Um levantamento inédito mostra
como vivem as adolescentes nas unidades de internação do país.
Maria é miudinha. Tem 18 anos,
braços finos e dedos longos. Costuma passar as mãos pelo cabelo e as leva à
boca sempre que sorri. O rosto tem marcas recentes de espinhas. Quer ser
psicóloga. Ou jornalista. Talvez publicitária. Foi detida porque, aos 16 anos,
matou o rapaz que a estuprou.
Maria B. tem 15 anos. Está
grávida. Usa uma trança embutida ao lado da cabeça e esmalte rosa nas unhas dos
pés e das mãos. Gosta de ler sobre filosofia. Cita até Nietzsche. Exibe um
vocabulário amplo. Quer estudar japonês e latim. Ela infringiu a lei, mas não
conta por que está detida, faz seis meses. Apenas diz que se arrepende.
Maria C. ri muito e chama todos
de tio e tia. Tem 18 anos, mas aparenta menos. Seus olhos, negros como sua
pele, estão vidrados. Quer parar de fumar crack. Num português truncado, diz
querer estudar alguma coisa, qualquer coisa, para poder cuidar do filho de 2
anos. Está detida por um homicídio. Jura ser inocente.
As três Marias, adolescentes e
infratoras, são invisíveis. Há pouco mais de 600 delas no país, ou 4% do total
de adolescentes internados. Suas demandas e necessidades recebem pouca atenção.
A fim de saber como elas vivem, o Conselho Nacional de Justiça encomendou um
estudo à Universidade Católica de Pernambuco. As pesquisadoras visitaram, entre
2013 e 2014, unidades de internação de cinco cidades: São Paulo, Brasília,
Porto Alegre, Recife e Belém. Gravaram mais de 100 horas de entrevistas com as
meninas invisíveis. ÉPOCA teve acesso ao levantamento inédito. “Não há
estabelecimentos adequados, estrutura física nem recursos especializados para o
atendimento dessas adolescentes, seja porque o número de meninas internadas é
menor, seja porque elas, em geral, não criam muitos problemas”, diz Luís
Geraldo Lanfredi, coordenador na área de medidas educativas para adolescentes
infratores do CNJ.
As pesquisadoras concluíram que
as garotas são tratadas com preconceito. De garotos, entende-se a raiva. Nas
garotas, critica-se a histeria. As
famílias as visitam menos e os parceiros as abandonam. O Estado deveria educar
e reintegrá-las, mas não tem como avaliar o próprio trabalho, pela ausência de
dados. “Sobre as garotas, não havia nenhuma informação compilada. O sistema é
todo pensado na lógica masculina”, diz Marília Montenegro de Mello,
coordenadora da pesquisa.
A reportagem foi a três unidades
e conversou com funcionários, dirigentes e sete garotas internadas, com idades
entre 15 e 20 anos (aos 17 anos, o menor de idade ainda pode receber pena de
detenção por três anos). Aqui as meninas serão todas “Marias”, para preservar
suas identidades. Estão internadas porque praticaram “atos infracionais”
graves, o nome técnico dos crimes cometidos por menores de 18 anos. Tráfico de
drogas, roubo e homicídio estão entre os mais comuns. Há nas unidades um misto
de delicadeza e agressividade, de malícia e ingenuidade. Lidar com a
ambivalência, tão feminina e tão típica da adolescência, é um desafio tremendo
para essas instituições.
A CASA DE PEDRA
Num grande terreno em Santa
Maria, periferia de Brasília, vê-se um prédio que em nada difere de um
presídio. Há grades em todos os vãos, muros altos e guaritas em torres. Abriga
meninos e meninas que cumprem “medidas socioeducativas”, penas impostas a quem
comete crimes antes dos 18 anos. A feição de cárcere é o oposto do sugerido nas
diretrizes para o tratamento de adolescentes infratores, elaboradas em 2012. As
meninas não podem enfeitar as paredes nem usar travesseiros.
A unidade é mista, mas garotos e
garotas não convivem. São separados fisicamente. A ala feminina, dita
provisória, fica nos fundos. As garotas ocupam um espaço pintado de azul e
branco, com mato na altura do joelho. Duas meninas dividem cada quarto, mas há
apenas uma cama e um colchão.
Na biblioteca pintada de bege,
Maria e Maria D. contam, timidamente, sua rotina. “A gente adoece muito aqui”,
diz Maria, a miúda. “Só essas paredes pálidas já deixam a gente doente.” A seu
lado, Maria D., de 16 anos, internada há nove meses por tentativa de homicídio,
discorre sobre o tédio. Com exceção das duas horas de banho de sol diárias, em
que se pode jogar dominó ou assistir à TV, elas ficam trancadas nos módulos –
conjunto de seis quartos com uma pequena área comum. Almoçam por volta das
11h30, voltam aos quartos e ali permanecem até o apagar das luzes, perto de 22
horas. Algumas leem. As histórias de amor juvenis do americano Nicholas Sparks
fazem sucesso entre elas.
