Há dois anos Naeff Ribeiro se
empenha na elaboração de um ‘dossiê’, que reúne toda a documentação e
procedimentos cirúrgicos realizados no filho dele. (Winnetou Almeida)
Desde 2013 o professor Naeff
Ribeiro tenta provar que o filho dele, morto aos 7 anos, teve os rins
‘roubados’ por quadrilha de cirurgiões.
Um pai convicto de que os rins do
filho foram retirados para alimentar uma rede de tráfico de órgãos. Este é o
drama do professor Naeff Ribeiro, 58, que há dois anos tenta provar que o filho
Bóris de Araújo Silva, que tinha 7 anos quando morreu, foi vítima de uma
quadrilha que, segundo ele, atua nos Prontos Socorros Infantis do Estado do
Amazonas.
Depois de dez dias internado no Hospital e Pronto Socorro da
Criança da Zona Oeste, onde deu entrada
com vômitos e diarreia (ver box), a criança veio a óbito no dia 13 de fevereiro de 2013. Desconfiado das cirurgias que estavam
descritas no prontuário, Ribeiro solicitou detalhes dos procedimentos médicos e
até a exumação do corpo, que levantou a suspeita de que o filho dele fora
enterrado sem os rins. “No prontuário constam procedimentos que não autorizamos
fazer. Não sabíamos de todas aquelas cirurgias que eles alegam. Então notei que
havia alguma coisa errada e descobri que meu filho caiu nas mãos da quadrilha
que tira os órgãos”, denunciou.
Ele contou que um exame
radiológico de tórax foi feito dois dias antes da morte de Bóris mas
não foi entregue à família. “Vi
no prontuário que foram feitos raios-x e
solicitei os exames que fizeram antes e depois das cirurgias. Não me entregaram
nada. Esta seria a única coisa que provaria se meu filho estava ou não com os
órgãos”.
A Secretaria de Estado de Saúde
(Susam) informou que o “exame foi realizado no sistema convencional da época,
utilizando película-reveladora e fixador, com características voláteis”. Segundo
a secretaria, o “filme apagou” e por isso a imagem foi descartada.
Depois de fazer a denúncia no 8º
Distrito Integrado de Polícia (DIP), o professor solicitou a exumação do corpo
do filho. “Eles estão acostumados a fazer isso porque sabem que nenhum pai tem
coragem de mandar desenterrar o filho pra fazer exumação”, relembra.
Exumação
O exame foi realizado três meses
depois. O laudo do Instituto Médico Legal (IML) aponta que “foi evidenciada a
presença de material compatível com compressas” dentro do corpo de Bóris. Após
a retirada desse material, foi encontrada uma bolsa coletora de urina,
“suturada à aponeurose abdominal, compatível com técnica cirúrgica”, segundo
detalha o IML.
Sobre a suspeita de que os rins
foram retirados, o perito legista descreveu que “pelo estágio de decomposição
avançado”, a identificação de tecidos (órgãos) ficou prejudicada. No
entanto, Naeff afirma que acompanhou
todo o processo de exumação e que a
bolsa foi colocada para substituir o órgão.
No laudo médico emitido pela Susam, o
procedimento em que a bolsa foi suturada não foi descrito. “A bolsa coletora
estava no lugar de um rim da criança. Como essa bolsa foi parar dentro dele se
não autorizamos e nem sabíamos deste procedimento?”, questionou Naeff.
Ele denunciou o caso ao
Ministério Público Estadual (MPE-AM), e
o juiz Anésio Rocha, da 2ª Vara
do Tribunal do Júri, declinou a competência do caso a “uma das varas criminais
comuns”, uma vez que o suposto crime não apresenta características de homicídio
doloso consumado, de acordo com a
decisão. O processo criminal está “parado” no setor de “distribuição” da
Justiça.
Ribeiro também deu entrada em
um processo cível de número 0635920-10.2014.8.04.000, que
tramita na 3ª Vara da Fazenda Pública Estadual, onde ele processa o Estado e
pede uma indenização de R$ 1 milhão por danos e perda.
