A ativista feminista Marai Larasi
acredita que as lutas contra o machismo e racismo são tão necessárias quanto o
combate “à homofobia, discriminação por classe ou deficiência”.
A luta pelo fim da violência
contra mulheres e jovens negras, refugiadas e de minorias étnicas mobiliza a
feminista Marai Larasi há mais de 20 anos. Ativista em mídia, juventude, gênero
e violência e diretora executiva da Imkaan, organização não governamental
feminista negra, sediada no Reino Unido, ela foi uma das palestrantes do I
Seminário Internacional Cultura da Violência contra as Mulheres, ocorrido entre
20 e 21 de maio, em São Pauloe organizado pelo Instituto Patrícia Galvão e
Instituto Vladimir Herzog.
Em entrevista à Ponte Jornalismo,
Marai explica que “mulheres e meninas negras, jovens e de minorias étnicas
experienciam violências de maneiras similares às outras mulheres. Isso inclui
assédio sexual, abuso sexual na infância, exploração sexual, tráfico e
violência por parceiro íntimo. Há, no entanto, algumas diferenças em formas de
violência que vão atingir desproporcionalmente mulheres e garotas negras,
jovens e de minorias étnicas, como casamento forçado e mutilação genital feminina”.
Qual é o quadro de violência
contra mulheres e meninas no Reino Unido?
Marai Larasi- A violência contra
mulheres e meninas continua sendo uma questão crítica no Reino Unido. Essa
violência é perpetrada de diversas maneiras e inclui: abuso e exploração
sexual, estupro, tortura, ataque físico, abuso psicológico, mutilação genital
feminina, casamentos forçados, abuso financeiro, assédio, violência perpetrada
em nome da ordem, perseguição, entre outros. Enquanto é difícil ter uma visão
acurada da prevalência, os dados que temos sugerem que todo ano centenas de
mulheres e meninas do Reino Unido são submetidas à violência nas esferas
pública e privada.
Além disso, a evolução das
“novas” tecnologias mudou a maneira como muitos de nós historicamente
entendemos ou definimos violência. Nesse fenômeno de mídias sociais, mensagens
instantâneas, chats de vídeo e mensagens de texto estão sendo mais usados como
mecanismos de vitimizar mulheres e garotas. Isso apresenta novos desafios para
todos nós, não apenas nas nossas análises de diferentes ´sites’ de violência,
mas crucialmente em torno de nossa abordagem de prevenção, solução de crises e
apoio contínuo.
Há algum tipo específico de
violência cometida contra mulheres e garotas jovens, negras e de minorias
étnicas?
Marai Larasi- Mulheres e meninas
negras, jovens e de minorias étnicas experienciam violências de maneiras
similares às outras mulheres. Isso inclui assédio sexual, abuso sexual na
infância, exploração sexual, tráfico e violência por parceiro íntimo. Há, no
entanto, algumas diferenças em formas de violência que vão atingir
desproporcionalmente mulheres e garotas negras, jovens e de minorias étnicas,
como casamento forçado e mutilação genital feminina.
Ao entender essas diferenças,
primeiramente focamos nas semelhanças. Nós entendemos que a “violência contra a
mulher e garotas tem raízes na histórica e estrutural falta de igualdade nas
relações de poder entre homens e mulheres e persiste em todos os países do
mundo como uma generalizada violência à difusão dos direitos humanos”, de
acordo com a ONU Mulheres.
Assim, embora a violência contra
mulheres e meninas varie em suas manifestações, ela é, no entanto, uma
expressão do patriarcado e contexto mais amplo de cultural de desigualdade
(tomando como base sexo e gênero).
Estamos conscientes, então, que diferentes definições de perpetração da
violência podem “evoluir” em formas específicas que estão ligadas a outros
fenômenos culturais.
Qual é a diferença entre o quadro
de violência contra esse grupo de mulheres no Reino Unido e a do resto do
mundo?
Marai Larasi- Somos cautelosos em
fazer comparações entre a situação no Reino Unido e o resto do mundo, já que
cada país, região, está lidando com seu próprio e único conjunto de
circunstâncias, que impactam na prevalência de violência e na natureza e disponibilidade
de serviços, etc.
Ao invés disso, buscamos fazer
conexões entre nossas experiências e a dos outros países. Dessa forma,
ampliamos nosso entendimento sobre formas mais amplas de impacto estrutural e
cultural na vida das mulheres e nos ajuda a fortalecer nossas respostas para
combater a violência. Por exemplo, temos parceria com o projetoPacific Island
Safety and Prevention Project in Aotearoa, na Nova Zelândia, e descobrimos que
muitas das narrativas de lá se espelham com as nossas. Eles conseguem explicar
formas de intersecção entre o patriarcado, racismo e questão econômica, entre
outras desigualdades. Além disso, dado que vivemos num contexto de globalização
nós também buscamos aprender a partir de experiências específicas de mulheres,
que podem ser menos familiares para nossos quadros de referência, por exemplo
mulheres que vivenciaram experiências de violência em contexto de conflito.
Por que você e a Imakaan se
definem como feministas negras? No que se diferem do feminismo “branco”?
Marai Larasi- Eu me identifico
como uma feminista negra porque acredito que feminismo negro oferece espaço
para uma análise interseccional (A teoria da intersecção foi introduzida
primeiramente por Kimberlé Williams Crenshaw nos anos 1980) de nossas
experiências como mulheres negras, mulheres de cor. Essa perspectiva é crítica
se falarmos em termos da realidade que as mulheres negras experienciam em
relação ao sexismo que é frequentemente racializado e que nossa experiência de
racismo é frequentemente sexualizada. Por exemplo, enquanto todas as mulheres
são rotineiramente objetificadas nos espaços de mídia, os corpos de mulheres
negras são frequentemente apresentados de maneiras que promovem noções de
hipersexualidade e brutalidade dos negros. Enquanto uma análise feminista mais
genérica irá preocupar-se com essa questão a ser problematizada em termos de
gênero, o feminismo negro oferece uma crítica que questiona a intersecção entre
sexismo e racismo.
