A própria mudança de Francisco de uma ética
sexual para uma ética social é uma mudança extremamente necessária na perspectiva
do magistério moral. Ele percebe que a Igreja se tornou “obcecada” com questões
como o aborto, contracepção e casamento gay. Ao invés disso, ela precisa se
focar em servir os pobres e oprimidos, e a confrontar o pecado social que leva
e perpetua a pobreza.
“Papa Francisco tem pedido também por uma ‘teologia das mulheres’, o que é um passo encorajador.
Entrevista especial com Todd A. Salzman e
Michael G. Lawler
"Esperamos que Francisco
encoraje os fiéis a se informarem para desenvolver suas consciências, e a se
empoderar para segui-las, mesmo que estas posturas vão de encontro aos
ensinamentos falíveis do magistério sobre normas sexuais", analisam os
teólogos moralistas.
“A maioria vê Francisco como um
sopro de ar fresco”. Assim Todd A. Salzman e Michael G. Lawler definem como o
atual pontificado é visto nos Estados Unidos. Para eles, é mais ou menos isso
que Francisco faz com conceitos e posições da Igreja. Ele não os modifica, mas
é como se abrisse uma janela. Por essa abertura há entrada de oxigênio, capaz
de alimentar e trazer luz às discussões. É um começo. Um exemplo é quando os
professores tratam do ensino moral segundo a leitura de Bergoglio.
“Há certamente uma evolução no
tom de Francisco quando se trata do ensino moral”, argumentam. Porém, alertam:
“Para que tal evolução ocorra, no entanto, Francisco precisa traduzir esta
ternura e amor de uma perspectiva pastoral em mudanças substantivas no ensino
doutrinal”.
Os teólogos refletem sobre o
papel da mulher na Igreja. “Papa Francisco tem pedido por uma ‘teologia das
mulheres’, o que é um passo encorajador. No entanto, este pedido negligencia o
fato de que não são poucas as fontes sobre teologia feminista e teologia das
mulheres que claramente articulam o papel e a função das mulheres na Igreja ao
longo da história.” E também passam por temas como a configuração das famílias
nos dias de hoje. “‘Família é família’, e devemos nos envolver com a realidade
em que vivemos, não no modo como desejamos que ela seja”, destacam ao pontuarem
a necessidade de compreender as pluralidades que constituem as famílias hoje.
Num tom sóbrio, sempre destacando
os avanços de Francisco sem desconsiderar os desafios que precisa enfrentar
para a efetivação das suas ideias na prática, os entrevistados ainda comentam
sobre união homoafetiva, mudança de uma ética sexual para social, misericórdia
popular, acolhimento a divorciados e comunidade LGBT, entre outros temas. Para
entender o que inspira o Papa, os professores ainda buscam referências no
Concílio Vaticano II.
Todd A. Salzman é Ph.D pela
Universidade Católica de Louvain, na Bélgica.
Michael G. Lawler é graduado em
Matemática pela Universidade de Dublin e em Teologia pela Pontifícia
Universidade Gregoriana – PUG, em Roma. É Ph.D em Teologia Sistemática pelo
Instituto Aquinas de Teologia, em Saint Louis.
Ambos lecionam no departamento de
Teologia da Universidade de Creighton, nos Estados Unidos. Ambos são autores do
importante livro A Pessoa sexual. Por uma antropologia católica renovada,
traduzido para a língua portuguesa e publicado, em 2012, pela Editora Unisinos.
A entrevista foi concedida por
ambos à IHU On-Line e foi publicada na revista "E sopra um vento de ar
puro... Os dois anos de Papa Francisco em debate", que pode ser acessada
clicando aqui.
Confira a entrevista.
Lawler (à esquerda) e Salzman Fotos: creighton.edu
IHU On-Line – Quais aspectos do
Papado de Francisco são os mais relevantes em relação ao magistério moral?
Todd A. Salzman e Michael G.
Lawler - Há dois aspectos fundamentais no Papado do Papa Francisco relevantes
para o magistério moral. O primeiro aspecto é a mudança da eclesiologia de
Francisco da de seus predecessores (como veremos na última questão). Quando
comparada com a eclesiologia mais hierárquica e autoritária dos Papas João
Paulo II e Bento XV , a eclesiologia de Francisco é uma tentativa de realizar a
autêntica visão eclesiológica do Concílio Vaticano II , com sua ênfase na
fraternidade ou na eclesiologia do povo de Deus. A visão eclesiológica de
Francisco é evidente em sua ênfase de que o clero e os episcopados precisam
escutar e servir os fiéis.
