terça-feira, 26 de maio de 2015

A mudança que veio com Papa Francisco: da ética sexual para a ética social

A  própria mudança de Francisco de uma ética sexual para uma ética social é uma mudança extremamente necessária na perspectiva do magistério moral. Ele percebe que a Igreja se tornou “obcecada” com questões como o aborto, contracepção e casamento gay. Ao invés disso, ela precisa se focar em servir os pobres e oprimidos, e a confrontar o pecado social que leva e perpetua a pobreza.
“Papa Francisco tem pedido também por uma ‘teologia das mulheres’, o que é um passo encorajador.

 Entrevista especial com Todd A. Salzman e Michael G. Lawler

"Esperamos que Francisco encoraje os fiéis a se informarem para desenvolver suas consciências, e a se empoderar para segui-las, mesmo que estas posturas vão de encontro aos ensinamentos falíveis do magistério sobre normas sexuais", analisam os teólogos moralistas.

“A maioria vê Francisco como um sopro de ar fresco”. Assim Todd A. Salzman e Michael G. Lawler definem como o atual pontificado é visto nos Estados Unidos. Para eles, é mais ou menos isso que Francisco faz com conceitos e posições da Igreja. Ele não os modifica, mas é como se abrisse uma janela. Por essa abertura há entrada de oxigênio, capaz de alimentar e trazer luz às discussões. É um começo. Um exemplo é quando os professores tratam do ensino moral segundo a leitura de Bergoglio.
“Há certamente uma evolução no tom de Francisco quando se trata do ensino moral”, argumentam. Porém, alertam: “Para que tal evolução ocorra, no entanto, Francisco precisa traduzir esta ternura e amor de uma perspectiva pastoral em mudanças substantivas no ensino doutrinal”.

Os teólogos refletem sobre o papel da mulher na Igreja. “Papa Francisco tem pedido por uma ‘teologia das mulheres’, o que é um passo encorajador. No entanto, este pedido negligencia o fato de que não são poucas as fontes sobre teologia feminista e teologia das mulheres que claramente articulam o papel e a função das mulheres na Igreja ao longo da história.” E também passam por temas como a configuração das famílias nos dias de hoje. “‘Família é família’, e devemos nos envolver com a realidade em que vivemos, não no modo como desejamos que ela seja”, destacam ao pontuarem a necessidade de compreender as pluralidades que constituem as famílias hoje.

Num tom sóbrio, sempre destacando os avanços de Francisco sem desconsiderar os desafios que precisa enfrentar para a efetivação das suas ideias na prática, os entrevistados ainda comentam sobre união homoafetiva, mudança de uma ética sexual para social, misericórdia popular, acolhimento a divorciados e comunidade LGBT, entre outros temas. Para entender o que inspira o Papa, os professores ainda buscam referências no Concílio Vaticano II.

Todd A. Salzman é Ph.D pela Universidade Católica de Louvain, na Bélgica.

Michael G. Lawler é graduado em Matemática pela Universidade de Dublin e em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana – PUG, em Roma. É Ph.D em Teologia Sistemática pelo Instituto Aquinas de Teologia, em Saint Louis.

Ambos lecionam no departamento de Teologia da Universidade de Creighton, nos Estados Unidos. Ambos são autores do importante livro A Pessoa sexual. Por uma antropologia católica renovada, traduzido para a língua portuguesa e publicado, em 2012, pela Editora Unisinos.

A entrevista foi concedida por ambos à IHU On-Line e foi publicada na revista "E sopra um vento de ar puro... Os dois anos de Papa Francisco em debate", que pode ser acessada clicando aqui.

Confira a entrevista.



  Lawler (à esquerda) e Salzman Fotos: creighton.edu

IHU On-Line – Quais aspectos do Papado de Francisco são os mais relevantes em relação ao magistério moral?

Todd A. Salzman e Michael G. Lawler - Há dois aspectos fundamentais no Papado do Papa Francisco relevantes para o magistério moral. O primeiro aspecto é a mudança da eclesiologia de Francisco da de seus predecessores (como veremos na última questão). Quando comparada com a eclesiologia mais hierárquica e autoritária dos Papas João Paulo II e Bento XV , a eclesiologia de Francisco é uma tentativa de realizar a autêntica visão eclesiológica do Concílio Vaticano II , com sua ênfase na fraternidade ou na eclesiologia do povo de Deus. A visão eclesiológica de Francisco é evidente em sua ênfase de que o clero e os episcopados precisam escutar e servir os fiéis.

