O matrimônio firmado entre o
racismo e o machismo é uma das relações mais duradouras da história. A
concentração e a manipulação do poder, ópio que alimenta essa relação,
permitiram inclusive que o casal evoluísse para um triângulo amoroso: racismo,
machismo e capitalismo.
Por Viviane Ferreira*
Os amantes, conhecidos como
R.M.C., vivem no troca-troca de posições, na disputa para ver quem melhor
representa a tríade. Essas coisas de casamento em que a competição entre as
partes é a pimentinha do amor. O importante mesmo é que em todo dia santo, e
dia santo é dia de trabalho, os votos sejam renovados e R.M.C. sigam enamorados
rumo à concentração do poder, custe o que custar, doa a quem doer. R.M.C.
separados são fortes, mas juntos julgam-se indestrutíveis.
Agora, se representatividade
importa para “os donos” da banca, imagina para quem nem figura nas capas de
revistas, nos filmes e na programação da TV?
Fui amamentada pelo movimento de
mulheres negras, e dos seios desse movimento me alimento da seiva que traça a
historicidade da atuação dessas mulheres. Regentes de uma sinfonia capaz de
ensurdecer uma sociedade forjada para viver do “espetáculo”, da “estética
rasa”, que se furta a encarar seus problemas estruturais. E, ainda assim,
entoam: representatividade importa, sim!
Como cineasta negra, entendo que
fazer cinema é responsabilizar-me por construir a narrativa de novos tempos, é
disputar espaços de representatividade para garantir representação. Por isso
gozar deste espaço para falar o que penso, nesses tempos em que a democracia brasileira
segue ameaçada. E R.M.C. estão vindo com toda força para buscar alimento para a
relação, tragando da pílula do dia seguinte à representação das mulheres
negras.
A reivindicação feminina por
espaços formadores de opinião vem de longa data. O cinismo dos males
estruturantes da sociedade do espetáculo utiliza-se dos institutos da “exceção”
e da “concessão” para a manutenção da regra, num cálculo sutil que ajuda R.M.C.
a ficarem com a relação cada dia mais sofisticada.
As facetas são muitas: é partido
político que lança mulheres à selvageria eleitoreira para cumprir a cota
estatutária; são homens e mulheres brancas estudando sobre mulheres e homens
negros e se tornando “especialistas”, legitimados por um “canudo” a falar em
nome desses indivíduos; é diretor de televisão branco, fazendo série para
tratar da sexualidade de mulheres negras; é blogueira negra sendo atacada
virtualmente por se “atrever” a falar sobre sua própria existência; é imagem de
ativista negra sendo utilizada de forma indevida por instituições do Estado; é
coletivo de estudantes negras sendo perseguido em universidades públicas por
exigir ações afirmativas; é presidenta tendo sua honra e feminilidade atacadas
por articular a criação de um banco internacional com outros países em
desenvolvimento; é governador fechando escola na tentativa de impedir que seu
Estado contribua para a construção de uma pátria educadora… A lista não tem
fim.
Tão antigo quanto o matrimônio de
R.M.C., alicerçado num cinismo histórico, é o pacto de irmandade do movimento
de mulheres negras, em passos que vêm de muito longe. Isso nunca é demais
rememorar. Estamos irmanadas, regendo a sinfonia que executará com maestria a
canção de morte de R.M.C. Nessa orquestra, o cinema é o instrumento que sopra
cada suspiro do meu pensar.
*Viviane nasceu na Bahia e vive
em São Paulo. É advogada e cineasta, preside a Associação Mulheres de Odun e é
sócia-fundadora da Odun Formação & Produção. Entre outros trabalhos,
dirigiu o documentário “Festa da Mãe Negra” e o curta “O dia de Jerusa”, que
integrou a seleção oficial do Festival de Cannes em 2014.
Fonte: Geledes
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