Francisco "exortou os
sacerdotes do mundo a levarem a cura da graça de Deus a todos os necessitados,
a estarem próximos dos marginalizados e a serem ‘pastores que vivem com o
cheiro de suas ovelhas’”. Criticou também a cúria romana, afirmando que era a
lepra do Papado: Ela cuida dos interesses do Vaticano que ainda são, em grande
parte, interesses temporais. Essa visão vaticano-cêntrica negligencia o mundo
ao seu redor, e diz que vai fazer de tudo para mudá-la. Suas tentativas de
centrar tanto o clero quanto o episcopado no serviço ao povo de Deus pode ter
profundas implicações sobre o ensino moral. Quando os clérigos são encarregados
de viverem com as ovelhas, essa experiência não pode deixar de transformar suas
perspectivas e, com sorte, talvez o modo como pensam sobre questões morais de
maneira pastoral e sobre os ensinamentos da moral do magistério passe a ser
visto à luz desta perspectiva transformada.
Da ética sexual a ética social
Em segundo lugar, a própria
mudança de Francisco de uma ética sexual para uma ética social é uma mudança
extremamente necessária na perspectiva do magistério moral. Ele percebe que a
Igreja se tornou “obcecada” com questões como o aborto, contracepção e
casamento gay. Ao invés disso, ela precisa se focar em servir os pobres e
oprimidos, e a confrontar o pecado social que leva e perpetua a pobreza. Há
muito se diz que o magistério moral possui duas abordagens éticas
fundamentalmente diferentes, dependendo do fato de responderem à ética social
ou à ética sexual. A abordagem da ética social está evoluindo (historicamente
consciente) em diálogo com contextos sociais, históricos e culturais, e fornece
princípios gerais (como bem comum) para guiar as pessoas na hora de discernir
ações moralmente responsáveis. A abordagem da ética sexual é estática
(classicista), restritiva a um modelo único, não considera contextos sociais,
históricos e culturais e fornece normas punitivas absolutas que comandam
pessoas a não realizarem certas ações.
O exemplo filipino
A tragédia da inconsistência de
abordagens entre a ética social e sexual é resumida na viagem do Papa Francisco
às Filipinas. Nesta viagem, uma jovem garota filipina – que sobreviveu nas ruas
recolhendo comida do lixo e dormindo sobre papelão, perguntou: “Por que Deus
deixou isso acontecer conosco?”. A pobreza é endêmica nas Filipinas; uma nação
de cerca de 100 milhões de pessoas, em que mais de um quarto da população vive
na linha da pobreza, e 36% das crianças permanecem em condição de miséria.
Muitas destas crianças vivem nas ruas, uma vez que suas famílias não têm
condições de sustenta-las em casa.
Por outro lado, os bispos das Filipinas
tem combativo a legalização de medidas contraceptivas no país durante anos. O
acesso a tais medidas não apenas ajudaria a promover a paternidade responsável
e a reduzir o número de crianças desabrigadas, mas ainda poderia reduzir a
mortalidade durante o parto – devido a complicações relacionadas à gravidez. O
acesso legal à contracepção poderia permitir aos pais o controle de natalidade,
de modo a limitar o tamanho de suas famílias e reduzir a mortalidade infantil e
a mendicância por pobreza. O ensino social católico promove esta lei; o ensino
sexual católico proíbe tal lei.
Abertura para diálogos e
discernimentos
A mudança de foco de Francisco
para uma ética social pode ajudar a direcionar esta desconexão ao permitir uma
maior integração do ensino social e sexual católico, que observa contextos
econômicos, culturais, sociais e políticos e apresenta princípios para guiar os
fiéis católicos para a paternidade/maternidade responsável, com uma consciência
bem formada dentro destes contextos. A mudança eclesiológica e o foco na
justiça social pode abrir oportunidades para diálogos e discernimentos sobre o
conteúdo do ensino sexual do magistério. É esse ensinamento que continua a
alienar muitos dos fiéis.
IHU On-Line – Em que sentido você
percebe uma evolução e quais pontos precisam de mais atenção do pontífice?
Todd A. Salzman e Michael G.
Lawler - Há certamente uma evolução no tom de Francisco quando se trata do
ensino moral. Algo que o cardeal Kasper chama de “revolução da ternura e do
amor”. Esta revolução pode indicar uma evolução no conteúdo do ensinamento
moral. Para que tal evolução ocorra, no entanto, Francisco precisa traduzir
esta ternura e amor de uma perspectiva pastoral em mudanças substantivas no
ensino doutrinal. O Sínodo da Família 2015 vai fornecer uma indicação clara da
evolução no ensinamento moral da Igreja sobre sexualidade, ou se este
permanecerá como é, embora com uma ênfase na misericórdia e compaixão.
