unicamp, nos campi da USP de Ribeirão Preto e Pirassununga, e ainda
na PUC de São Paulo e de Campinas. Dividi o trabalho de apuração com a brava
repórter Gabriela Abreu e chegamos a vítimas na Universidade Federal do Ceará,
Federal de São Carlos e a estudantes de Brasília e de Seropédica (RJ), que
admitiram a existência do crime na UnB e na Rural do Rio de Janeiro.
Mas, em termos de requinte, a USP
lidera no ranking da desumanidade, tendo a Faculdade de Medicina na proa. Pelo
menos são os históricos mais visíveis, uma vez que as apurações avançaram da
CPI para a Justiça, com dez casos de estupro em fase de investigação, dois já
com réus respondendo a processos criminais.
Com quantos paus se faz um
estuprador acadêmico? Estendemos essa inquietação ao reitor da USP, Marco
Antonio Zago. A assessoria de imprensa havia dito que ele preferia responder
por e-mail. Perguntamos a Zago: “Ao que o senhor associa a ocorrência de
estupros na comunidade acadêmica? Em tese, não seria nesse ambiente – no qual
os homens têm maior acesso à educação, à informação sobre saúde física e
emocional e também sobre direitos – que deveria haver maior respeito às
mulheres?” E a assessoria, então, respondeu: “O reitor prefere não se
manifestar sobre esse assunto”. Zago havia se recusado, antes, a informar
quantos casos estavam sendo apurados em sindicâncias internas, o número de
alunos punidos e os tipos de sanção. A aura de impunidade sempre contribuiu com
a modelagem do caráter do macho-livre-para-voar.
Como disse o filósofo Sérgio
Barbosa – com quem concordo plenamente – os alunos da USP, em especial os da
medicina, se veem sob uma soma de prestígio: são homens, dominantes, foram
aprovados no mais difícil vestibular do país, estão próximos de mentes
brilhantes, de grandes descobertas da ciência nacional. E por isso se sentem
acima da lei, da ética, do respeito. Podem subjugar o “ser inferior”. Ou o
imediatamente abaixo deles: a colega mulher.
Pesa na elaboração da cultura, o
macho que se espelha no outro macho para se tornar ainda mais macho. São
comuns, segundo os relatos ouvidos pela CPI e pelo Ministério Público Paulista,
as rodas da vanglória – uma fórmula carcomida de constituir masculinidade. Os
futuros médicos se juntam para contabilizar quantas comeram, pela frente e pelo
ânus. E para medir o tamanho da lista de mulheres que eles conseguiram apagar
num único evento etílico – proibidos na instituição depois do fuzuê público
causado pelas denúncias. Apagar de verdade. Pelo menos dois brutos admitiram
que adulteraram bebidas ou deram remédio para suas presas ficarem ainda mais
vulneráveis – e “facinhas” para o coito. Alguns dos crimes teriam sido
cometidos por dois sujeitos ou mais – com potência física turbinada por
estimulantes, drogas e genéricos -, que atacaram ao mesmo tempo uma só aluna.
Note-se: entre os acusados encontra-se um estudante com histórico de
assassinato.
Quantos paus? Vamos ver mais
este: a subversão de valores. No início das apurações, as vítimas tiveram o
nome pichado em banheiros, foram chamadas de vagabunda para baixo e
repreendidas até por mestres, inconformados com as denunciantes que – palavras
dos doutores – jogaram o bom nome da Faculdade de Medicina na lama. As
agredidas foram, ainda, achincalhadas por alunas que corroboram com as
tradições das festas, dos trotes e das cerimônias de passagem para a seleta e
fechada sociedade acadêmica.
O hinário entoado nos jogos
universitários é mais uma vara colocada na edificação do machismo. Há peças
impublicáveis e crivadas de obscenidades em quase todas as torcidas das
faculdades Brasil afora. Cito apenas o hino da Batesão, a bateria da Medicina
da USP-Ribeirão Preto, que trata mulher assim: “morena gostosa”, “loirinha
bunduda” e “preta imunda”. Soma-se à formatação do violador o silêncio cúmplice
— que vai de funcionários a gestores, passando por estudantes e professores.
Muitos na comunidade nada dizem contra a dor e a humilhação imposta aos
recém-chegados, mais fracos, homossexuais e às mulheres. O Ministério Público
deu um basta. Emitiu uma recomendação para a instituição proibir o Show Medicina,
uma associação cultural, espécie de confraria máscula, que há 73 anos promove
um espetáculo teatral anual. Nos últimos tempos, virou um entretenimento de
horror para destratar alunos e funcionários, com imitações de colegas gays e
piadas sobre as lideranças feministas da faculdade que combatem o estupro. As
promotoras Beatriz Budin e Silvia Chakian escreveram na peça formal do
inquérito civil que conduzem: “Ficou apurado também que, para integrar o Show
Medicina, os interessados passam por um ritual constituído de trotes violentos
e humilhantes, com forte assédio moral e sexual, além de violência física e
noitadas com prostitutas nas dependências da universidade”.
Nesta terça (1º/9), horas depois
de receber a recomendação das promotoras, a direção da faculdade proibiu o Show
Medicina. Se não agisse assim, poderia responder a uma ação judicial. Olhar
para essa confraria permite entender a gênese dos abusos: as estudantes sempre
foram impedidas de participar. A elas, os homens reservavam a função de costurar
o figurino, sem direito a opinar sobre a criação do espetáculo nem mesmo ver os
ensaios. É mais uma forma de perpetuar o mandão no poder. E um treino para
tratar as mulheres como se elas fossem a sobra do carretel de linha.
Fonte: M de Mulher
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