Francisco "exortou os sacerdotes do mundo a levarem a cura da graça de Deus a todos os necessitados, a estarem próximos dos marginalizados e a serem ‘pastores que vivem com o cheiro de suas ovelhas’”. Criticou também a cúria romana, afirmando que era a lepra do Papado: Ela cuida dos interesses do Vaticano que ainda são, em grande parte, interesses temporais. Essa visão vaticano-cêntrica negligencia o mundo ao seu redor, e diz que vai fazer de tudo para mudá-la. Suas tentativas de centrar tanto o clero quanto o episcopado no serviço ao povo de Deus pode ter profundas implicações sobre o ensino moral. Quando os clérigos são encarregados de viverem com as ovelhas, essa experiência não pode deixar de transformar suas perspectivas e, com sorte, talvez o modo como pensam sobre questões morais de maneira pastoral e sobre os ensinamentos da moral do magistério passe a ser visto à luz desta perspectiva transformada.

Da ética sexual a ética social

Em segundo lugar, a própria mudança de Francisco de uma ética sexual para uma ética social é uma mudança extremamente necessária na perspectiva do magistério moral. Ele percebe que a Igreja se tornou “obcecada” com questões como o aborto, contracepção e casamento gay. Ao invés disso, ela precisa se focar em servir os pobres e oprimidos, e a confrontar o pecado social que leva e perpetua a pobreza. Há muito se diz que o magistério moral possui duas abordagens éticas fundamentalmente diferentes, dependendo do fato de responderem à ética social ou à ética sexual. A abordagem da ética social está evoluindo (historicamente consciente) em diálogo com contextos sociais, históricos e culturais, e fornece princípios gerais (como bem comum) para guiar as pessoas na hora de discernir ações moralmente responsáveis. A abordagem da ética sexual é estática (classicista), restritiva a um modelo único, não considera contextos sociais, históricos e culturais e fornece normas punitivas absolutas que comandam pessoas a não realizarem certas ações.

O exemplo filipino

A tragédia da inconsistência de abordagens entre a ética social e sexual é resumida na viagem do Papa Francisco às Filipinas. Nesta viagem, uma jovem garota filipina – que sobreviveu nas ruas recolhendo comida do lixo e dormindo sobre papelão, perguntou: “Por que Deus deixou isso acontecer conosco?”. A pobreza é endêmica nas Filipinas; uma nação de cerca de 100 milhões de pessoas, em que mais de um quarto da população vive na linha da pobreza, e 36% das crianças permanecem em condição de miséria. Muitas destas crianças vivem nas ruas, uma vez que suas famílias não têm condições de sustenta-las em casa.

Por outro lado, os bispos das Filipinas tem combativo a legalização de medidas contraceptivas no país durante anos. O acesso a tais medidas não apenas ajudaria a promover a paternidade responsável e a reduzir o número de crianças desabrigadas, mas ainda poderia reduzir a mortalidade durante o parto – devido a complicações relacionadas à gravidez. O acesso legal à contracepção poderia permitir aos pais o controle de natalidade, de modo a limitar o tamanho de suas famílias e reduzir a mortalidade infantil e a mendicância por pobreza. O ensino social católico promove esta lei; o ensino sexual católico proíbe tal lei.

Abertura para diálogos e discernimentos

A mudança de foco de Francisco para uma ética social pode ajudar a direcionar esta desconexão ao permitir uma maior integração do ensino social e sexual católico, que observa contextos econômicos, culturais, sociais e políticos e apresenta princípios para guiar os fiéis católicos para a paternidade/maternidade responsável, com uma consciência bem formada dentro destes contextos. A mudança eclesiológica e o foco na justiça social pode abrir oportunidades para diálogos e discernimentos sobre o conteúdo do ensino sexual do magistério. É esse ensinamento que continua a alienar muitos dos fiéis.

IHU On-Line – Em que sentido você percebe uma evolução e quais pontos precisam de mais atenção do pontífice?

Todd A. Salzman e Michael G. Lawler - Há certamente uma evolução no tom de Francisco quando se trata do ensino moral. Algo que o cardeal Kasper chama de “revolução da ternura e do amor”. Esta revolução pode indicar uma evolução no conteúdo do ensinamento moral. Para que tal evolução ocorra, no entanto, Francisco precisa traduzir esta ternura e amor de uma perspectiva pastoral em mudanças substantivas no ensino doutrinal. O Sínodo da Família 2015 vai fornecer uma indicação clara da evolução no ensinamento moral da Igreja sobre sexualidade, ou se este permanecerá como é, embora com uma ênfase na misericórdia e compaixão.