Acreditamos que se uma evolução
não ocorrer no ensino sexual católico, especialmente no que diz respeito a
contracepção, homossexualidade, divórcio e novos casamentos, o entusiasmo dos
fiéis para com as mensagens positivas de ternura, amor e misericórdia do Papa
Francisco vão perder seu momento. E as pessoas continuarão a deixar a Igreja
Católica para procurar em outro lugar alguma tradição que encarne amor, ternura
e misericórdia em relação às normas sexuais morais.
Mulher na Igreja
O papel e função das mulheres na
Igreja também precisa de mais atenção. Papa Francisco tem pedido por uma
“teologia das mulheres”, o que é um passo encorajador. No entanto, este pedido
negligencia o fato de que não são poucas as fontes sobre teologia feminista e
teologia das mulheres que claramente articulam o papel e a função das mulheres
na Igreja ao longo da história e fornecem perspectivas teologicamente fundadas
sobre como incluir vozes femininas nas estruturas de governança e ministérios
eclesiais, o que inclui a ordenação de mulheres ao diaconato e ao sacerdócio.
IHU On-Line - Quais são os pontos
mais importantes nos quais Francisco demonstra um entendimento alternativo dos
ensinamentos da Igreja sobre sexualidade?
Todd A. Salzman e Michael G.
Lawler - As declarações recentes do Papa Francisco sobre complementaridade
indicam uma evolução em seu pensamento sobre este conceito em relação ao
entendimento do Papa João Paulo II. Pode indicar uma compreensão alternativa
sobre a antropologia sexual e, por consequência, uma compreensão alternativa
sobre as normas que guiam a sexualidade humana.
Para João Paulo, a
complementaridade significava que duas realidades estavam interligadas,
produzindo um todo que nem é e nem pode estar sozinho. Ele desenvolve esta
noção seguindo linhas de gênero culturalmente baseadas de masculino/feminino
que ele apresenta como linhas biologicamente baseadas como masculino/feminino.
As implicações normativas do entendimento biológico da complementaridade de
João Paulo significa que apenas atos sexuais do tipo heterossexual, matrimonial
e reprodutivo eram moralmente aceitáveis. Todos os outros atos sexuais eram
intrinsecamente ruins.
Papa Francisco abre seu
tratamento da complementaridade com uma descrição genérica, que “se refere a
situações em que um, de dois elementos, adiciona, completa ou preenche uma
lacuna do outro”. Mais do que isso, ele acrescenta que a complementaridade “é
muito mais do que isso”. Ele fornece quatro nuances para nós pensarmos
teologicamente sobre este “mais”. A primeira nuance é uma nuance das
escrituras. Uma referência à carta de São Paulo aos Coríntios, que celebra o
fato de que “o Espírito dotou cada um de nós com diferentes dons, de modo que,
da mesma maneira como os membros do corpo humano trabalham em conjunto para o
bem do todo, os dons podem trabalhar em conjunto para o benefício de cada um
(cf.1 Cor 12).”
A segunda nuance de Francisco é
uma ênfase na complementaridade como uma ideia dinâmica e em evolução, não a
“ideia simplista de que todos os papeis e relações entre dois sexos estão
fixados em um padrão único e estático”.
A terceira nuance diz respeito à
“crise ecológica” que aflige o casamento e a família. “Ecologia” é
originalmente um conceito biológico que se refere às relações entre organismos
vivos e seu ambiente, mas foi estendido em nosso tempo para incluir as relações
entre grupos humanos, os padrões sociais criados por estas relações e os
recursos materiais disponíveis para eles. Francisco claramente tem em mente
este significado contemporâneo de ecologia, a inclusão da ideia de
complementaridade na ecologia humana e o papel da complementaridade nas crises
presentes nesta ecologia. Ele nos convida a refletir sobre complementaridade e
o modo como os pecados sociais limitam sua plena realização e impacto para
“promover uma nova ecologia humana”. Pecados sociais que criam uma ecologia
social que restringe o impacto total da complementaridade incluem a pobreza, o
racismo, o sexismo, a homofobia, a discriminação, o patriarcado e toda outra
realidade social que frustrar e vai contra a dignidade e o relacionamento
humano. O convite do Papa é para que encontremos uma definição mais complete e
dinâmica da complementaridade que, simultaneamente, exponha estas ameaças à
harmonia social, marital e familiar, e responda a elas.
