As mulheres que exercem a prostituição sempre sofreram da atribuição
gratuita da etiqueta de má mulher. As estigmatizações sociais que sofrem as
mulheres em geral estão intimamente ligadas à construção dos papéis de género e
a prostituição, entre muitas outras coisas, significa autonomia, significa
transgressão das regras sexuais normativas e significa a utilização do corpo
como estratégia de empoderamento e, portanto, de negação da necessidade de ter
um companheiro masculino provedor.
Por Catarina Alves
Este controle social sobre o
corpo e sexualidade das mulheres leva a que quando se junta uma atividade
feminina transgressora como a prostituição com o símbolo mais tradicional da
existência da mulher, a maternidade, a reação da opinião pública – e privada,
não neguemos – seja de desconserto e ambivalência com base numa estrutura de
superioridade moral.
A maternidade é, assim, muitas
vezes utilizada como um mecanismo mais de controle das mulheres em geral e
muito evidentemente das que exercem a prostituição, catalogadas como eticamente
ineptas para educar uma criança quando, frequentemente, o exercício desta atividade
serve justamente os propósitos de garantir a educação dos seus filhos. Continua
socialmente presente, sem margem para dúvidas, o mito do instinto maternal,
alimentado pelos processos de socialização das crianças do sexo feminino que se
baseiam no determinismo biológico e universalizam condutas de identificação com
o papel materno da mulher, afastando qualquer outra alternativa de construção
da identidade feminina.
Interpretar a sexualidade de todo
um coletivo a partir da sua significação social atual e não da subjetividade de
cada mulher constitui uma segregação de todos os grupos de mulheres que ficam
de fora da moldura patriarcal conceptual desejável e esperada. Ao mesmo tempo,
perpetuar e reproduzir estas interpretações gera equívocos graves como a
associação direta entre o exercício da prostituição e a inevitabilidade da
figura da má-mulher/má-mãe.
Existe realmente uma relação
entre o fato de a atividade laboral da mãe ser no âmbito dos serviços sexuais
e a sua capacidade educativa e afetiva? Nada indica que sim e os estudos que já
foram realizados neste sentido não encontram nenhuma prova dessa relação
negativa, a não ser em casos nos quais se conjugam com a prostituição vários
outros fatores de vulnerabilidade social e pessoal como a violência, a
dependência de substancias, a pobreza, etc. Os coletivos organizados de
mulheres que exercem a prostituição reclamam constantemente que se deixe de
estigmatizar a sua atividade com base nesta dicotomia simplista de boa/má
mulher e que se lhes permita a liberdade para escolher a sua saúde sexual e
reprodutiva com base nos seus critérios pessoais, que em nenhum momento põem em
risco o cuidado dos seus filhos ou familiares.
No âmbito de uma investigação que
estou a desenvolver com mulheres pós-menopausicas que exercem a prostituição
pude concluir, entre outras coisas, que é o próprio estigma social da prostituição
que funciona como pressão determinante na
relação das mulheres com os seus filhos, tal como já se concluiu em
vários estudos feitos nos Estados Unidos (SLOSS, Christine and HARPER, Gary,
2004). Estes múltiplos papéis da mulher, cada um com uma carga social tão
diferente, provocam um sentimento de vergonha e de auto-estigmatização que
condicionam a vivência de uma maternidade plena e livre de pressões sociais. A
longo prazo, origina frequentemente situações de ruptura de filhos contra mães
que exercem a prostituição, mesmo nas situações em que esta atividade não teve
qualquer repercussão na relação materno-filial nem foi do conhecimento da
família ao longo do crescimento dos filhos.
Relata uma mulher: “A
prostituição marcou a má relação com os meus filhos. Superei os maus tratos em
casa, superei o abuso sexual do meu irmão, mas não o desprezo dos meus filhos.
Não poder desfrutar dos meus filhos é algo que sempre me doeu. Sempre tentei
ocultar (que exerce a prostituição), mas eles sabem e isso marcou uma relação
de repulsa. Separei-me do pai deles porque me maltratava e não queria que o
vissem e por isso tive que exercer a prostituição para dar-lhes de comer mas
agora renegam-me.”
Situações como a descrita são
relativamente comuns e marcam uma dupla vitimização: por um lado, a mulher é
vitima de violência de género, o que determina algumas das suas escolhas; por
outro lado, estas mesmas escolhas levam a que os seus filhos se afastem,
provocando uma segunda situação de violência, desta vez familiar, que acaba por
ter repercussões não só a nível pessoal como social e institucional.
Outra mulher diz: “Por causa da
prostituição, os meus pais afastaram-me dos meus filhos e roubaram-me os meus
direitos. Culpavam-me a mim, mas a minha família já era desestruturada e foram
eles que me deram o passaporte para exercer a prostituição. Eu não tinha outra
maneira de alimentar os meus filhos”.
Neste caso, o estigma vem diretamente
por parte da família e indiretamente por parte da comunidade conservadora e
reguladora da liberdade sexual das mulheres a que esta mulher pertence, com
regras de conduta muito influenciadas por um contexto religioso restritivo.
Estes são apenas dois exemplos de
como uma relação que muitas vezes se vê como causa-efeito, ou seja, o exercício
da prostituição não ser compatível com a maternidade, é maioritariamente uma
relação triangular com outro fator determinante: o estigma que existe contra
estas mulheres condiciona, mais do que qualquer outra coisa, a relação que
podem estabelecer com a sua família ascendente e descendente e a vivência da
maternidade.
Catarina Alves
Catarina nasceu em Lisboa em 1978
e passaram muitos anos até que percebesse que a revolta que sentia face à
desigualdade se chamava feminismo. De espírito inquieto e curioso, passou por
várias áreas até encontrar uma área de estudo em que se sentisse confortável: a
intervenção social.
Com o grau de Mestre em Estudos
de Género, Mulher e Cidadania pelo Instituto Interuniversitário de Estudos de
Género da Catalunha, desenvolveu estudos no âmbito do género e migração,
prostituição e tráfico de mulheres com fins de exploração sexual, trabalhando
principalmente com imigrantes africanas.
Trabalha há 6 anos no
Departamento de Mulher da Câmara Municipal de Barcelona, num serviço de
assistência directa a mulheres que exercem a prostituição, enquanto dá aulas
pontualmente em várias Universidades da Catalunha e tutoriza e desenvolve
vários trabalhos de investigação nas áreas da violência de género e
prostituição.
Fonte: http://www.oclitorisdarazao.com
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