Acreditamos que se uma evolução não ocorrer no ensino sexual católico, especialmente no que diz respeito a contracepção, homossexualidade, divórcio e novos casamentos, o entusiasmo dos fiéis para com as mensagens positivas de ternura, amor e misericórdia do Papa Francisco vão perder seu momento. E as pessoas continuarão a deixar a Igreja Católica para procurar em outro lugar alguma tradição que encarne amor, ternura e misericórdia em relação às normas sexuais morais.

Mulher na Igreja

O papel e função das mulheres na Igreja também precisa de mais atenção. Papa Francisco tem pedido por uma “teologia das mulheres”, o que é um passo encorajador. No entanto, este pedido negligencia o fato de que não são poucas as fontes sobre teologia feminista e teologia das mulheres que claramente articulam o papel e a função das mulheres na Igreja ao longo da história e fornecem perspectivas teologicamente fundadas sobre como incluir vozes femininas nas estruturas de governança e ministérios eclesiais, o que inclui a ordenação de mulheres ao diaconato e ao sacerdócio.

IHU On-Line - Quais são os pontos mais importantes nos quais Francisco demonstra um entendimento alternativo dos ensinamentos da Igreja sobre sexualidade?

Todd A. Salzman e Michael G. Lawler - As declarações recentes do Papa Francisco sobre complementaridade indicam uma evolução em seu pensamento sobre este conceito em relação ao entendimento do Papa João Paulo II. Pode indicar uma compreensão alternativa sobre a antropologia sexual e, por consequência, uma compreensão alternativa sobre as normas que guiam a sexualidade humana.

Para João Paulo, a complementaridade significava que duas realidades estavam interligadas, produzindo um todo que nem é e nem pode estar sozinho. Ele desenvolve esta noção seguindo linhas de gênero culturalmente baseadas de masculino/feminino que ele apresenta como linhas biologicamente baseadas como masculino/feminino. As implicações normativas do entendimento biológico da complementaridade de João Paulo significa que apenas atos sexuais do tipo heterossexual, matrimonial e reprodutivo eram moralmente aceitáveis. Todos os outros atos sexuais eram intrinsecamente ruins.

Papa Francisco abre seu tratamento da complementaridade com uma descrição genérica, que “se refere a situações em que um, de dois elementos, adiciona, completa ou preenche uma lacuna do outro”. Mais do que isso, ele acrescenta que a complementaridade “é muito mais do que isso”. Ele fornece quatro nuances para nós pensarmos teologicamente sobre este “mais”. A primeira nuance é uma nuance das escrituras. Uma referência à carta de São Paulo aos Coríntios, que celebra o fato de que “o Espírito dotou cada um de nós com diferentes dons, de modo que, da mesma maneira como os membros do corpo humano trabalham em conjunto para o bem do todo, os dons podem trabalhar em conjunto para o benefício de cada um (cf.1 Cor 12).”

A segunda nuance de Francisco é uma ênfase na complementaridade como uma ideia dinâmica e em evolução, não a “ideia simplista de que todos os papeis e relações entre dois sexos estão fixados em um padrão único e estático”.

A terceira nuance diz respeito à “crise ecológica” que aflige o casamento e a família. “Ecologia” é originalmente um conceito biológico que se refere às relações entre organismos vivos e seu ambiente, mas foi estendido em nosso tempo para incluir as relações entre grupos humanos, os padrões sociais criados por estas relações e os recursos materiais disponíveis para eles. Francisco claramente tem em mente este significado contemporâneo de ecologia, a inclusão da ideia de complementaridade na ecologia humana e o papel da complementaridade nas crises presentes nesta ecologia. Ele nos convida a refletir sobre complementaridade e o modo como os pecados sociais limitam sua plena realização e impacto para “promover uma nova ecologia humana”. Pecados sociais que criam uma ecologia social que restringe o impacto total da complementaridade incluem a pobreza, o racismo, o sexismo, a homofobia, a discriminação, o patriarcado e toda outra realidade social que frustrar e vai contra a dignidade e o relacionamento humano. O convite do Papa é para que encontremos uma definição mais complete e dinâmica da complementaridade que, simultaneamente, exponha estas ameaças à harmonia social, marital e familiar, e responda a elas.