O feminismo negro, como outros
feminismos, não oferece uma narrativa única. O meu próprio feminismo negro está
ligado a outras lutas e espaços de aspiração. Isso me proporciona a
oportunidade de me conectar às minhas raízes nas minhas jornadas ancestrais de
colonização, escravidão e sobrevivência, me permitindo invocar histórias de
Sojourner Truth [Abolicionista e feminista norte-americana que foi uma líder
defensora da abolição da escravatura e dos direitos das mulheres], Nanny of the
Maroons [líder dos quilombolas jamaicanos conhecidos como Maroons do século 18]
e Nelson Mandela com a mesma ressonância. Também me permite conectar com a
resistência das sufragistas europeias e com os ativistas LGBTQ de Stonewall.
Feminismo “branco” (que não é o
termo que eu necessariamente usaria) foi e continua sendo, uma parte essencial
da minha jornada, mas nunca senti verdadeiramente como “meu” feminismo. Para
mim, feminismo negro abre espaço e cria conexões e reflete tudo que eu sou.
Cada membro da equipe do Imkaan
personifica sua própria visão sobre a questão e é trazido para o nosso
trabalho. Nosso trabalho foca nas necessidades e aspirações das mulheres e
garotas negras e de minorias étnicas. O feminismo negro é o coração disso.
Nossas lutas antiracistas são tão importantes quanto nossas batalhas contra o
patriarcado. Para nós, é tão importante quanto homofobia, discriminação de
classe ou discriminação por deficiência, assim como outras opressões. Como
Audre Lorde disse “não há hierarquia de opressões”. Nós nos recusamos a
escolher nossa condição de mulher sobre a nossa negritude, visto que eles estão
sempre interconectados. Nosso feminismo negro
pressiona fronteiras em volta de uma única agenda de igualdade de
gênero. Ao aceitar que a violência contra mulheres e garotas está ligada à falta
de igualdade de gênero, nós entendemos as diferentes maneiras que a
desigualdade de gênero é atuada, mantida e experienciada. Também entendemos que
temos que resistir de diferentes maneiras.
Feminismo negro nos proporciona
uma formação e guia de como enquadrar nosso trabalho, como desafiamos a
opressão e como imaginamos e trabalhamos em direção a um mundo de igualdade
para todos nós.
Como funciona o trabalho da
Imkaan no Reino Unido?
Marai Larasi- Somos uma
organização de direitos humanos de abrangência nacional. Nossos membros são
especialistas de linha de frente para mulheres que trabalham prevenindo e
atendendo casos de violência contra meninas e mulheres, negras e de minorias
étnicas. Enquanto mulheres e garotas negras e de minorias étnicas
sobreviventes, feministas e serviços especializados no atendimento à violência
tem desempenhado um papel central no Reino Unido, nossas contribuições são
frequentemente minimizadas ou ignoradas.
Imkaan trabalha para garantir que
as vozes dessas mulheres e garotas sejam ouvidas, que nossas necessidades sejam
validadas e nossas aspirações realizadas. O trabalho da Imkaan inclui pesquisa,
treinamento, apoio e defesa estratégica. Também temos áreas específicas de
trabalho, que são guiadas e focadas em jovens mulheres. Cada aspecto do nosso
trabalho fez diferença em alguma área de políticas, programas ou práticas
dentro do Reino Unido (e em outros lugares). Por exemplo, o trabalho da Imkaan
em Londres em torno de “práticas nocivas” levou ao financiamento e mudanças de
programas em nível regional, e nosso trabalho tem ajudado a garantir a
sobrevivência de pequenos e especializadas organizações de mulheres negras e de
minorias étnicas, num momento em que os serviços estão sob ameaça de fechar.
Como funciona a experiência de
prevenção à violência de gênero no Reino Unido?
Marai Larasi- No Reino Unido,
assim como em vários países, o trabalho com violência contra mulher e garotas
tem focado principalmente no apoio aos sobreviventes e gerenciamento de crise.
Muito do trabalho de prevenção é, portanto, ligado à prevenção da violência
futura conta mulheres e garotas.
Em 2011, a End Violence Against
Women Coalition (EVAW) publicou o documento de estratégia “Um mundo diferente é
possível”. A iniciativa EVAW tem uma abordagem a longo prazo para prevenir
violência contra mulheres e garotas e isso ainda está por ser realizado.
Iniciativas focadas na prevenção
primária são ad hoc e dependem fortemente do trabalho individual de defensores
trabalhando em organizações não governamentais, escolas e em comunidades. O
documento A Different World is Possible: Promising Practices também publicado
em 2011, observou que o valor de parte desse trabalho e que “há um papel claro
de liderança nacional de governos e autoridades locais para ir além da
“promessa” de aproximação e construir apoios para conhecimento, capacidade
institucional e recursos necessários para criar um mundo mais seguro para
mulheres e garotas”.
Enquanto o governo lançou sua
própria campanha ‘This Is Abuse’, que foi bem recebida, e que tem engajamento
positivo de jovens, ela não está diretamente ligada a um programa nas escolas.
Assim, apesar dos níveis de
violência contra mulheres e garotas, prevenção continua abaixo na lista de
prioridades de outras áreas de trabalho. Num tempo de desafios econômicos e
medidas de austeridade, nós que estamos trabalhando nessa área estamos cientes
que o tema descerá ainda mais na agenda de prioridades.
Fonte: A Ponte/ Patrícia Galvão
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