Flavia é tatuadora há cinco anos e quer usar seu trabalho para ajudar mulheres vítimas de violência (Foto: Arquivo Pessoal)
Flavia Carvalho tinha 15 anos
quando foi agredida pelo primeiro namorado, que vez ou outra se descontrolava e
batia nela. À época, ele pedia perdão, e ela voltava. E muitas vezes se culpava
pelos tapas e golpes que recebia.
Mais de uma década depois, quando
já era tatuadora profissional, Flavia se viu de novo diante de um caso de
violência. Mas dessa vez, a vítima não era ela, e sim uma cliente. Uma jovem de
20 e poucos anos pediu à tatuadora que cobrisse uma cicatriz com um desenho.
Era uma forma de ocultar de vez as marcas de uma agressão que sofrera havia
quase dez anos.
Flavia diz que mulheres tem
procurado seu estúdio para cobrir as cicatrizes e costumam pedir desenhos mais
femininos, como flores e pássaros (Foto: Reprodução)
“A cliente tinha uma cicatriz bem
grande no abdômen. Eu não perguntei, mas ela foi me contando que estava numa
boate, um cara a abordou e ela não quis beijá-lo. Ela saiu e foi ao banheiro,
mas ele a abordou de novo e a golpeou com um canivete”, contou Flavia à BBC
Brasil.
“Ela precisou ser hospitalizada,
ficou aquela marca bem grande. E depois de muito tempo, ela quis fazer uma
tatuagem para cobrir a cicatriz. Foi transformador pra ela, ela tinha vergonha
de usar biquíni, e a reação dela quando viu que não tinha mais a cicatriz me
comoveu.”
Foi esse caso que inspirou Flavia
a criar o projeto “A Pele da Flor”, que tem como objetivo ajudar mulheres
vítimas de violência a recuperarem a autoestima por meio de uma simples
tatuagem.
“Eu fiquei pensando no tanto de
mulher que sofre violência doméstica, mas que não tem condição de fazer
tatuagem, plástica ou algo para cobrir aquela marca. As cicatrizes fazem com
que a mulher fique sempre lembrando da agressão e mudam a relação delas com o
próprio corpo”, diz.
“Essa minha cliente se emocionou
na hora que viu o resultado no espelho, me abraçou. Por causa daquela marca,
ela tinha vergonha de mostrar o corpo até para um namorado. Eu vi a
transformação dela ali e vi que era possível usar a tatuagem como ferramenta para
resgatar autoestima.”
Dezenas de mulheres entraram em contato com Flavia para contar seus casos de agressão (Foto: Arquivo Pessoal)
Dois anos depois, já com a ideia
materializada, Flavia começou a levar o projeto – de oferecer tatuagens
gratuitas a mulheres que quisessem cobrir cicatrizes de episódios de violência
que sofreram – para algumas ONGs, mas, de cara, recebeu vários “nãos”. As
entidades diziam que “não haveria demanda”.
A tatuadora, então, entrou em
contato com a Secretaria da Mulher da Prefeitura de Curitiba, onde mora, e
firmou uma parceria. Na última terça-feira, eles divulgaram o projeto pelo
Facebook – e, em dois dias, Flavia já recebeu mensagens de mais de 40 mulheres
contando seus casos de violência.
Pelo menos 10 delas já estão
marcando o dia e a hora para fazerem a tatuagem no estúdio de Flavia e acabarem
de vez com marcas permanentes de agressões que elas querem esquecer.
“Eu fiquei bem impressionada,
quando me reuni com a Secretaria, a gente ficava pensando se ia ter demanda,
porque eu ouvi bastante ‘não’, né. Mas à medida que você vai divulgando, os
casos vão aparecendo”, conta.
Rascunho do desenho que Flavia
fará em uma das vítimas: a marcação feita em caneta azul é de onde fica a
cicatriz, causada por arma de fogo (Foto: Arquivo Pessoal)
“Vieram histórias bem diversas,
de todos os tipos. Da menina novinha que apanhava do namorado, da mulher que
apanhou do marido por anos, da professora com o aluno. Você imagina que é coisa
de novela, mas é real mesmo, de todos os tipos. De todas as classes e idades.”
Nesta semana, Flavia já recebeu
algumas das mulheres que a procuraram no estúdio e tirou a medida para fazer o
desenho que cobrirá as cicatrizes delas. A tatuadora conta que, na maioria dos
casos, as vítimas pedem desenhos femininos para tampar as marcas, como “flores,
borboletas ou pássaros”.
“Um dos casos que mais me chamou
a atenção foi de uma professora, que foi atacada por um aluno. Ele a esfaqueou
16 vezes, tem marca no braço, nas costas.”
“Outra, que vai vir semana que
vem para cobrir (uma cicatriz), sofreu tentativa de homicídio. Ela foi
esfaqueada oito vezes, perto do coração, ficou até na UTI. Ela tinha terminado
o relacionamento com o namorado, que a agredia, e aí um dia ela estava indo
para o trabalho, e ele a atacou. Depois (ele) se matou. Ela tem várias
cicatrizes, mas o que mais a incomoda é uma na perna, porque ela não pode usar
saia, shorts.”
Desde que o post sobre o trabalho
de Flavia Carvalho foi divulgado pela Prefeitura de Curitiba, ela não parou de
receber mensagens. Não só de mulheres querendo fazer a tatuagem para cobrir
cicatrizes, mas também de gente que queria apenas compartilhar suas histórias
de agressão.
“Algumas das mulheres que me
procuraram ainda não têm coragem de mostrar a cicatriz, nem de cobri-la, mas
elas querem contar os casos, querem uma motivação para fazer a tatuagem um
dia.”
Flavia conta que recebeu até
mesmo mensagens de mulheres de outros Estados, como Rio de Janeiro, São Paulo e
Minas Gerais. Ela virou quase que uma “psicóloga” para elas e garante que está
arranjando tempo para responder todas as mensagens.
Vítima de agressão física na
adolescência e de violência psicológica com seu primeiro marido, Flavia não
esconde o sentimento de revolta que sente a cada vez que vê uma cicatriz em uma
mulher causada por violência doméstica.
“Mexe muito comigo ainda isso.
Tem meninas novas vindo me contar esses casos e eu lembro de como eu, novinha,
vivi isso. É bem difícil. É um misto de revolta da gente saber como isso
acontece com tanta frequência com uma vontade de acolher, de abraçar essas
meninas. Por isso, a ideia do projeto é fazer algo que faça com que essas
mulheres se sintam bem.”
Fonte: (Renata Mendonça) BBC
Brasil
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