‘Sem apoio’
Incansável, o professor alega que
nenhuma autoridade se dispôs a ajudá-lo na investigação. “Já pedi ajuda de
tantas pessoas. Fui na delegacia, no Conselho Regional de Medicina, na Câmara
Municipal de Manaus, na Assembleia Legislativa e nada. A única certeza que
tenho é que não vou desistir, pois a alma não descansa enquanto não houver
justiça”, lamentou.
Outro caso
Embora Naeff se sinta só, esse
não é o único caso de um pai que denuncia o tráfico de órgãos no Brasil. Assim
como ele, o gerente de sistemas Paulo Airton Pavesi denunciou e luta há quase 15 anos contra uma ‘máfia do tráfico de órgãos’ de Minas Gerais.
Sob proteção internacional do
Governo Italiano por meio de asilo humanitário concedido em setembro de
2008, Pavesi escreveu o livro intitulado “Tráfico de
Órgãos no Brasil: o que a máfia não quer que você saiba”. A publicação da
história com pouco mais de 400 páginas foi censurada, mas é disponibilizada gratuitamente na
internet.
Menino foi levado ao hospital com
vômitos
De acordo com o pai da criança,
Naeff Ribeiro, 58, tudo começou quando o
garoto comeu uma pizza de calabresa e foi levado ao Pronto Socorro da Criança
da Zona Oeste, com vômitos e diarreia. Ele foi internado no dia 2 de fevereiro
de 2013, às 23h15. No dia seguinte, por volta das 16h, Bóris foi operado por um
cirurgião que faz parte do Instituto de Cirurgia do Estado do Amazonas (Icea),
sucessor da antiga Cooperativa de Cirurgiões do Estado do Amazonas, que tem
contrato com Estado há mais de dez anos.
“O médico falou que ia fazer uma
cirurgia de obstrução intestinal, mas minha esposa discordou, já que o menino estava com
diarreeia. Mas o médico explicou que haviam vários tipos de obstruções e
autorizamos essa cirurgia. Nada com os rins”.
Ainda segundo Naeff, a criança
foi levada para a UTI depois da cirurgia. “O médico relatou que tinha dado tudo
certo na cirurgia. Mas algumas horas depois o Bóris estava em estado
lastimável, do abdômen para baixo que nem um balão cheio de água, inchado”.
Dois dias depois, a criança foi
submetida a uma nova cirurgia, onde uma equipe médica composta por outros dois
cirurgiões e uma anestesista do Icea constataram mais uma “fístula” (abertura)
intestinal.
No prontuário da Secretaria Estadual de Saúde (Susam)
consta que houve piora no quadro, sendo necessária uma nova cirurgia dia 5 e
outra dia 11. No entanto, Naeff afirma que só foram realizadas duas cirurgias e
que o pronturário foi fraudado para “esconder” a retirada ilegal dos órgãos da
criança. Segundo ele, em um dos dias, a hora apontada no prontuário como o
momento da cirurgia (10h50) era horário
de visita e a família estava com a criança na UTI.
“Depois que meu filho morreu que
fui ligar os fatos. No prontuário eles
descreveram cirurgias que nunca foram feitas, o que me levaram a crer que eles
só querem abrir as crianças para ganhar dinheiro. Por isso pedi a exumação do corpo”.
A reportagem tentou entrar em
contato com os médicos citados no processo, mas o Icea informou que eles estão
viajando e não podiam ser encontrados. A cooperativa informou que comunicaria
os médicos, para que eles procurassem a reportagem, o que não aconteceu até o
fechamento desta edição.
‘Denúncia incoerente’
“O senhor Naeff focou em cima de
um erro de digitação de um laudo, onde escrevi que houve a ‘retirada de um
rim’. Quando na verdade eu quis dizer que na primeira vez que a criança esteve
internada, em 2006, foi retirado uma ‘parte’ de um rim devido um abscesso. Quando
ele questionou, me desculpei e corrigi o erro”.
