Aquele que de entre vós está sem
pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela’ (João 8:7). Este famoso
versículo bíblico só não é mais adequado para esta história porque, quando
Jesus pronunciou esta frase, ele se referia a uma adúltera, e não a uma prostituta.
Mas, como também já é sabido, a profissão de meretriz é uma das mais antigas da
humanidade, isso se pudermos considerá-la uma atividade profissional, pois as
mulheres que a exercem não conseguem o respeito que lhes é de direito e, desde
que o mundo é mundo, são pré-julgadas pela sociedade.
A equipe do Diário percorreu
alguns pontos de prostituição na região e se deparou com uma história que se
destacou pela frieza do ser humano e, ao mesmo tempo, pelo profissionalismo da
garota de programa Kiara Silva (nome usado para o trabalho). Ela começou nesta
função da maneira menos comum que se pode imaginar. Ao assistir a um quadro de
programa de televisão que discutia o assunto, Kiara conta que a mãe destacou,
com o intuito de provocá-la, que as profissionais tinham dinheiro para pagar
aluguel, comprar roupas e ter liberdade. Confusa com a declaração, a jovem
questionou: “A senhora acha que elas são melhores do que eu?”. E teve como
resposta: “Sim, pois mulher tem de ser independente”. Kiara, que até então era
uma garçonete, com 23 anos, passou a repensar a sua vida.
Não demorou muito e Kiara lembrou
que em seu bairro morava uma mulher a quem os vizinhos chamavam de “mulher da
vida”, na época, expressão usada para nomear uma garota de programa. Assim que
encontrou Baiana, a primeira pergunta de Kiara foi: “É verdade que você é
prostituta?”. Baiana respondeu: “Fui. Hoje estou em um relacionamento sério e
saí desta vida. Mas dentre estes que te falaram sobre mim, a maioria já pagou
para sair comigo.”
Aproveitando o momento de
sinceridade da nova amiga, Kiara lhe fez o pedido: “Me ensina esta profissão,
pois quero ser garota de programa. Sempre gostei e fui boa em fazer amor. Tive
uma desilusão com meu ex-namorado, com quem montei uma lanchonete. Descobri
que, quando eu estava fora, ele usava o local para guardar peças de carros
roubados. Não aceitei isso. Ele procurou alguém que aceitasse e eu, aqui, te
procuro para conseguir ganhar minha vida”. Kiara lembra que Baiana concordou em
ensinaria a ela o ofício, mas que não voltaria a se prostituir.
O primeiro emprego de Kiara foi
em uma boate que existia na Travessa Diana, no Centro de Santo André. “Não
esqueço o dia. Era 20 de dezembro de 2000, uma terça-feira, e meu primeiro
cliente foi um senhor chamado Cláudio. Ele foi orientado pelo dono do
estabelecimento que era meu primeiro dia e para que ele fosse mais cauteloso”,
lembra. Cautela não faltou, pois, segundo Kiara, o cliente pagou três taças de
vinho e conversou com ela por 30 minutos, até que ela se sentisse preparada.
Cinco dias depois, Kiara já havia
faturado R$ 600, o que ela considerava bastante naquela época. Foi quando a garota
de programa se deparou com um problema: o ciúme das outras meninas que
trabalhavam na casa. “Elas eram muito mais experientes e não ganhavam tanto em
tão poucos dias. Então, fui obrigada a trocar de local e, no mesmo dia, fui
para outra boate”.
Kiara lembra que no novo emprego
o primeiro cliente resolveu fechar uma garrafa de uísque, o que a ajudou a
receber comissão alta. No entanto, ela revela ter enfrentado problemas ainda
maiores na segunda casa, o que também a fez mudar de local. “Já no primeiro dia
ganhei muito dinheiro.”
O próximo emprego Kiara conseguiu
a partir de anúncio em jornal. A boate ficava na Rua Nestor Pestana, na
República, na Capital. Lá ela era dançarina e, se quisesse se prostituir, era
“por sua conta e risco”. “A vantagem era que eu não tinha que dividir o
dinheiro que ganhava com os programas com a casa”.
Kiara decidiu levar sua irmã para
trabalhar no local, a fim de afastá-la do envolvimento com criminosos e por
julgar que seria uma atividade mais segura. “Mas eu estava errada e o tempo me
mostrou isso. Em um dos programas que minha irmã estava fazendo, ela se
desentendeu com seu cliente, que a empurrou da janela do primeiro andar. O
acidente deixou marcas eternas, pois ela sofreu várias fraturas e uma delas
causou lesão irreversível. Daí para frente ela só pode andar de cadeira de
rodas.”