A quarta nuance de complementaridade de Francisco é um foco na família como “fato antropológico”, que não pode ser qualificada “com base em noções ideológicas ou conceitos importantes apenas em determinado momento na história”. Experiências em nível mundial mostram que a família é definida e influenciada por instâncias culturais, históricas, sociais e legais.

Revendo conceito de família

Enquanto uma pessoa pode certamente conceber e apresentar uma noção “ideal” de família como um homem, uma mulher e seus filhos, a história e a realidade de famílias são muito mais complexas. Hoje há famílias de pais solteiros, famílias de padrastos ou madrastas, famílias adotivas, famílias de responsáveis, famílias de pais monogâmicos e não-monogâmicos e famílias de pais do mesmo sexo. Em cada um desses casos, “família é família”, e devemos nos envolver com a realidade em que vivemos, não no modo como desejamos que ela seja. Também devemos avaliar a natureza das relações entre pais e seus filhos, com base em evidências científicas, não em preconceitos especulativos injustificados.

Enquanto o discurso do Papa Francisco se foca na complementaridade como aplicada ao casamento entre homens e mulheres, as quatro nuances que ele introduz abrem a possibilidade de uma reflexão teológica e antropológica contínua sobre esses conceitos e suas implicações normativas para todas as relações humanas, heterossexuais, homossexuais e bissexuais.

IHU On-Line – Até que ponto a posição de Francisco sobre pessoas LGBT e sobre as mulheres trazem novas perspectivas às suas vidas?

Todd A. Salzman e Michael G. Lawler - Por meio de palavras e ações, Francisco tem demonstrado uma inclusão e aceitação muito maior de membros da comunidade LGBT. De sua declaração sobre fieis gays (“quem sou eu para julgar...”) às suas reuniões e acolhidas com um homem trans, suas declarações e ações indicam uma Igreja inclusiva que acolhe todas as pessoas, especialmente aquelas que foram marginalizadas, em parte, devido ao ensino do magistério. Estes gestos fornecem uma perspectiva positiva e bem-vinda que pode transformar as perspectivas de muitos dentro da comunidade LGBT, que passam por julgamento e condenação pela Igreja.

Para completar o processo de inclusão, no entanto, Francisco deve se mover para além das interações sociais e mudar a linguagem do ensinamento oficial da Igreja em relação a homossexualidade. Classificá-la como orientação homossexual, inclinação ou tendência “objetivamente desordenada” com uma forte propensão para “atos intrinsecamente malignos” comunica uma forte mensagem de julgamento e condenação sobre a própria identidade sexual de alguém.

A preocupação de Francisco com as mulheres (e seus filhos), especialmente em termos de pobreza, e seus alertas para responder a estruturas sociais que perpetuam a pobreza e a opressão trouxeram esperança para muitas mulheres. Como afirmamos na segunda questão desta entrevista, seu pedido por uma “teologia das mulheres” deve ser seguido de um maior diálogo e integração mais completa de mulheres em papeis ministeriais e de liderança na Igreja.

IHU On-Line – Levando em conta o livro “A Pessoal Sexual” (“The Sexual Person”) , quais aspectos deste e de outros pontos de vista do Papa Francisco apontam para uma nova moralidade sexual mais aberta na Igreja?

Todd A. Salzman e Michael G. Lawler - Em nosso livro, “A Pessoa Sexual”, destacamos uma antropologia sexual fundamentada em uma “complementaridade holística”. Esta complementaridade inclui orientação, complementaridades pessoais e biológicas e a integração e manifestação de todos os três acima em atos sexuais honestos, apaixonados e comprometidos que facilitam a capacidade de uma pessoa de amar a Deus, o próximo e a si mesmo de uma maneira mais profunda e santificada.

Duas implicações imediatas para a ética sexual católica se seguem caso se abraça a complementaridade holística como nosso principio fundamental para atos sexuais verdadeiramente humanos. O primeiro é que a norma moral absoluta do magistério que proíbe atos homossexuais deve, no mínimo, ser reexaminada. Sem uma consideração prévia da orientação sexual de uma pessoa, um ato sexual que viola a complementaridade hetero-genital não pode mais ser considerada ipso facto intrinsicamente ou objetivamente desordenada. A complementaridade genital é moralmente relevante para determinar a moralidade de atos sexuais verdadeiramente humanos, mas não é fundamental. A moralidade da complementaridade genital em atos sexuais deve ser determinada primariamente sobre a luz da orientação e da complementaridade pessoal.