A quarta nuance de
complementaridade de Francisco é um foco na família como “fato antropológico”,
que não pode ser qualificada “com base em noções ideológicas ou conceitos
importantes apenas em determinado momento na história”. Experiências em nível
mundial mostram que a família é definida e influenciada por instâncias
culturais, históricas, sociais e legais.
Revendo conceito de família
Enquanto uma pessoa pode
certamente conceber e apresentar uma noção “ideal” de família como um homem,
uma mulher e seus filhos, a história e a realidade de famílias são muito mais
complexas. Hoje há famílias de pais solteiros, famílias de padrastos ou
madrastas, famílias adotivas, famílias de responsáveis, famílias de pais
monogâmicos e não-monogâmicos e famílias de pais do mesmo sexo. Em cada um
desses casos, “família é família”, e devemos nos envolver com a realidade em
que vivemos, não no modo como desejamos que ela seja. Também devemos avaliar a
natureza das relações entre pais e seus filhos, com base em evidências
científicas, não em preconceitos especulativos injustificados.
Enquanto o discurso do Papa
Francisco se foca na complementaridade como aplicada ao casamento entre homens
e mulheres, as quatro nuances que ele introduz abrem a possibilidade de uma
reflexão teológica e antropológica contínua sobre esses conceitos e suas
implicações normativas para todas as relações humanas, heterossexuais,
homossexuais e bissexuais.
IHU On-Line – Até que ponto a
posição de Francisco sobre pessoas LGBT e sobre as mulheres trazem novas
perspectivas às suas vidas?
Todd A. Salzman e Michael G.
Lawler - Por meio de palavras e ações, Francisco tem demonstrado uma inclusão e
aceitação muito maior de membros da comunidade LGBT. De sua declaração sobre
fieis gays (“quem sou eu para julgar...”) às suas reuniões e acolhidas com um homem
trans, suas declarações e ações indicam uma Igreja inclusiva que acolhe todas
as pessoas, especialmente aquelas que foram marginalizadas, em parte, devido ao
ensino do magistério. Estes gestos fornecem uma perspectiva positiva e
bem-vinda que pode transformar as perspectivas de muitos dentro da comunidade
LGBT, que passam por julgamento e condenação pela Igreja.
Para completar o processo de
inclusão, no entanto, Francisco deve se mover para além das interações sociais
e mudar a linguagem do ensinamento oficial da Igreja em relação a
homossexualidade. Classificá-la como orientação homossexual, inclinação ou
tendência “objetivamente desordenada” com uma forte propensão para “atos
intrinsecamente malignos” comunica uma forte mensagem de julgamento e condenação
sobre a própria identidade sexual de alguém.
A preocupação de Francisco com as
mulheres (e seus filhos), especialmente em termos de pobreza, e seus alertas
para responder a estruturas sociais que perpetuam a pobreza e a opressão
trouxeram esperança para muitas mulheres. Como afirmamos na segunda questão
desta entrevista, seu pedido por uma “teologia das mulheres” deve ser seguido
de um maior diálogo e integração mais completa de mulheres em papeis
ministeriais e de liderança na Igreja.
IHU On-Line – Levando em conta o
livro “A Pessoal Sexual” (“The Sexual Person”) , quais aspectos deste e de
outros pontos de vista do Papa Francisco apontam para uma nova moralidade
sexual mais aberta na Igreja?
Todd A. Salzman e Michael G.
Lawler - Em nosso livro, “A Pessoa Sexual”, destacamos uma antropologia sexual
fundamentada em uma “complementaridade holística”. Esta complementaridade
inclui orientação, complementaridades pessoais e biológicas e a integração e
manifestação de todos os três acima em atos sexuais honestos, apaixonados e
comprometidos que facilitam a capacidade de uma pessoa de amar a Deus, o
próximo e a si mesmo de uma maneira mais profunda e santificada.
Duas implicações imediatas para a
ética sexual católica se seguem caso se abraça a complementaridade holística
como nosso principio fundamental para atos sexuais verdadeiramente humanos. O
primeiro é que a norma moral absoluta do magistério que proíbe atos
homossexuais deve, no mínimo, ser reexaminada. Sem uma consideração prévia da orientação
sexual de uma pessoa, um ato sexual que viola a complementaridade
hetero-genital não pode mais ser considerada ipso facto intrinsicamente ou
objetivamente desordenada. A complementaridade genital é moralmente relevante
para determinar a moralidade de atos sexuais verdadeiramente humanos, mas não é
fundamental. A moralidade da complementaridade genital em atos sexuais deve ser
determinada primariamente sobre a luz da orientação e da complementaridade
pessoal.
