O sociólogo Jessé Souza,
presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) declara que :”a
classe média, que se põe como campeã da moralidade, no fundo explora o trabalho
de uma ralé, de uma classe de excluídos, que presta todo tipo de serviço a ela”.
O sociólogo Jessé Souza lidera
desde o início do ano, quando assumiu a presidência do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea) – na esteira da polêmica eleitoral do atraso da
divulgação de uma pesquisa sobre miséria –, um levantamento que se propõe a
fazer uma “radiografia do Brasil contemporâneo”. A pesquisa, que deve começar a
apresentar resultados em setembro do próximo ano, faz parte de um esforço geral
do Ipea para compreender melhor quem é o brasileiro e colaborar para a
avaliação de políticas públicas que pretendem melhorar a vida da população.
Na radiografia, os pesquisadores
pretendem analisar a composição social do país para além dos índices
econômicos, como costuma fazer o instituto, e levar em conta questões como
“socialização e o capital cultural”, conceitos que Souza explora no livro A
Tolice da Inteligência Brasileira, a ser lançado neste mês. Na obra, o
sociólogo questiona conceitos basilares do pensamento brasileiro, como o
patrimonialismo e o “homem cordial”, e diz que nossa ciência social está
baseada em mitos infundados criados e promovidos por pensadores como Gilberto
Freyre e Sérgio Buarque de Holanda.
Pergunta. Em que pé está a
radiografia que pretende "estabelecer uma nova divisão de classes no
Brasil"?
Resposta. Pretendemos ter um
apanhado geral em seis meses, fechado em março. Até setembro do próximo ano, já
vamos entrar em questões concretas, ao avaliar programas específicos. Além do
MEC [Ministério da Educação] e do MDS [Ministério do Desenvolvimento Social],
também trabalhamos com a Secretaria da Juventude em São Paulo, com um estudo
sobre o jovem da periferia. Mas a radiografia é apenas uma das nossas
pesquisas. Temos uma agenda estratégica, que é uma tentativa do Ipea de fornecer
elementos ao Governo para guiar e orientar a estratégia pós-ajuste fiscal.
Queremos montar uma inteligência que possa dizer em tempo real o que está
acontecendo em cada grande projeto e como ele pode ser corrigido ainda na
feitura. Estamos montando convênios e cooperações para analisar os programas
profissionalizantes, como o Pronatec, estudar a política de apoio à entrada nas
universidades públicas e contribuir com o PNE [Plano Nacional de Educação].
P. Vocês estão atrás de que tipo
de informação?
R. As classes normalmente são
percebidas como construídas a partir da sua renda. Isso não é verdade, porque
não é o bastante para antecipar o comportamento das pessoas, como estudam,
agem, como montam suas vidas. É isso o que importa saber, tanto para o mercado
quanto para o Estado. E você não consegue antecipar o comportamento das pessoas
pela renda. Um exemplo óbvio é o do professor universitário em início de
carreira, que ganha 8.000 reais, e o trabalhador qualificado da Fiat, em Betim
[MG], que ganha mais ou menos isso. É mínima a probabilidade de que essas
pessoas tenham comportamento semelhante, de que lidem na família do mesmo modo,
tenham estilos de vida semelhantes, com padrões de consumo e lazer semelhantes,
uma concepção de mundo semelhante. O tipo de educação, de socialização familiar
e escolar vão montar tipos de pessoas muito distintas, com escolhas muito
distintas, embora recebam uma renda semelhante.
P. Como a socialização familiar
influencia o rumo da vida desses brasileiros?
R. Os estímulos ao pensamento
abstrato só existem na classe média. O estímulo à concentração na leitura só
existe na classe média; a valorização das coisas do espírito. Na classe baixa,
o filho do pedreiro está brincando com o carro de mão. Está sendo estimulado
para ser trabalhador manual, e não para refletir. Dois tipos de pessoas muito
distintas, e numa sociedade onde o grande elemento é o espírito, é o
conhecimento. Além do capital econômico, o que vai definir a luta por recursos
escassos é o conhecimento.
P. Nosso Estado ainda não tem
noção de quem é o brasileiro?