A segunda implicação para uma ética sexual católica que se segue à primeira é que a fundamentação das normas morais sexuais pode precisar ser redefinida. Atualmente, o ensino do magistério pressupõe, tanto para homossexuais quanto para heterossexuais, uma relação intrínseca entre complementaridade pessoal e biológica, na qual a complementaridade hetero-genital é primária e fundamental. Nesta fundamentação, certos atos sexuais são, ipso facto, imorais por violarem a complementaridade hetero-genital – independentemente da orientação sexual e do sentido relacional do ato para a complementaridade pessoal.

Relação entre orientação e complementaridade pessoal e genital

Na complementaridade holística, há uma relação intrinsecamente integrada entre orientação e complementaridade pessoal e genital que serve como fundamento para normas sexuais. Nesta relação, tanto heteros quanto homossexuais, a orientação e a complementaridade pessoal são primárias, e são o que determinam o que constitui uma autêntica complementaridade genital em um ato sexual particular. Caso a complementaridade da orientação indique que uma pessoa é de orientação homossexual, então a complementaridade pessoal deve indicar que a complementaridade genital autêntica seria masculino-masculino ou feminino-feminino.

Atualmente, no ensino do magistério, a complementaridade hetero-genital é a fundamentação de dimensão primária para a relação essencial entre complementaridade biológica e pessoal. Em nosso modelo de complementaridade holístico, a orientação e complementaridade pessoal são as dimensões fundamentais para uma relação essencialmente integrada. As nuances do Papa Francisco ao termo complementaridade, discutidas na terceira questão, abrem caminho para o diálogo entre nossa e a sua compreensão de complementaridade, que teria profundas implicações normativas para uma moral sexual renovada na Igreja.

IHU On-Line – Vocês acreditam que uma nova moralidade sexual renovaria o desejo dos fiéis em procurar a Igreja? Por que?

Todd A. Salzman e Michael G. Lawler - Acreditamos que a Igreja não precisa de uma nova moralidade sexual, mas de uma nova abordagem para a moralidade sexual. A atual, alega a Igreja, é baseada na lei natural, mas baseada em ações físicas e biológicas (atividade sexual, contracepção, por exemplo). Há outra abordagem sendo seguida por teólogos morais contemporâneos, incluindo nós mesmos. Desenvolvemos uma abordagem baseada não nas ações, mas nas pessoas que fazem estas ações. Acreditamos que esta abordagem é mais verdadeira para a realidade humana, porque leva em conta não apenas as ações físicas, mas também os significados pessoas tidos ao fazer estas ações. O julgamento moral envolvido, então, deve levar em conta não apenas a ação, mas o contexto da ação. Matar uma pessoa inocente é sempre imoral; matar em legítima defesa ou em situação de guerra legítima não. Assim também deve ser com o intercurso sexual.

Forçar o intercurso com uma mulher ou homem que não o deseja é sempre imoral; intercurso entre casais que se amam mutuamente pode ser perfeitamente moral, com todos os sentidos no contexto sendo positivos. A abordagem atual da Igreja é absoluta; realizar uma ação proibida, ipso facto, é imoral; nossa abordagem proposta é relacional, permitindo que a ação possa ser moral ou imoral, dependendo do contexto e sentido do ato sexual para as pessoas. Há sinais de que o Papa Francisco reconhece a legitimidade de nossa abordagem. Seu comentário sobre os gays (“Quem sou eu para julgar?”) reconhece a impossibilidade, e a imoralidade, de fazer julgamentos sem conhecer todo o contexto da ação. Acreditamos que muitos dos fiéis estão machucados e feridos, em muitos casos devido aos ensinamentos da Igreja sobre sexualidade humana (ex: membros da comunidade LGBT e pessoas divorciadas e que casaram novamente) e uma abordagem fundamentada nas pessoas para julgamentos morais pode ser a cura para estas feridas, resgatando alguns fiéis para a Igreja.

O divórcio com a Igreja

Há diversas evidências estatísticas, por exemplo, de que o tratamento de pessoas divorciadas e que se casaram novamente sem anulação levou milhares para longe da Igreja. Eles não abandonaram a crença em Cristo, apenas a crença na Igreja, que não aprendeu com o próprio Cristo. O Papa Francisco parece reconhecer isso. Sua carta anunciando o Jubileu da Misericórdia para 2016, ensina que “a própria credibilidade da Igreja é vista no modo como ela demonstra amor misericordioso e compassivo”. Acreditamos que muitos desses fiéis estão procurando por uma abordagem significativa para a sexualidade humana, fundada em pessoas e relações, não em ações e na biologia, e nossa abordagem proposta – acreditamos – permitiria que a Igreja destacasse este amor misericordioso e compassivo. Na complexidade da realidade humana, uma resposta única para tudo é insuficiente”.