A segunda implicação para uma
ética sexual católica que se segue à primeira é que a fundamentação das normas
morais sexuais pode precisar ser redefinida. Atualmente, o ensino do magistério
pressupõe, tanto para homossexuais quanto para heterossexuais, uma relação
intrínseca entre complementaridade pessoal e biológica, na qual a
complementaridade hetero-genital é primária e fundamental. Nesta fundamentação,
certos atos sexuais são, ipso facto, imorais por violarem a complementaridade
hetero-genital – independentemente da orientação sexual e do sentido relacional
do ato para a complementaridade pessoal.
Relação entre orientação e
complementaridade pessoal e genital
Na complementaridade holística,
há uma relação intrinsecamente integrada entre orientação e complementaridade
pessoal e genital que serve como fundamento para normas sexuais. Nesta relação,
tanto heteros quanto homossexuais, a orientação e a complementaridade pessoal
são primárias, e são o que determinam o que constitui uma autêntica
complementaridade genital em um ato sexual particular. Caso a complementaridade
da orientação indique que uma pessoa é de orientação homossexual, então a
complementaridade pessoal deve indicar que a complementaridade genital
autêntica seria masculino-masculino ou feminino-feminino.
Atualmente, no ensino do magistério,
a complementaridade hetero-genital é a fundamentação de dimensão primária para
a relação essencial entre complementaridade biológica e pessoal. Em nosso
modelo de complementaridade holístico, a orientação e complementaridade pessoal
são as dimensões fundamentais para uma relação essencialmente integrada. As
nuances do Papa Francisco ao termo complementaridade, discutidas na terceira
questão, abrem caminho para o diálogo entre nossa e a sua compreensão de
complementaridade, que teria profundas implicações normativas para uma moral
sexual renovada na Igreja.
IHU On-Line – Vocês acreditam que
uma nova moralidade sexual renovaria o desejo dos fiéis em procurar a Igreja?
Por que?
Todd A. Salzman e Michael G.
Lawler - Acreditamos que a Igreja não precisa de uma nova moralidade sexual,
mas de uma nova abordagem para a moralidade sexual. A atual, alega a Igreja, é
baseada na lei natural, mas baseada em ações físicas e biológicas (atividade
sexual, contracepção, por exemplo). Há outra abordagem sendo seguida por
teólogos morais contemporâneos, incluindo nós mesmos. Desenvolvemos uma
abordagem baseada não nas ações, mas nas pessoas que fazem estas ações.
Acreditamos que esta abordagem é mais verdadeira para a realidade humana,
porque leva em conta não apenas as ações físicas, mas também os significados
pessoas tidos ao fazer estas ações. O julgamento moral envolvido, então, deve
levar em conta não apenas a ação, mas o contexto da ação. Matar uma pessoa
inocente é sempre imoral; matar em legítima defesa ou em situação de guerra
legítima não. Assim também deve ser com o intercurso sexual.
Forçar o intercurso com uma
mulher ou homem que não o deseja é sempre imoral; intercurso entre casais que
se amam mutuamente pode ser perfeitamente moral, com todos os sentidos no
contexto sendo positivos. A abordagem atual da Igreja é absoluta; realizar uma
ação proibida, ipso facto, é imoral; nossa abordagem proposta é relacional,
permitindo que a ação possa ser moral ou imoral, dependendo do contexto e
sentido do ato sexual para as pessoas. Há sinais de que o Papa Francisco
reconhece a legitimidade de nossa abordagem. Seu comentário sobre os gays
(“Quem sou eu para julgar?”) reconhece a impossibilidade, e a imoralidade, de
fazer julgamentos sem conhecer todo o contexto da ação. Acreditamos que muitos
dos fiéis estão machucados e feridos, em muitos casos devido aos ensinamentos
da Igreja sobre sexualidade humana (ex: membros da comunidade LGBT e pessoas
divorciadas e que casaram novamente) e uma abordagem fundamentada nas pessoas
para julgamentos morais pode ser a cura para estas feridas, resgatando alguns
fiéis para a Igreja.
O divórcio com a Igreja
Há diversas evidências
estatísticas, por exemplo, de que o tratamento de pessoas divorciadas e que se
casaram novamente sem anulação levou milhares para longe da Igreja. Eles não
abandonaram a crença em Cristo, apenas a crença na Igreja, que não aprendeu com
o próprio Cristo. O Papa Francisco parece reconhecer isso. Sua carta anunciando
o Jubileu da Misericórdia para 2016, ensina que “a própria credibilidade da
Igreja é vista no modo como ela demonstra amor misericordioso e compassivo”.