R. Não só o Estado, mas a
sociedade brasileira não tem esse conhecimento ainda. É sempre algo aproximado,
e a gente quer contribuir para isso criando um novo elo para além desses dados.
Estamos unindo, em um estudo inédito, o dado quantitativo a dados qualitativos,
mas qualitativo crítico, que não interpreta a fantasia das pessoas sobre elas
mesmas como a verdade. A gente quer descobrir quais são as necessidade e
carências desse brasileiro, e também os seus sonhos, e não as fantasias que ele
monta sobre si mesmo para continuar vivo. A gente quer saber o que falta para
construir uma inteligência institucional mais sofisticada, que se adapte melhor
a esse público.
P. É por conta desses conceitos
que você questiona os dados que indicam redução nas desigualdades do país nos
últimos anos?
R. Houve uma histórica e
importante inflexão no Governo Lula, algo que não acontecia há 60 anos, porque
o Brasil foi, desde o Golpe 1964, um país feito para a minoria, para 20%. É
algo que havia acontecido apenas com Getúlio Vargas e Jango [João Goulart].
Jango quis, no fundo, aprofundar as mudanças que Getúlio tinha procurado
estabelecer, que tem a ver com o fato de que o Estado deveria ser também dos
pobres, da maioria da população brasileira historicamente esquecida. Não vejo
um fato mais importante nos últimos 60 anos do que porções significativas dos
nossos excluídos tiveram uma ascensão social significativa, não só no consumo,
mas em acesso à escola, a serviços estatais importantes. Essa é a grande
herança que vale a pena se lutar para ser mantida e aprofundada. Longe de negar
que houve esse combate à desigualdade, a gente quer ajudar a combater ainda
melhor essa desigualdade.
P. Você diz no livro que o povo é
manipulado por uma pequena elite no Brasil. De que forma?
R. No Brasil se construiu uma
ideologia, que não tem nada a ver com a ciência. As ideias dos grandes
pensadores são tão importantes quanto as ideias dos antigos profetas e
religiosos. Não há nada que se publique que não precise ser atestado por um
especialista. Isso mostra como a ciência é importante. O que os jornalistas
produzem, o que os professores de universidade dizem, o que os juízes decidem
nos tribunais, tudo isso são consensos que foram construídos e criados por
grandes intelectuais. As pessoas não percebem isso, acham que cada pessoa está
tirando tudo da própria cabeça. O que eu procurei identificar no livro é quais
são essas ideias, o que elas defendem, e quem são esses caras.
P. Que ideias são essas?
R. Essas pessoas defendem um tipo
de liberalismo amesquinhado que tem a ver com a imagem negativa do brasileiro.
Isso começa com o Gilberto Freyre, em 1933, quando se substitui o racismo
científico, fenotípico, por um racismo cultural. A base desse raciocínio é o
“complexo do vira-lata”, como chamava Nelson Rodrigues. Supõe-se que existam
sociedades superiores, compostas por indivíduos superiores moral e
cognitivamente, que estariam nos Estados Unidos e na Europa. Lá, haveria um
Estado só público, que não é privatizado por ninguém. Isso é um completo
absurdo, fácil de ser destruído. Mas quando essas interpretações se tornam
naturalizadas, os fatos não importam mais. O que os grandes pensadores dizem é
que a privatização do Estado é uma singularidade brasileira, e nós acreditamos
nisso. Há um sequestro da inteligência do povo brasileiro montado por grandes
intelectuais. A grande interpretação do Brasil é só uma, que une personalismo e
patrimonialismo.
P. Qual é o resultado dessa
união?
R. O personalismo diz que o
brasileiro é um sujeito inferior, pré-moderno, que se liga a relações pessoais,
como se não houvesse relações pessoais e não fossem decisivas em qualquer
lugar. [O brasileiro] É sentimental, cordial, emotivo e tendencialmente corrupto.
Esse personalismo foi criado a partir da leitura de Gilberto Freyre por Sérgio
Buarque de Holanda. Freyre queria fazer um mito nacional, e Buarque queria
fazer ciência. Mas a ciência se faz contra todos os mitos. Nossa ciência veio
de um mito, mas o mito não tem validade científica, é um conto de fadas para
adultos, para explicar a leigos como a sociedade funciona.
