Marinalva veio de uma família
pobre, estudou e hoje luta pelo fim da escravidão (Foto: Arquivo Pessoal)
"Eu não combatia o trabalho escravo e infantil até saber que isso existia. Depois que você descobre, quer que acabe. Não dá para aceitar que isso ainda aconteça na geração de nossos filhos e netos”.
Graças aos esforços de uma única
brasileira, 2.354 pessoas foram libertas da escravidão desde 1995, um século
depois da assinatura da Lei Áurea. Essa brasileira é Marinalva Dantas, auditora
do trabalho e uma das maiores referências do país no combate à escravidão
moderna e ao trabalho infantil. As histórias dessa mulher e dessas causas se
misturam e estão contadas no livro A Dama da Liberdade, lançado nesta terça
(26), também data do aniversário de 61 anos de Marinalva. Foi escrito pelo
jornalista Klester Cavalcanti.
A história de Marinalva teve uma
influência crucial em sua carreira. Nascida em uma família muito pobre, em
Campina Grande (PB), passou os três primeiros anos de vida em uma casa sem luz,
água encanada ou esgoto. Por dentro, não havia banheiro ou paredes entre os
quartos. Devido a uma crise grave de lombriga, foi levada à casa dos tios que
tinham uma condição financeira melhor e acabou sendo criada por eles, em Natal
(RN). Isso permitiu que Marinalva tivesse uma infância decente, bem diferente
do que teria vivido se continuasse com seus pais.
Aos dez anos, foi visitar a
família e reencontrar a mãe que já não reconhecia. Essa visita mexeu muito com
ela, como contou em entrevista ao Blog ÉPOCA AMAZÔNIA. “Me dei conta de que era
privilegiada e gostaria que todas as crianças – principalmente meus irmãos –
tivessem um pouco do que eu tinha: a possibilidade de brincar e de estudar”. A
experiência foi uma das bases para que ela crescesse como uma defensora dos
mais fracos – como se define.
Marinalva entrou na faculdade de
direito e passou em um concurso público para auditora fiscal do trabalho, em
1984. Pouco mais de dez anos depois, ingressaria nos primeiros grupos que
saíram à caça de fazendas que mantinham trabalhadores em condições degradantes
e sem direitos trabalhistas. Segundo levantamento apresentado no livro, os
casos mais comuns de trabalho escravo estão em fazendas de pecuária (29% dos
casos registrados pelo governo federal), cana-de-açúcar (25%). Dezenove por
cento estão em fazendas com outras lavouras, como algodão. Os estados com mais
casos são da Amazônia Legal: Pará (12.761 de escravos libertos desde 1995) e
Mato Grosso (5.953). O perfil desses escravos explica sua vulnerabilidade: 62%
são analfabetos e 27% estudaram no máximo até a 4ª série.
Como auditora do trabalho,
enfrentou situações adversas e encontrou um cenário triste de constatar que
ainda exista no Brasil. Viu fazendas em que os agricultores dormiam todos em um
galpão, sem banheiro ou qualquer condição sanitária adequada. A comida era
sempre escassa e quando ganhavam carne, eram sempre os piores pedaços, cheios
de gordura e mal conservados. Em Marabá (PA), encontrou pedaços de carne que
seriam consumidos no dia seguinte e estavam ao relento, infestados de moscas e
em toras de madeira. A coloração quase preta do alimento a impressionou naquele
dia.
Marinalva viu muitas crianças
passando fome. E costumava dar a elas os alimentos que tinham no carro dos
auditores do trabalho e da polícia federal. Encontrou um homem escravizado há
dezenove anos e um menino que não sabia sua idade, pois nunca havia comemorado
um aniversário. Questionado se tinha tempo para o lazer, esse menino respondeu
que às vezes brincava de desmontar e montar a motosserra “cheia de pecinhas dentro”.
Como conta uma passagem do livro, a auditora não sabia o que era mais triste: a
criança não brincar por falta de tempo e de energia após um dia intenso de
trabalho ou ter como brinquedo o mesmo equipamento que lhe roubava a infância.
Nem sempre era fácil se conter,
em muitos capítulos do livro A Dama da Liberdade, Marinalva é retratada como
uma mulher forte, porém emotiva, que se comeve e se revolta com o que encontra
pela frente. Um dos poucos momentos em que chorou diante de um ex- escravo foi
quando ele lhe contou que havia sido espancado por ter pedido um pouco de água
limpa. A que tinha para beber vinha de um córrego e era amarela e barrenta. O
chefe mandou que um peão, escravo como ele, fosse o autor das pancadas.
A luta de Marinalva a tornou uma
personalidade conhecida. Ao longo dos anos apareceu em reportagens e deu
inúmeras entrevistas. Descobriu casos de escravidão em fazendas de homens
poderosos, como o deputado estadual do Rio de Janeiro Jorge Picciani. E, em
2002, a Polícia Federal encontrou em Marabá uma lista com nome de pessoas que
deveriam ser executadas a mando de fazendeiros da região. Marinalva Dantas era
um deles. Meses antes, ela comandara uma operação em uma fazenda de pecuária na
região.
Em 2004, Marinalva foi para
Brasília ser diretora da Divisão de Articulação de Combate ao Trabalho
Infantil. O cargo mais burocrático do que prático não a agradou e ela voltou a
Natal, onde até hoje é auditora. Olhando para trás, vê que a dedicação total à
carreira teve impactos grandes também em sua vida pessoal, como o fim do
casamento, desentendimentos com os filhos por passar tempo de mais viajando e
até uma síndrome do pânico. Apesar de tudo isso, o trabalho a realizou sempre.