Acreditamos que muitos desses fiéis estão procurando por uma abordagem
significativa para a sexualidade humana, fundada em pessoas e relações, não em
ações e na biologia, e nossa abordagem proposta – acreditamos – permitiria que
a Igreja destacasse este amor misericordioso e compassivo. Na complexidade da
realidade humana, uma resposta única para tudo é insuficiente”.
IHU On-Line – Como vocês percebem
o fim da controvérsia entre a LCWR e o Vaticano? O que ela significa?
Todd A. Salzman e Michael G.
Lawler - Acreditamos que a resolução desta controvérsia é resultado do
"feminismo" do Papa Francisco. Ele tem sido bastante enfático sobre a
igualdade entre mulheres e homens e, inclusive apontou mulheres para posições
sênior no Vaticano. O exame e julgamento de mulheres religiosas foi iniciado
por uma administração - tanto americana quanto romana - que era notavelmente
patriarcal e que acreditava e exigia a submissão feminina para com os homens,
mesmo no caso de religiosas mulheres para com bispos que não eram nem tão
inteligentes e nem tão reconhecidos como cristãos pela comunidade quanto elas.
Essa discrepância, na verdade, incomodou bispos americanos, que pressionaram o
Vaticano para abrirem investigação contra freiras americanas. Houve ainda, como
via de regra é o caso nos Estados Unidos, um fator econômico. Certos bispos
americanos, cujos fundos diocesanos foram bastante prejudicados devido a pagamentos
de processos de homens e mulheres abusados sexualmente por padres, queriam o
controle dos fundos em posse da LCWR.
O julgamento que exonerou a LCWR
e as religiosas mulheres dos Estados Unidos de todas as acusações indica que
elas podem dar prosseguimento, sem preocupações, a todas as suas diversas ações
cristãs fundamentais pela a Igreja, pela educação, saúde e, acima de tudo, pelo
atendimento aos marginalizados; um grupo cada vez maior nos Estados Unidos.
IHU On-Line – De que forma os
Estados Unidos vê/compreende o Papa Francisco?
Todd A. Salzman e Michael G.
Lawler - Não há duvidas de que a maioria vê Francisco como um sopro de ar
fresco. A postura condenatória das administrações recentes foi substituída pelo
"amor misericordioso e compassivo", que mostra as pessoas que
Francisco compreende e aprecia a complexidade e dificuldade de suas vidas. Um
exemplo da mudança na visão dos católicos americanos diz respeito ao casamento
gay. Em 2004, 36% dos católicos apoiava o casamento gay; em 2015, o número é de
pouco menos de 60%.
Não temos duvidas de que a
abordagem compreensiva e piedosa de Francisco (“Quem sou eu para julgar?”),
frase que pode ser vista até mesmo no para-choque de carros nos EUA, tem
contribuindo para a mudança.
Há, obviamente, uma minoria de
católicos que se incomodaram e opuseram ao que eles temem seja um abandono da
moralidade sexual católica tradicional. Muitas destas pessoas estão em posições
de poder na Igreja e na sociedade secular americana, e tiveram influência no
Vaticano no passado (e ainda têm, por meio do cardeal Burke). Esta minoria já
está fazendo lobby para não levar a sério o que Francisco falar em sua visita
aos Estados Unidos. Eles até mesmo o acusaram de dizer uma coisa por outra.
Entretanto, ainda são minoria, e podem ser superados pelo apoio a Francisco e
suas posições pela maioria dos católicos de base.
IHU On-Line – Quando Francisco
visitar os EUA por ocasião do Encontro Mundial de Famílias, quais novas
perspectivas devem ser abertas?
Todd A. Salzman e Michael G.
Lawler - Esta é uma pergunta difícil de responder com precisão. Espera-se, como
mencionado acima, duas reações para presença de Francisco no País: a de uma
grande maioria e a de uma pequena, mas poderosa minoria. Como Francisco
articulará para atender as expectativas de ambos os grupos? Será que ele deseja
fazer isso? Não há dúvidas de que a família, como tradicionalmente
compreendida, está sendo problematizada nos EUA, como abordaremos na próxima
questão.
Americanos, de maneira geral, e
católicos, em particular, precisam ouvir uma mensagem forte sobre o valor da
família, o valor da estabilidade familiar e parental para as crianças, e as
implicações negativas de divórcios mais ágeis e facilitados. Temos duvidas de que,
em uma sociedade em que o valor inalienável da liberdade individual é tão
enraizado, se qualquer mensagem sobre esses problemas será seguida a longo
prazo. Haverá, sem dúvidas, entusiasmo imediato. Mas esse entusiasmo
rapidamente desvanecerá se aqueles responsáveis pelas doutrinas familiares não
aceitarem o desafio e não responderem a ele ao longo do tempo.