IHU On-Line – Como vocês percebem o fim da controvérsia entre a LCWR e o Vaticano? O que ela significa?

Todd A. Salzman e Michael G. Lawler - Acreditamos que a resolução desta controvérsia é resultado do "feminismo" do Papa Francisco. Ele tem sido bastante enfático sobre a igualdade entre mulheres e homens e, inclusive apontou mulheres para posições sênior no Vaticano. O exame e julgamento de mulheres religiosas foi iniciado por uma administração - tanto americana quanto romana - que era notavelmente patriarcal e que acreditava e exigia a submissão feminina para com os homens, mesmo no caso de religiosas mulheres para com bispos que não eram nem tão inteligentes e nem tão reconhecidos como cristãos pela comunidade quanto elas. Essa discrepância, na verdade, incomodou bispos americanos, que pressionaram o Vaticano para abrirem investigação contra freiras americanas. Houve ainda, como via de regra é o caso nos Estados Unidos, um fator econômico. Certos bispos americanos, cujos fundos diocesanos foram bastante prejudicados devido a pagamentos de processos de homens e mulheres abusados sexualmente por padres, queriam o controle dos fundos em posse da LCWR.

O julgamento que exonerou a LCWR e as religiosas mulheres dos Estados Unidos de todas as acusações indica que elas podem dar prosseguimento, sem preocupações, a todas as suas diversas ações cristãs fundamentais pela a Igreja, pela educação, saúde e, acima de tudo, pelo atendimento aos marginalizados; um grupo cada vez maior nos Estados Unidos.

IHU On-Line – De que forma os Estados Unidos vê/compreende o Papa Francisco?

Todd A. Salzman e Michael G. Lawler - Não há duvidas de que a maioria vê Francisco como um sopro de ar fresco. A postura condenatória das administrações recentes foi substituída pelo "amor misericordioso e compassivo", que mostra as pessoas que Francisco compreende e aprecia a complexidade e dificuldade de suas vidas. Um exemplo da mudança na visão dos católicos americanos diz respeito ao casamento gay. Em 2004, 36% dos católicos apoiava o casamento gay; em 2015, o número é de pouco menos de 60%.

Não temos duvidas de que a abordagem compreensiva e piedosa de Francisco (“Quem sou eu para julgar?”), frase que pode ser vista até mesmo no para-choque de carros nos EUA, tem contribuindo para a mudança.

Há, obviamente, uma minoria de católicos que se incomodaram e opuseram ao que eles temem seja um abandono da moralidade sexual católica tradicional. Muitas destas pessoas estão em posições de poder na Igreja e na sociedade secular americana, e tiveram influência no Vaticano no passado (e ainda têm, por meio do cardeal Burke). Esta minoria já está fazendo lobby para não levar a sério o que Francisco falar em sua visita aos Estados Unidos. Eles até mesmo o acusaram de dizer uma coisa por outra. Entretanto, ainda são minoria, e podem ser superados pelo apoio a Francisco e suas posições pela maioria dos católicos de base.

IHU On-Line – Quando Francisco visitar os EUA por ocasião do Encontro Mundial de Famílias, quais novas perspectivas devem ser abertas?

Todd A. Salzman e Michael G. Lawler - Esta é uma pergunta difícil de responder com precisão. Espera-se, como mencionado acima, duas reações para presença de Francisco no País: a de uma grande maioria e a de uma pequena, mas poderosa minoria. Como Francisco articulará para atender as expectativas de ambos os grupos? Será que ele deseja fazer isso? Não há dúvidas de que a família, como tradicionalmente compreendida, está sendo problematizada nos EUA, como abordaremos na próxima questão.

Americanos, de maneira geral, e católicos, em particular, precisam ouvir uma mensagem forte sobre o valor da família, o valor da estabilidade familiar e parental para as crianças, e as implicações negativas de divórcios mais ágeis e facilitados. Temos duvidas de que, em uma sociedade em que o valor inalienável da liberdade individual é tão enraizado, se qualquer mensagem sobre esses problemas será seguida a longo prazo. Haverá, sem dúvidas, entusiasmo imediato. Mas esse entusiasmo rapidamente desvanecerá se aqueles responsáveis pelas doutrinas familiares não aceitarem o desafio e não responderem a ele ao longo do tempo.