Hoje, espera que todo o esforço tenha levado mais conscientização aos
brasileiros para que não aceitem as barbaridades cometidas com trabalhadores
sem direitos. E se diz uma otimista em relação ao fim da escravidão de uma vez
por todas no país. “Eu não combatia o trabalho escravo e infantil até saber que
isso existia. Depois que você descobre, quer que acabe. Não dá para aceitar que
isso ainda aconteça na geração de nossos filhos e netos”.
Confira abaixo a entrevista que
Marinalva concedeu ao Blog ÉPOCA AMAZÔNIA.
ÉPOCA: A senhora nasceu em uma
família pobre, mas foi criada por tios com uma boa condição financeira, foi à
faculdade e seguiu uma carreira voltada aos direitos humanos, principalmente
dos mais pobres. Sua história pessoal influenciou essa escolha?
Marinalva Dantas: O fato de eu
ter vindo da pobreza influenciou muito minha carreira. Fui morar com meus tios
em Natal com apenas três anos, então, não tinha lembranças da minha vida
anterior. Apenas aos 10 anos retornei a Campina Grade e reencontrei minha mãe,
que eu nem reconhecia mais. Cresci em um ambiente de opulência e ver a casa da
minha família foi chocante. Quando cheguei à cidade, fiquei feliz de ver muitas
crianças que poderiam brincar comigo. Mas a maioria delas precisava trabalhar
para ajudar a família. Faziam sapatos, potes de barro, carregavam água ou
ajudavam no comércio, por exemplo. Me dei conta de que era privilegiada e
gostaria que todas as crianças – principalmente meus irmãos – tivessem um pouco
do que eu tinha: a possibilidade de brincar e de estudar.
Já adulta, ouvia histórias de
homens que deixavam as famílias para trabalhar em outros estados no Norte e do
Nordeste e não voltavam mais. As pessoas acreditavam que eles encontravam
outras mulheres e tinham outros filhos. Na primeira vez que entrei em uma
fazenda e vi os escravos que há anos não podiam voltar pra casa, senti uma
grande revolta. Aqueles pais nunca abandonaram seus lares. Estavam lá sem
escolha. Isso me motivou a fazer o que fosse possível para acabar com essa situação.
ÉPOCA: Como é possível que, 127
anos depois da abolição da escravidão, ainda persista esse regime de trabalho
no Brasil?
Marinalva: Isso se sustenta
porque é muito lucrativo. Esses senhores de escravos ficam mudando de
estratégia para burlar a lei, enganar a polícia e os consumidores. Há por
exemplo, fazendeiros que assinam a carteira de trabalho das pessoas, mas não
seguem qualquer norma de trabalho. É só o papel que está lá. Acham que assim
não poderão ser enquadrados como empregadores de escravos.
Enquanto eles puderem manter
isso, vão fazer. Já fui a uma fazenda exportadora que nunca tinha registrado
nenhum empregado e sonegava muitos impostos. Então, o dono fica apenas o
lucros, sem nenhum encargo. Para muitos donos de terra, a estratégia é dizer
que não sabiam de nada. Que era o gerente quem cuidava dos outros funcionários.
Então, nosso trabalho é ligar os pontos entre o proprietário da terra e os
escravos.
ÉPOCA: Você começou a resgatar
trabalhadores em 1995, uma época em que isso ainda era um tipo de ação nova por
parte do governo. Como foi esse começo? E como evoluiu?
Marinalva: Em termos de
aparelhamento, tivemos um avanço grande. No início, nossa comunicação em campo
era precária e corríamos muitos ricos. Foi só com o passar dos anos que conseguimos
GPS e celulares, por exemplo. Hoje o Ministério Público já está estudando o uso
de drones para vistorias.
ÉPOCA: E em termos de legislação?
Marinalva: Até evoluiu, mas
estamos diante de um golpe iminente. Tramita no Congresso um projeto para mudar
o conceito de trabalho escravo no Código Penal.
Se aprovado, os termos “jornada exaustiva” e “condições degradantes” não
irão mais configurar trabalho escravo. Será um grande golpe à Constituição
Federal. Essa mudança vai permitir que um fazendeiro abrigue seus funcionários
no curral, junto com o gado, e que dê a eles água para beber em cochos, afinal,
a dignidade do trabalhador não está mais em jogo. Eu já encontrei uma fazenda
em que uma mulher estendia um pedaço de pano em cima do esterco do gado para
dormir e dividia a água com os animais.
ÉPOCA: A senhora sofreu ou sofre
muitas ameaças pelo trabalho combativo?
Marinalva: Sim. Até hoje. Nesse
final de semana mesmo, estava em uma feira livre com a equipe da tevê Globo
mostrando crianças e adolescentes trabalhando nas barracas. Isso é trabalho
infantil, é proibido. Alguns feirantes mandaram a gente sair de lá, dizendo que
tinham muitas facas. Quando disse que eles tinham mão de obra ilegal, me
responderam que se esses jovens não estivessem ali, estariam no tráfico. É uma
ignorância da parte deles pensar assim.
ÉPOCA: A senhora acredita que um
dia o Brasil irá erradicar definitivamente o trabalho escravo e o infantil?
Sim. Sou otimista em relação a
isso porque eu mesma não combatia o trabalho escravo e infantil até saber que
isso existia. Depois que você descobre, quer que isso acabe. Não dá para
aceitar que isso ainda aconteça na geração de nossos filhos e netos”.
Fonte: Revista Época
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