Esperamos por uma grande e
importante questão; que Francisco estenda a definição do que inclui a família
para quem Deus criou os bens do mundo. Toda mulher e homem nesta família
ampliada possui um direito inalienável de compartilhar dos bens do mundo. Caso
não possam fazê-lo, tem igualmente o direito de esperar que aqueles que possuem
acesso a estes bens - por vezes, inclusive, mais do que o seu quinhão -
compartilhem com os desprovidos.
Se o discurso de Francisco sobre
a família puder estender a visão dos americanos e dos católicos americanos para
além da perspectiva "eu sozinho no mundo" para uma perspectiva
"nós, juntos no mundo", isso seria de grande benefício tanto para as
pequenas unidades de famílias, individualmente, quanto para a grande unidade
que é a família da humanidade.
IHU On-Line – Como vocês avaliam
o progresso feito até hoje do pontificado de Francisco no Sínodo dos Bispos
sobre a Família? Vocês acreditam que a instituição da Família está em crise?
Por quê?
Todd A. Salzman e Michael G.
Lawler - Acreditamos que e Francisco avançou bastante com o Sínodo dos Bispos.
No Sínodo de 2014, ele permitiu uma discussão aberta e abrangente sobre uma
diversidade de tópicos relacionada a ética sexual católica. Esta discussão
trouxe a tona uma série divergência de opiniões no tópico da contracepção,
intercurso sexual e casamento após divórcio sem anulação. Claramente, Francisco
queria tal discussão. Ele não fez nada para interferir nela, como teriam feito
Bento XVI e João Paulo II. O Sínodo sobre a Família de 1980 recomendou a João
Paulo um estudo da antiga prática Ortodoxa da oikonomia, que permite o
casamento após divórcio depois de um período aceitável de penitência e
reconciliação. Esta reconciliação não exige a rejeição da segunda esposa.
No entanto, nem João Paulo e nem
Bento fizeram nada sobre esta recomendação sinodal. A Familiaris consortio de
João Paulo foi sua reação oficial para o Sínodo e suas recomendações e, ainda
que nele houvessem muitas coisas boas, tudo que fazia a respeito do divórcio e
do segundo casamento sem anulação era reafirmar a doutrina tradicional.
Francisco parece mais aberto à discussão desta questão. Ele apontou homens e
mulheres leigos para que respondessem ao Sínodo. Agora, tudo que precisa fazer
é fornecer a eles o direito de votar.
Crise na família
Não há dúvida de que a
instituição da família está em crise profunda. No mundo Ocidental, a maioria
dos jovens estão preferindo morar juntos ao invés de se casarem, e mesmo
aqueles que optam por se casar, mais tarde, acabam optando pelo divórcio em
grande escala - o que traz graves impactos negativos para o casal
(especialmente as esposas) e seus filhos. Judith Wallerstein em Second Chances:
Men, Women, and Children a Decade after Divorce, detalha este impacto negativo
e propõe questões realistas que precisam ser resolvidas antes que a situação
possa melhorar.
Será que o próximo Sínodo se
atentará a esta situação ou vai apenas, mais uma vez, simplesmente repetir
palavras piedosas sobre ser fiel à palavra de Jesus - mesmo que regimes de
casamento/divórcio da Igreja remetam a outras realidades históricas antes de serem
palavras de Jesus-? A prática Ortodoxa da oikonomia na fidelidade, alegam eles,
vem das palavras de Jesus. Os ignorantes teológicos, dos quais nem todos são
leigos, é claro, não compreendem a História.
IHU On-Line – Como avaliam a
atual política do Vaticano sobre o abuso sexual cometido pelo clero?
Todd A. Salzman e Michael G.
Lawler - A política atual do Vaticano sobre o abuso sexual cometido pelo clero
é bastante forte, se for cumprida. Há uma anunciada tolerância zero para padres
abusadores, e há diversos exemplos internacionais desta política sendo
aplicada. A política funciona apenas, é claro, até o ponto em que cada bispo
individualmente a segue, e tem havido diversos casos bem noticiados nos EUA de
bispos que ignoraram ou falsearam esta política. Na análise final, uma política
forte é apenas uma medida paliativa para reduzir o abuso sexual cometido por
clérigos e não-clérigos.
