sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Projeto de tatuagens ajuda mulheres vítimas de violência a recuperarem a autoestima

Flavia é tatuadora há cinco anos e quer usar seu trabalho para ajudar mulheres vítimas de violência (Foto: Arquivo Pessoal)

Flavia Carvalho tinha 15 anos quando foi agredida pelo primeiro namorado, que vez ou outra se descontrolava e batia nela. À época, ele pedia perdão, e ela voltava. E muitas vezes se culpava pelos tapas e golpes que recebia.

Mais de uma década depois, quando já era tatuadora profissional, Flavia se viu de novo diante de um caso de violência. Mas dessa vez, a vítima não era ela, e sim uma cliente. Uma jovem de 20 e poucos anos pediu à tatuadora que cobrisse uma cicatriz com um desenho. Era uma forma de ocultar de vez as marcas de uma agressão que sofrera havia quase dez anos.
  

Flavia diz que mulheres tem procurado seu estúdio para cobrir as cicatrizes e costumam pedir desenhos mais femininos, como flores e pássaros (Foto: Reprodução)
“A cliente tinha uma cicatriz bem grande no abdômen. Eu não perguntei, mas ela foi me contando que estava numa boate, um cara a abordou e ela não quis beijá-lo. Ela saiu e foi ao banheiro, mas ele a abordou de novo e a golpeou com um canivete”, contou Flavia à BBC Brasil.

“Ela precisou ser hospitalizada, ficou aquela marca bem grande. E depois de muito tempo, ela quis fazer uma tatuagem para cobrir a cicatriz. Foi transformador pra ela, ela tinha vergonha de usar biquíni, e a reação dela quando viu que não tinha mais a cicatriz me comoveu.”

Foi esse caso que inspirou Flavia a criar o projeto “A Pele da Flor”, que tem como objetivo ajudar mulheres vítimas de violência a recuperarem a autoestima por meio de uma simples tatuagem.

“Eu fiquei pensando no tanto de mulher que sofre violência doméstica, mas que não tem condição de fazer tatuagem, plástica ou algo para cobrir aquela marca. As cicatrizes fazem com que a mulher fique sempre lembrando da agressão e mudam a relação delas com o próprio corpo”, diz.

“Essa minha cliente se emocionou na hora que viu o resultado no espelho, me abraçou. Por causa daquela marca, ela tinha vergonha de mostrar o corpo até para um namorado. Eu vi a transformação dela ali e vi que era possível usar a tatuagem como ferramenta para resgatar autoestima.”
  

Dezenas de mulheres entraram em contato com Flavia para contar seus casos de agressão (Foto: Arquivo Pessoal)

Dois anos depois, já com a ideia materializada, Flavia começou a levar o projeto – de oferecer tatuagens gratuitas a mulheres que quisessem cobrir cicatrizes de episódios de violência que sofreram – para algumas ONGs, mas, de cara, recebeu vários “nãos”. As entidades diziam que “não haveria demanda”.

A tatuadora, então, entrou em contato com a Secretaria da Mulher da Prefeitura de Curitiba, onde mora, e firmou uma parceria. Na última terça-feira, eles divulgaram o projeto pelo Facebook – e, em dois dias, Flavia já recebeu mensagens de mais de 40 mulheres contando seus casos de violência.

Pelo menos 10 delas já estão marcando o dia e a hora para fazerem a tatuagem no estúdio de Flavia e acabarem de vez com marcas permanentes de agressões que elas querem esquecer.

“Eu fiquei bem impressionada, quando me reuni com a Secretaria, a gente ficava pensando se ia ter demanda, porque eu ouvi bastante ‘não’, né. Mas à medida que você vai divulgando, os casos vão aparecendo”, conta.

Rascunho do desenho que Flavia fará em uma das vítimas: a marcação feita em caneta azul é de onde fica a cicatriz, causada por arma de fogo (Foto: Arquivo Pessoal)

“Vieram histórias bem diversas, de todos os tipos. Da menina novinha que apanhava do namorado, da mulher que apanhou do marido por anos, da professora com o aluno. Você imagina que é coisa de novela, mas é real mesmo, de todos os tipos. De todas as classes e idades.”

Nesta semana, Flavia já recebeu algumas das mulheres que a procuraram no estúdio e tirou a medida para fazer o desenho que cobrirá as cicatrizes delas. A tatuadora conta que, na maioria dos casos, as vítimas pedem desenhos femininos para tampar as marcas, como “flores, borboletas ou pássaros”.

“Um dos casos que mais me chamou a atenção foi de uma professora, que foi atacada por um aluno. Ele a esfaqueou 16 vezes, tem marca no braço, nas costas.”

“Outra, que vai vir semana que vem para cobrir (uma cicatriz), sofreu tentativa de homicídio. Ela foi esfaqueada oito vezes, perto do coração, ficou até na UTI. Ela tinha terminado o relacionamento com o namorado, que a agredia, e aí um dia ela estava indo para o trabalho, e ele a atacou. Depois (ele) se matou. Ela tem várias cicatrizes, mas o que mais a incomoda é uma na perna, porque ela não pode usar saia, shorts.”

Desde que o post sobre o trabalho de Flavia Carvalho foi divulgado pela Prefeitura de Curitiba, ela não parou de receber mensagens. Não só de mulheres querendo fazer a tatuagem para cobrir cicatrizes, mas também de gente que queria apenas compartilhar suas histórias de agressão.

“Algumas das mulheres que me procuraram ainda não têm coragem de mostrar a cicatriz, nem de cobri-la, mas elas querem contar os casos, querem uma motivação para fazer a tatuagem um dia.”

Flavia conta que recebeu até mesmo mensagens de mulheres de outros Estados, como Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Ela virou quase que uma “psicóloga” para elas e garante que está arranjando tempo para responder todas as mensagens.

Vítima de agressão física na adolescência e de violência psicológica com seu primeiro marido, Flavia não esconde o sentimento de revolta que sente a cada vez que vê uma cicatriz em uma mulher causada por violência doméstica.

“Mexe muito comigo ainda isso. Tem meninas novas vindo me contar esses casos e eu lembro de como eu, novinha, vivi isso. É bem difícil. É um misto de revolta da gente saber como isso acontece com tanta frequência com uma vontade de acolher, de abraçar essas meninas. Por isso, a ideia do projeto é fazer algo que faça com que essas mulheres se sintam bem.”


Fonte: (Renata Mendonça) BBC Brasil

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