A médica explicou que Bóris de
Araújo deu entrada no hospital em estado grave. “Assim que foi atendido, o
médico logo identificou que o caso era de urgência”. De acordo com Eriane, a
primeira cirurgia foi feita para correção de uma fístula (abertura) intestinal,
ocasionada pelas cicatrizes de uma operação feita há seis anos.
“Quando os médicos abriram a criança, viram
que o intestino estava perfurado. Nos dias seguintes o paciente apresentou
piora, sendo necessário fazer outros procedimentos cirúrgicos. A equipe tentou
até o último dia salvar a criança”, completou. Em relação à bolsa coletora de
urina que não foi descrita no prontuário, a médica explicou que faz parte do
procedimento da colocação de “tela de marlex”.
“Uma tela de marlex faz com que o
aparelho do abdômen não se junte, dá mais espaço pro intestino que está
inchado. Essa tela pode ser auxiliada por uma superfície de plástico, isso pode
ser feito conjuntamente. É o que chamamos de ‘técnica de bogotá. Mas o médico
cirurgião não achou necessário descrever no prontuário”, ratificou.
Mas o médico que fez a cirurgia
relatou em depoimento ao Conselho Regional de Medicina (CRM-AM), que a bolsa
coletora de urina estéril foi usada em substituição da ‘tela de marlex’ e não
“conjuntamente”. O CRM arquivou a sindicância e concluiu que “ao analisar o
farto material contido nos autos, o médico denunciado agiu de forma correta
quando realizou o procedimento cirúrgico e o CRM não encontrou nenhum indício de
infração ao Código de Ética Médica”.
Gerente de sistemas luta há
quase 15 anos contra a ‘máfia do
tráfico de órgãos’
Em 2000, Paulo Airton Pavesi,
46, trouxe à tona uma denúncia de que
médicos do Hospital Pedro Sanches e da Santa Casa de Misericórdia, ambos em
Poços de Caldas (MG), mataram o filho dele, Paulo Veronesi Pavesi - o
“Paulinho” -, na época com 10 anos, para abastecer o tráfico de órgãos. Após 14 anos de investigações e denúncias,
dois médicos foram condenados e presos no ano passado, em MG. No entanto, um
mês depois, Celso Roberto Frasson Scafi e Cláudio Rogério Carneiro tiveram o pedido de habeas corpus concedido
pela Justiça. Ele, a exemplo do professor Naeff Ribeiro, luta sozinho para
provar que o filho foi vítima de uma rede criminosa.
Como desconfiou que seu filho foi
morto para retirada dos órgãos?
Meu filho sofreu um acidente e
foi levado para o hospital. Quando recebi a conta, após a morte dele, percebi
dezenas de materiais que estavam sendo cobrados e que não tinham sido usados.
Ao questionar a conta, tive acesso ao prontuário e todo o assassinato estava
descrito lá, em detalhes.
Para quem você fez a primeira
denúncia?
Eu tentei entrar em contato com o
Sistema Nacional de Transplantes, mas não localizei nenhum número de contato.
Então enviei uma denúncia à ABTO (Associação Brasileira de Transplantes de
Órgãos). Infelizmente a ABTO não tomou nenhuma providência e tentou me oferecer
um desconto na conta do hospital para que tudo fosse esquecido. Eu descobri que
o irmão do principal acusado pela morte do meu filho fazia parte da diretoria
da ABTO.
Enquanto isso, como você levou a vida?
Minha vida parou. Eu e a mãe do
Paulinho nos separamos pois eu não tinha mais tempo para nada. Passava
dias estudando e denunciando o que
estavam fazendo. As descobertas que fiz durante estes anos foram encaminhadas
para todas as instituições que deveriam fazer alguma coisa, mas nunca fizeram
nada. Em 2004 eu consegui instalar uma CPI em Brasília para apurar o caso do
meu filho e diversos outros, resultado das minhas pesquisas. A pressão desta
máfia é muito forte. Eles possuem braços em todas as instituições, inclusive na
imprensa. Em 2002 passei a ser processado e ameaçado por médicos e
procuradores. Não satisfeitos com as minhas vitórias, as ameaças de morte
começaram a crescer em 2008. Foi neste período que percebi que era hora de
deixar o País para poder continuar a luta.