Muito mais importante que isso é
a educação, que vai na raiz do problema em cada caso individual. Educação sobre
igualdade de dignidade, incluindo a dignidade sexual, de todas as pessoas
humanas é necessária para todos os homens e mulheres. É necessária, ainda,
educação específica para o clero sobre como a dignidade sexual de cada homem e
mulher se relaciona aos seus votos de celibato. Houve casos em que padres
abusadores argumentaram que sua conduta abusiva não representava uma violação
de seus votos de celibato pois este estava relacionado apenas a conduta sexual
com mulheres. Não acreditamos, como alguns tem tão contundentemente sugerido,
que o celibato está na raiz do abuso sexual cometido pelo clero, mas sim na
compreensão ingênua do que ele significa, bem como do significado de uma
relação sexual.
Além disso, a contínua prática de
proteção institucional da Igreja para além de crianças e jovens inocentes e
vulneráveis reflete uma eclesiologia que está sendo transformada no Papado de
Francisco. Sua mudança de foco eclesiológico de uma Igreja de poder, autoridade
e controle, para uma Igreja de serviço, diálogo e comunhão, prioriza a
segurança, proteção e assistência às crianças do que segurança, proteção e
assistência à reputação institucional da Igreja. Francisco é um defensor
convicto dos pobres e vulneráveis, especialmente das crianças, e as políticas
sobre abuso sexual devem ser cumpridas com a rápida remoção de um sacerdote que
cometa abuso infantil, assim como bispos que no passado, presente ou futuro
tentem dar cobertura aos abusadores - ou que utilizem meios jurídicos para
oprimir e assediar as vítimas do abuso sexual.
IHU On-Line – Como teólogos da
lei moral católica, qual é a Igreja que gostariam de ver destacada pelo
pontificado de Francisco e as novas configurações de família?
Todd A. Salzman e Michael G.
Lawler - Há dois modelos principais da Igreja em atividade no catolicismo
contemporâneo. Um é o modelo hierárquico, que é praticamente uma pirâmide, com
os episcopados em um pontiagudo topo e os leigos em uma larga base. Este modelo
é autoritário e todas as decisões, teológicas ou não, são tomadas pelo Magistério
episcopal. O outro é um modelo de comunhão, em que os fiéis, "dos bispos
até o último membro dos leigos" (Lumen gentium 12), estão ativamente
envolvidos nas políticas da Igreja e não podem errar quando mostram
"concordância universal em assuntos de fé e morais” (ibid.). A Igreja foi
o principal objeto de atenção do Concílio Vaticano II. O documento do Concílio
na Igreja, Lumen gentium, é seu documento principal, e a fundação deste texto
central, por concordância quase unânime, é a noção teológica da comunhão.
Francisco já deu sinais de que
aprecia este modelo de comunhão, e gostaríamos que ele continue a desenvolver
este modelo encontrando maneiras de envolver os leigos, tanto progressistas
quanto conservadores, nas políticas da Igreja. Percebemos que uma Igreja
organizada em um modelo de comunhão é muito mais difícil de ser comandada, mas
apenas esta Igreja - na qual todos estão comprometidos com o "amor
misericordioso e compassivo" para cada um e para todos os seus irmãos e
irmãs - será capaz de superar as atuais divisões burocráticas, alheias a
caridade e não-cristãs que hoje apresentam o Corpo de Cristo ao mundo.
O modelo de comunhão
eclesiológica também fornece maior consideração e autoridade para uma
consciência bem informada dos fiéis. Reconhecendo que a autoridade desta
consciência possui profundas implicações no modo de vida dos católicos e suas
famílias. Os dados sociológicos sobre católicos e suas posturas sobre assuntos
como relacionamento homossexual, casamento com pessoas do mesmo sexo, contracepção,
pessoas que vivem juntas sem estarem casadas, divorciados e aqueles em segundo
casamento, mostram que muitos católicos vivem segundo suas consciências,
independente da condenação consistente destes atos. Uma comunhão eclesiológica
respeita a autoridade da consciência bem informada e promove diálogos e
discernimento de modo a respeitas as perspectivas destas consciências.
Por sua vez, uma hierarquia
eclesiológica tenta negar e suprimir a autoridade da consciência bem informada
quando as conclusões a que chega discordam das normas restritivas e absolutas
do magistério hierárquico sobre as questões sexuais e familiares. Esperamos que
Francisco encoraje os fiéis a se informarem para desenvolver suas consciências,
e a se empoderar para segui-las, mesmo que estas posturas vão de encontro aos
ensinamentos falíveis do magistério sobre normas sexuais. A tensão criada por
conflito pode ser ocasião para diálogo e discernimento, o que é encorajado pelo
Papa Francisco no Sínodo ordinário e extraordinário da Família.
Por Márcia Junges e João Vitor
Santos | Tradução Andriolli Costa
Fonte: Ihu
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