P. Como esse pensamento afeta a
vida dos brasileiros?
R. Todos os conflitos brasileiros
tendem a ser silenciados. A classe média, que se põe como campeã da moralidade,
no fundo explora o trabalho de uma ralé, de uma classe de excluídos, que presta
todo tipo de serviço a ela — serviços que nem as classes médias europeia ou
norte-americana têm. É um exército de escravos, no fundo, para prestar, a baixo
custo, serviço na sua casa, cortar a sua grama, fazer comida, cuidar do seu
filho. Isso é uma luta de classes. A luta de classes é silenciosa, por recursos
escassos. Todos recursos, materiais e ideais, são escassos. Não é só a casa, o
carro, a mercadoria, mas o reconhecimento, o prestígio, a beleza, o charme.
Isso tudo é escasso. Há uma luta de todos contra todos em relação a isso, mas
algumas classes monopolizam o acesso a esses recursos: o 1% e seu sócio menor,
que é uma classe média de 20%, que monopoliza o capital cultural e tem um
estilo de vida europeu em um país como o Brasil. O restante tem de lutar por
isso.
P. É por isso que, na sua
avaliação, o Estado virou alvo preferencial no Brasil?
R. Toda essa exploração de classe
é escondida e transformada em um conflito construído, irreal, que não existe,
entre Estado e mercado. Porque o Estado precisa do mercado para sua
sobrevivência, e vice-versa. Mercado e Estado são uma coisa só, mas, no Brasil,
você demoniza o Estado e monta o mercado como reino de todas as virtudes. Não
existe crime no mercado. Essa coisa de o brasileiro ser inferior tem um lugar
específico entre nós desde Sérgio Buarque: o Estado. É a tal tese do
patrimonialismo. Há uma elite que, só no Estado, rouba a sociedade como um
todo, como diz Raymundo Faoro. Então se cria um conflito artificial.
P. A prisão de grandes empreiteiros
na Operação Lava Jato não confronta essa ideia de que o mercado tem tratamento
diferente no Brasil?
R. As relações entre economia e
política são sempre complicadas. Abrangem todos os partidos e todos os ramos da
indústria e da vida econômica. Não consigo entender por que a seletividade, só
alguns ramos e alguns partidos. O que existe é uma modernização do golpe de
Estado brasileiro. O 1% quer continuar mandando, especialmente num contexto em
que não dá para atender a todos. Para isso, silêncio sobre alguns partidos e
atividades industriais, e toda a luz para alguns partidos, quase sempre ligados
a interesses populares. Se há crime, tem de ser sempre investigado, mas sempre
houve seletividade. Com isso, se acirra os ânimos do suporte social e emocional
para esse tipo de mensagem.
P. Como o golpe de Estado
brasileiro se "modernizou"?
R. Para a democracia moderna, só
existe um princípio: soberania popular. A fonte de todo poder é o voto. Não
existe nenhum outro princípio, e, como não há, é preciso fabricar um, construir
elementos que estariam acima da sociedade e de interesses econômicos e
políticos. Antes, esse elemento estava constitucionalmente determinado, eram as
forças militares. Os chefes militares constitucionalmente poderiam dizer quando
estaria havendo desordem no país, e intervir. Hoje, como não podem ser mais os
militares, que perderam a legitimidade para assumir esse papel, o novo elemento
é um misto de agências de controle e judiciário, junto com Polícia Federal,
etc. Há uma luta por quem vai ocupar esse espaço. Formalmente, o Judiciário tem
todos os elementos que as Forças Armadas tinham. Não é eleito pelo povo, faz de
conta que interpreta coisas que não têm a ver com a política e o jogo econômico
e se põe acima do bem e do mal — e eu não estou falando em nome de nenhum juiz,
até porque são vários candidatos a isso. O juiz justiceiro hoje em dia é o
substituto do general entre nós. Não é mais o militar, a metralhadora, é o
aparato jurídico.
P. Se a sociedade brasileira tem
uma ideia equivocada e prejudicial sobre si mesma, como se abandona essa
lógica?