Em março, as meninas estavam sem
aula. “Elas são poucas e o tratamento é muito individualizado. Estamos com
dificuldade na organização de turmas”, diz o gerente pedagógico William de
Souza. Se são menos numerosas, o atendimento a elas deveria ser mais fácil.
Mas, por serem menos numerosas, diz o funcionário, elas ficam sem continuidade
escolar. Descumpre-se uma exigência do
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Entre as 21 internas, em
março, havia demanda para diversos estágios da educação, todas com grande
defasagem. A Secretaria da Criança do Distrito Federal informou que tanto
garotas quanto garotos iniciaram o ano letivo no dia 17 de março.
As garotas nem sempre conseguem
explicar com clareza a sensação de que os rapazes têm regalias. Uma, evidente,
é o tempo destinado a atividades. As meninas têm menor acesso à quadra de
esportes. “Nas férias, eles iam para a quadra o tempo todo e a gente não foi
nenhuma vez. Neste ano, a gente foi três vezes. Os meninos vivem na quadra”,
diz Maria D., que ama futebol e pretende estudar educação física.
Em Brasília, as regras são
rígidas. As internas não podem usar maquiagem nem esmalte, a não ser quando a
direção autoriza, para algum dia especial. Se amarrarem as camisetas para lhes
dar alguma personalidade, perdem tempo de banho de sol. Em alguns plantões, só
podem sair dos quartos com o cabelo preso. “Quando saio no Natal, gasto cinco
das 24 horas que tenho só no salão de beleza”, diz Maria. Num momento de
revolta pela restrição de itens de higiene, Maria D. pôs fogo num colchão.
Ninguém se machucou. Ela diz que foi agredida pelos agentes, aos berros de
“P...! Piranha!”. Maria confirma. Acrescenta que ouviu de um segurança que
deveria ser estuprada, “para ver se aprendia a viver”.
A CASA DE BONECAS
Uma placa de madeira pendurada na
porta avisa a visitante: “Gurias prendadas”. Na sala ao lado, outra placa
alerta: “Meninas arteiras”. As grades dos quartos são pintadas de rosa. Nos
quartos, em cima das estantes, as garotas têm porta-retratos, desenhos e
livros. As cortinas têm cor de pêssego e há almofadas coloridas. A unidade de internação
feminina de Porto Alegre, o Casef, é a antítese da de Brasília. Suas
instalações são o que de mais próximo pode haver de uma casa, num ambiente de
detenção. Contrastando com a porta de ferro em cada quarto, uma flor de
cartolina indica o número da cela.
Maria C., a garota negra de olhos
negros vidrados, alterna momentos de agitação e de quase letargia. No dia da
visita, estava pesadamente medicada, para enfrentar a abstinência de crack.
Para controlar a ansiedade, engaja-se em todas as atividades oferecidas. Acorda
às 6 horas, limpa o quarto, vai à aula de bordado, segue para as aulas na
escola dentro da unidade, onde cursa o 4º ano, e termina a tarde trabalhando na
lavanderia.
Uma interna estende uma cortina, em Porto Alegre. Elas podem lavar roupas, inclusive a dos meninos infratores, para ganhar dinheiro (Foto: Ricardo Jaeger/ÉPOCA)
OCUPAÇÃO
Somente às garotas é oferecida a
opção de lavar as roupas de cama e banho das outras unidades, todas masculinas.
Recebem R$ 362 por mês por isso. Aos sussurros, reclamam: “As roupas dos
meninos fedem. Vêm muito sujas”, diz uma interna. Maria C. não se queixa.
“Adoro fazer limpeza”, diz. E ri. Apenas as meninas têm de faxinar as áreas
comuns. A cada 15 dias, fazem doces e salgados para vender aos funcionários e
aos parentes que vêm nos domingos de visita. A rosca-flor, coberta de coco,
custa R$ 2,80.
A diretora da instituição, Malena
Ramos, trabalha com adolescentes infratores há 24 anos. Há nove meses, é
responsável pelo Casef. Admite algum incômodo por dar às meninas tarefas e
cursos estereotipados. “Mas atendemos a uma demanda das próprias garotas.
Quando perguntamos que cursos elas querem fazer, elas pedem esse tipo de coisa:
bordado, maquiagem, confeitaria”, diz Malena. “Elas sentem que há mercado para
elas nessas profissões. E conquistar independência financeira é um passo muito
importante para elas.” Maria E. está prestes a ir embora. Envolveu-se num
assalto à mão armada aos 17 anos. Aos 20, vai voltar para sua cidade natal. Ela
elogia o esforço da instituição de tornar as garotas mais femininas. “Tem umas
que chegam aqui com comportamento de animal”, diz. Um efeito desse tratamento é
a obediência. Maria E. diz que, com os meninos, se a refeição atrasar, tem
rebelião na hora. “Aqui, não. A gente fica de boa, assistindo à TV”, diz.