Esperamos por uma grande e importante questão; que Francisco estenda a definição do que inclui a família para quem Deus criou os bens do mundo. Toda mulher e homem nesta família ampliada possui um direito inalienável de compartilhar dos bens do mundo. Caso não possam fazê-lo, tem igualmente o direito de esperar que aqueles que possuem acesso a estes bens - por vezes, inclusive, mais do que o seu quinhão - compartilhem com os desprovidos.

Se o discurso de Francisco sobre a família puder estender a visão dos americanos e dos católicos americanos para além da perspectiva "eu sozinho no mundo" para uma perspectiva "nós, juntos no mundo", isso seria de grande benefício tanto para as pequenas unidades de famílias, individualmente, quanto para a grande unidade que é a família da humanidade.

IHU On-Line – Como vocês avaliam o progresso feito até hoje do pontificado de Francisco no Sínodo dos Bispos sobre a Família? Vocês acreditam que a instituição da Família está em crise? Por quê?

Todd A. Salzman e Michael G. Lawler - Acreditamos que e Francisco avançou bastante com o Sínodo dos Bispos. No Sínodo de 2014, ele permitiu uma discussão aberta e abrangente sobre uma diversidade de tópicos relacionada a ética sexual católica. Esta discussão trouxe a tona uma série divergência de opiniões no tópico da contracepção, intercurso sexual e casamento após divórcio sem anulação. Claramente, Francisco queria tal discussão. Ele não fez nada para interferir nela, como teriam feito Bento XVI e João Paulo II. O Sínodo sobre a Família de 1980 recomendou a João Paulo um estudo da antiga prática Ortodoxa da oikonomia, que permite o casamento após divórcio depois de um período aceitável de penitência e reconciliação. Esta reconciliação não exige a rejeição da segunda esposa.

No entanto, nem João Paulo e nem Bento fizeram nada sobre esta recomendação sinodal. A Familiaris consortio de João Paulo foi sua reação oficial para o Sínodo e suas recomendações e, ainda que nele houvessem muitas coisas boas, tudo que fazia a respeito do divórcio e do segundo casamento sem anulação era reafirmar a doutrina tradicional. Francisco parece mais aberto à discussão desta questão. Ele apontou homens e mulheres leigos para que respondessem ao Sínodo. Agora, tudo que precisa fazer é fornecer a eles o direito de votar.

Crise na família

Não há dúvida de que a instituição da família está em crise profunda. No mundo Ocidental, a maioria dos jovens estão preferindo morar juntos ao invés de se casarem, e mesmo aqueles que optam por se casar, mais tarde, acabam optando pelo divórcio em grande escala - o que traz graves impactos negativos para o casal (especialmente as esposas) e seus filhos. Judith Wallerstein em Second Chances: Men, Women, and Children a Decade after Divorce, detalha este impacto negativo e propõe questões realistas que precisam ser resolvidas antes que a situação possa melhorar.

Será que o próximo Sínodo se atentará a esta situação ou vai apenas, mais uma vez, simplesmente repetir palavras piedosas sobre ser fiel à palavra de Jesus - mesmo que regimes de casamento/divórcio da Igreja remetam a outras realidades históricas antes de serem palavras de Jesus-? A prática Ortodoxa da oikonomia na fidelidade, alegam eles, vem das palavras de Jesus. Os ignorantes teológicos, dos quais nem todos são leigos, é claro, não compreendem a História.

IHU On-Line – Como avaliam a atual política do Vaticano sobre o abuso sexual cometido pelo clero?

Todd A. Salzman e Michael G. Lawler - A política atual do Vaticano sobre o abuso sexual cometido pelo clero é bastante forte, se for cumprida. Há uma anunciada tolerância zero para padres abusadores, e há diversos exemplos internacionais desta política sendo aplicada. A política funciona apenas, é claro, até o ponto em que cada bispo individualmente a segue, e tem havido diversos casos bem noticiados nos EUA de bispos que ignoraram ou falsearam esta política. Na análise final, uma política forte é apenas uma medida paliativa para reduzir o abuso sexual cometido por clérigos e não-clérigos.