R. A escola não é o único lugar
onde as pessoas se educam numa sociedade moderna. A esfera pública é
extremamente importante. Toda a democracia tem dois pilares. O voto é um deles,
mas ele precisa ser refletido. O cidadão brasileiro tem de ter acesso a
informações contraditórias, a opiniões divergentes. Porque, sem isso, o voto é
desqualificado, manipulado. Os partidos de esquerda no Brasil falharam em
grande medida em compreender essa imensa maioria de excluídos e trabalhadores
pouco qualificados que não são sindicalizados, por exemplo. Quem compreendeu
essas pessoas abandonadas e humilhadas, que compõem a massa do povo brasileiro,
foram as religiões pentecostais, que supriram o vazio ao dizer: “você não é um
lixo, é um cara importante, Jesus olha para você”. No livro, faço a crítica a
esse culturalismo conservador, que é cientificamente frágil, mas também ao
economicismo de todas as vertentes, da marxista à liberal. A cegueira de todo economicismo
é achar que o comportamento das pessoas é unicamente motivado por estímulos
econômicos. Não é, e às vezes os estímulos não-econômicos, como a
autoconfiança, são ainda mais importantes. Quer dizer, você é pobre, não
enxerga chances e cai no álcool ou no crack. Se receber dinheiro, vai comprar
crack, não vai se recuperar como ser humano. Se tem alguém dizendo que você
importa, que não nasceu para isso, que lhe dá respeito e estima, isso pode ser
mais importante que dinheiro, e faz dinheiro, que é o que acontece com a classe
média autoconfiante.
P. No livro também há criticas às
jornadas de junho de 2013. Você escreve, inclusive, que o Brasil “é o país em
que a classe média ‘tira onda’ de revolucionária, de agente da mudança e de
lutadora por um ‘Brasil melhor’”.
R. As manifestações de 2013 são
diferentes das que acontecem agora. Em 2013, houve uma parte inicial do
movimento em que havia muitos elementos da classe trabalhadora precária, que
passa três horas para sair da periferia para o centro de São Paulo. E esse
pessoal estava justamente pedindo uma ampliação e aprofundamento de seus
direitos: melhor escola, melhor saúde, mobilidade urbana. A partir de certo
momento, toca-se o bumbo e a classe média vai às ruas. Então ocorre uma
mudanças dos grandes temas, das demandas, para a demanda típica da classe
média: só corrupção. É uma forma de você, que explora os outros, posar de
campeão da moralidade. Para isso, você usa todo o estofo montado por essa
inteligência para exportar o mal que pratica, e a classe média se transforma
numa santa. As ideologias políticas não falam só ao cérebro. Elas falam, antes
de tudo, às emoções. A classe média é feita de tola na sua reflexão por suas
emoções. É manipulada e sai como tropa de choque para atacar o Estado, apesar
de não ter um interesse real nesse ataque, porque os serviços poderiam ser
ampliados para a classe média, que usa o SUS [Sistema Único de Saúde]. Atacar o
Estado, para a classe média, é morrer em momentos importantes da vida. Essa
coisa de dizer que o Estado é ineficiente só serve aos 1% mais ricos.
P. Diante do que você considera uma ameaça de
golpe, como enxerga as perspectivas para o país?
R. Estamos em um instante
histórico extremamente delicado. Temos uma tradição dominante, do golpe de
1964, que montou uma sociedade para 20%, esses endinheirados, e uma classe que
serve a ela. Os outros foram mais ou menos abandonados, deixados ao Deus dará.
Os últimos 10 ou 15 anos foram uma inflexão forte nisso, porque dezenas de
milhões saíram de uma situação não só de pobreza, mas de ausência de
alternativa de vida, de futuro. Esse processo está em xeque, pode ser desfeito.
A gente pode voltar ao esquema que o Brasil era, o que aliás é a maior parte
dessa elite quer. Por outro lado, podemos tentar manter esse processo ou até
aprofundá-lo. A gente está em uma encruzilhada histórica: ou somos um Brasil
que minimamente olha para a maioria da sua população ou um país para 20% que
vai ter sempre a ameaça do golpe. Por que não se governa sociedade nenhuma para
20%, a não ser pela força, pela manipulação. Daí a recorrência do golpe na
história brasileira. Para a elite brasileira, não importa se você manda com o voto,
você tem que poder mandar até sem o voto.
Fonte: El Pais
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