Você recebeu ajuda de algum órgão
público na investigação do caso?
Nunca recebi apoio nenhum. Ao
contrário. Todas as portas foram fechadas. Eu visitei pessoalmente dezenas de
instituições e todas disseram que não podiam fazer nada. Em 2002 eu passei a
enviar e-mails para todos os deputados federais em Brasília, quase que
diariamente, demonstrando como o meu filho foi assassinado e como a máfia
trabalhava fraudando o SUS. A CPI foi tumultuada porque a bancada dos médicos
tentou impedir que as investigações andassem. O relatório final concluiu que eu
tinha razão e indiciou nove médicos. Este relatório, assim como todos relatório
de CPIs, foi enviado para o procurador Geral da República e desapareceu em
seguida. Depois de muitos anos consegui descobrir que o relatório havia sido
arquivado com a justificativa de que o Ministério Público faz o que quer sem
ter que dar explicações a ninguém.
Já ouviu relatos ou casos
parecidos no Amazonas?
A máfia nunca esteve tão atuante
como agora. Com a impunidade em casos de tráfico de órgãos em que doadores
estão sendo assassinados, criaram uma rede de proteção a esses marginais. Eles
operam tranquilamente, com a ajuda da Justiça e do Ministério Público. O procedimento
é fácil e também beneficia o governo. O Brasil tem poucos leitos de UTIs
disponíveis. A máfia, percebendo isto, tem abreviado a vida de muitos pacientes
para que leitos sejam liberados. Eu recebo com frequência muitas denúncias de
tráfico de órgãos, inclusive do Amazonas. As pessoas me escrevem e pedem
anonimato. Infelizmente não é possível ajudar anônimos a resolver um problema
como este.
Por que você acha que os casos
são “abafados” ?
Primeiro porque as pessoas que
estão praticando este tipo de crime possuem escudos fortíssimos. Um escudo é o
argumento de que se divulgarem casos como o meu, poderá atrapalhar a doação de
órgãos, levando as pessoas da fila da espera a óbito. Outro escudo é a
influência política. Doação de órgãos traz votos. Há diversos deputados que são
padrinhos destes traficantes com influência em muitas instituições. Com este
braço político, eles conseguem impedir qualquer investigação mais detalhada.
Segundo, porque este tipo de crime movimenta muito dinheiro, sem qualquer esforço.
Após 14 anos, os médicos foram
condenados e soltos um mês depois. Sua luta continua?
A luta nunca vai acabar, exceto
quando eu morrer. Os médicos já estão condenados, mas continuam soltos. Durante
estes 14 anos, ficaram presos apenas 30 dias. Há ainda outros casos que estão
sendo julgados e também o júri popular que deve acontecer em 2015 - e que vem sendo adiado desde 2010 sem
qualquer explicação. Fora do País, eu posso continuar a fazer as minhas
denúncias, sem qualquer medo de retaliação.
O que você diria para o professor
Naeff Ribeiro, que também acredita que o filho dele foi vítima do tráfico de
órgãos?
Eu não tenho dúvidas, mesmo sem
conhecer detalhes do caso, que alguma coisa de errado aconteceu. Como pai, eu
entendo muito bem o que o senhor Ribeiro está enfrentando. Infelizmente eu não
posso enviar nenhuma mensagem positiva, pois conheço bem a estrutura das
instituições no Brasil e posso afirmar, sem medo de errar, que tudo será
abafado. Para que ele tenha algum resultado, precisará abrir mão da própria
vida, como eu fiz, e enfrentar um grupo poderoso que não mede esforços para
calar a boca de quem denuncia. Não há leis para esta quadrilha. E não há
qualquer autoridade que tenha coragem de enfrentar essas pessoas.
Fonte: Jornal : A Critica
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