Muito mais importante que isso é a educação, que vai na raiz do problema em cada caso individual. Educação sobre igualdade de dignidade, incluindo a dignidade sexual, de todas as pessoas humanas é necessária para todos os homens e mulheres. É necessária, ainda, educação específica para o clero sobre como a dignidade sexual de cada homem e mulher se relaciona aos seus votos de celibato. Houve casos em que padres abusadores argumentaram que sua conduta abusiva não representava uma violação de seus votos de celibato pois este estava relacionado apenas a conduta sexual com mulheres. Não acreditamos, como alguns tem tão contundentemente sugerido, que o celibato está na raiz do abuso sexual cometido pelo clero, mas sim na compreensão ingênua do que ele significa, bem como do significado de uma relação sexual.

Além disso, a contínua prática de proteção institucional da Igreja para além de crianças e jovens inocentes e vulneráveis reflete uma eclesiologia que está sendo transformada no Papado de Francisco. Sua mudança de foco eclesiológico de uma Igreja de poder, autoridade e controle, para uma Igreja de serviço, diálogo e comunhão, prioriza a segurança, proteção e assistência às crianças do que segurança, proteção e assistência à reputação institucional da Igreja. Francisco é um defensor convicto dos pobres e vulneráveis, especialmente das crianças, e as políticas sobre abuso sexual devem ser cumpridas com a rápida remoção de um sacerdote que cometa abuso infantil, assim como bispos que no passado, presente ou futuro tentem dar cobertura aos abusadores - ou que utilizem meios jurídicos para oprimir e assediar as vítimas do abuso sexual.

IHU On-Line – Como teólogos da lei moral católica, qual é a Igreja que gostariam de ver destacada pelo pontificado de Francisco e as novas configurações de família?

Todd A. Salzman e Michael G. Lawler - Há dois modelos principais da Igreja em atividade no catolicismo contemporâneo. Um é o modelo hierárquico, que é praticamente uma pirâmide, com os episcopados em um pontiagudo topo e os leigos em uma larga base. Este modelo é autoritário e todas as decisões, teológicas ou não, são tomadas pelo Magistério episcopal. O outro é um modelo de comunhão, em que os fiéis, "dos bispos até o último membro dos leigos" (Lumen gentium 12), estão ativamente envolvidos nas políticas da Igreja e não podem errar quando mostram "concordância universal em assuntos de fé e morais” (ibid.). A Igreja foi o principal objeto de atenção do Concílio Vaticano II. O documento do Concílio na Igreja, Lumen gentium, é seu documento principal, e a fundação deste texto central, por concordância quase unânime, é a noção teológica da comunhão.

Francisco já deu sinais de que aprecia este modelo de comunhão, e gostaríamos que ele continue a desenvolver este modelo encontrando maneiras de envolver os leigos, tanto progressistas quanto conservadores, nas políticas da Igreja. Percebemos que uma Igreja organizada em um modelo de comunhão é muito mais difícil de ser comandada, mas apenas esta Igreja - na qual todos estão comprometidos com o "amor misericordioso e compassivo" para cada um e para todos os seus irmãos e irmãs - será capaz de superar as atuais divisões burocráticas, alheias a caridade e não-cristãs que hoje apresentam o Corpo de Cristo ao mundo.

O modelo de comunhão eclesiológica também fornece maior consideração e autoridade para uma consciência bem informada dos fiéis. Reconhecendo que a autoridade desta consciência possui profundas implicações no modo de vida dos católicos e suas famílias. Os dados sociológicos sobre católicos e suas posturas sobre assuntos como relacionamento homossexual, casamento com pessoas do mesmo sexo, contracepção, pessoas que vivem juntas sem estarem casadas, divorciados e aqueles em segundo casamento, mostram que muitos católicos vivem segundo suas consciências, independente da condenação consistente destes atos. Uma comunhão eclesiológica respeita a autoridade da consciência bem informada e promove diálogos e discernimento de modo a respeitas as perspectivas destas consciências.

Por sua vez, uma hierarquia eclesiológica tenta negar e suprimir a autoridade da consciência bem informada quando as conclusões a que chega discordam das normas restritivas e absolutas do magistério hierárquico sobre as questões sexuais e familiares. Esperamos que Francisco encoraje os fiéis a se informarem para desenvolver suas consciências, e a se empoderar para segui-las, mesmo que estas posturas vão de encontro aos ensinamentos falíveis do magistério sobre normas sexuais. A tensão criada por conflito pode ser ocasião para diálogo e discernimento, o que é encorajado pelo Papa Francisco no Sínodo ordinário e extraordinário da Família.


Por Márcia Junges e João Vitor Santos | Tradução Andriolli Costa
Fonte: Ihu

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