Há mais uma ambiguidade no Casef.
O ambiente que pretende cultivar a feminilidade restringe exibições de afeto.
As meninas não podem se tocar. Não podem trançar o cabelo uma da outra. Malena
diz que é para evitar ciúmes e brigas. Maria C. diz pouco: “Sinto muita falta
de um abraço”.
A CASA DA DISCIPLINA
A pintura se descasca nas paredes
e no chão do pátio, mas uma inscrição colorida no muro incentiva: “Toda mulher
pode ser uma vencedora”. Jovens vestidas de lilás, a maioria com um coque alto
na cabeça, esparramam-se pela quadra. Estão na unidade de internação Chiquinha
Gonzaga, na capital paulista. Ali há 157 internas. São tratadas como quem
oferece perigo. A disciplina se impõe. Elas se dirigem aos agentes, professores
e seguranças como “senhor” ou “senhora”. Dormem em quartos com mais de dez
beliches, sem privacidade. Estão sempre em grupo e vigiadas.
A consequência da vida coletiva é
que se pune também coletivamente. Maria F. tem 18 anos e foi apreendida há nove
meses por tráfico de drogas. Diz que estava comprando apenas para consumo
próprio. Depois de internada, voltou a se relacionar com a mãe. Diz que quer
estudar e trabalhar quando sair. Mas se ressente de ser punida pelo mau
comportamento de colegas. “Eles dizem que a caminhada é individual. Mas quando
uma faz algo errado, todo mundo paga”, diz. Foi assim numa rebelião de algumas
meninas em 8 de março. As revoltosas quebraram portas e lâmpadas. Todas
perderam regalias – a mãe nem pôde levar
para ela elásticos de cabelo na visita seguinte.
Maria F. é eloquente. Seus olhos
verdes se agitam quando ela reclama dos privilégios dos meninos. Há uma
percepção difundida, entre internas, funcionários e dirigentes, de que os
meninos têm penas mais brandas. “Eu mal tenho B.O. (Boletim de Ocorrência) e
estou aqui há um tempão, sem data para sair. Sei de menino que sai com três
meses tendo feito coisa muito pior”, diz Maria F.
Em Brasília e em Porto Alegre, a
reportagem ouviu reclamação semelhante. As garotas dão o exemplo de meninos que
fogem e, recapturados, vão para um regime semiaberto, enquanto as garotas são
novamente internadas. Queixam-se também que, como as meninas se comportam em
geral melhor, qualquer deslize ganha grande proporção. Uma agente de Brasília,
ao tentar explicar sua impressão, lembrou que há mais vagas para elas e menor
necessidade de rotatividade. Malena, diretora em Porto Alegre, diz que já viu
meninas ficarem mais tempo internadas do que garotos que cometeram a mesma
infração. “Na nossa sociedade, fazer coisa errada é coisa de menino. Os juízes
tendem a ser mais rigorosos com elas”, diz.
Apesar de tanta disciplina, na
Chiquinha as meninas têm mais liberdade para expressar afeto. Oficialmente, não
é permitido que namorem entre si. Mas os funcionários tendem a não repreender.
“A homossexualidade que se manifesta aqui é passageira, decorre da solidão”,
diz a presidente da Fundação Casa, Berenice Giannella. “Temos muita dificuldade
em trazer as famílias. Os pais quase nunca vêm.” A descrição pareceu servir
para Maria G., de 16 anos. Ela nunca recebeu uma visita. Fora, namorava
garotos. Ali, arrumou uma namorada. À noite, monta um boneco com lençóis e
salta para a cama da parceira. “A gente dá um jeito...”, diz, com um sorriso de
menina que fez arte.
Na Chiquinha houve também meninas
grávidas em número suficiente para a criação de uma ala exclusiva. Chama-se
Pami, ou Programa de Acolhimento Materno-Infantil. Reúne cinco grávidas e 11
meninas que tiveram filhos enquanto internadas. Ali, a maternidade ganha outro
papel. Ser mãe é a salvação, subentende-se. Elas abraçam e ninam seus filhotes
como quem agarra uma nova chance. É ali que está Maria B., a filósofa de 15
anos. “Quando sair, vou estudar e cuidar do meu filho. Minha família me apoia.
Não vou decepcionar eles de novo.” Visitar as meninas-mães do Pami causa
sentimentos contraditórios. Elas parecem novas demais e frágeis demais para
cuidar de alguém. Mas agora, não estão mais sozinhas. Ao menos para suas crias,
elas nunca serão invisíveis.
Internas na ala da maternidade da
unidade de internação Chiquinha Gonzaga em São Paulo (Foto: Alex Almeida/ÉPOCA)
Fonte: Revista Época
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