Justamente neste momento, a irmã
recebeu convite para trabalhar em boates na Irlanda, mas diante da situação,
Kiara foi no seu lugar. A garota de programa permaneceu lá por quase três anos.
Ganhou, neste período, o equivalente a R$ 48 mil. Mas, como já tinha uma filha
de 13 anos, que deixou no Brasil com sua mãe, enviava boa parte do dinheiro
para ajudar na criação da menina e na reforma da casa.
Quando voltou ao País, Kiara teve
duas decepções: uma foi ver que não houve melhorias na residência da família e
a segunda foi ouvir da filha, após revelar sua profissão, que ela não sabia o
que dizer aos amigos, quando perguntassem a atividade da mãe.
Hoje, sua filha é adulta e está
em busca de trabalho. Já Kiara voltou a trabalhar em uma boate no Centro de
Santo André, ganhando R$ 40 por meia hora de trabalho. Ao ser questionada sobre
o fato de ganhar menos hoje, aos 38 anos, do que 15 anos atrás, a profissional
culpa a “facilidade com que os homens conseguem mulheres hoje em dia”. “As
meninas das baladas estão tão fáceis que os clientes estão se afastando das
casas, o que diminui ainda mais o preço dos programas. Já cheguei a fazer 25
programas em uma só noite, trabalhando em um ‘vintão’ (casa em que se paga R$
20 reais por 20 minutos de sexo), mas hoje, se conseguir fazer três programas
em uma noite, posso comemorar”, relata.
Kiara diz que não possui
sentimentos, seja pelos homens com os quais se relaciona profissionalmente, ou
por sua família. E que também não tem vergonha do que faz. “Minha irmã, minha
filha e eu crescemos em um lar muito agressivo, onde meu pai bebia e batia em
todas nós, principalmente na minha mãe. Meu sonho é apenas voltar ao grande
estilo e fazer programas mais caros.”
Prefeitura não consegue estimar número de garotas de programa
A Prefeitura de Santo André não
consegue estimar, hoje, quantas prostitutas trabalham ou moram na cidade, já
que se trata de grupo flutuante. A Secretaria de Saúde do município atendeu, em
2014, no programa de prevenção às doenças sexualmente transmissíveis, 3.500
pessoas. Neste primeiro semestre, foram feitos 1.600 atendimentos, o que
significa que uma pessoa pode ter passado pelo procedimento mais de uma vez.
O Plano Nacional de Enfrentamento
da Epidemia de Aids/DST atende pessoas mais vulneráveis a estas doenças, como
travestis, transexuais e, principalmente, profissionais do sexo. As equipes
acessam as prostitutas em seus locais de trabalho, ou seja, nas ruas ou boates
e entregam preservativos masculinos, femininos e lubrificantes, e incentivam as
garotas a realizarem testes de HIV, sífilis e hepatites.
Segundo informações da Secretaria
de Saúde, o maior risco de contaminação entre as profissionais do sexo está
relacionado ao fato de os clientes se negarem a usar preservativos. “Cabe a
cada profissional convencê-los”, afirmou a Pasta em nota.
Por outro lado, a Secretaria de
Políticas para Mulheres, liderada por Silmara Conchão, busca as profissionais
do sexo que queiram deixar a função para conseguir encaminhá-las para o
programa Emprego Apoiado ou para os Cras (Centro de Referência em Assistência
Social). No primeiro, uma assistente social entra em contato com empresas na
procura por vagas e, por fim, depois de empregadas, as equipes da secretaria
acompanham o desenvolvimento da funcionária na companhia.
Já no Cras, agentes cadastram a
garota de programa em todos os programas sociais em que ela se enquadrar.
Exemplo foi a iniciativa da secretaria no Núcleo dos Ciganos, na região de
Utinga, onde foram feitas ações de conscientização e estreitamento de laços com
as profissionais do sexo diretamente na casa delas.
“O trabalho realizado pela equipe
tem o objetivo de apoiá-las para que possam buscar alternativas de trabalho,
sustento e moradia. Ainda não é possível mensurar quantas conseguiram sair
definitivamente da prostituição, até porque o acompanhamento está relacionado à
ideia de que a opção por caminhos alternativos seja uma escolha delas”, explica
Silmara.
Fonte: Diário do Grande ABC
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